“Fomos nós que fizemos tudo para sermos esquecidos apesar desta cara de pidão, ou de frustração, que permanece em cada um de nós, patologicamente alcançados pela síndrome do vira-lata”.
Por Alfredo Lopes e Estevão Monteiro de Paula
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Por que tanta apatia diante das negativas aos direitos legítimos de nossas reivindicações junto ao poder constituído? Pior do que isso, por que aprendemos a acolher passivamente respostas evasivas a demandas tão prosaicas, como o respeito à segurança jurídica de nosso programa de desenvolvimento regional? E mais grave ainda: de tanto ser repetida esta rotina, qual o sentido de conferir-lhe status de naturalidade? Faz parte de nossa sina esse conformismo transformado em resignação? Nelson Rodrigues chamava isso de complexo de vira-lata, que teria iniciado com a derrota por 0x1, diante do Uruguai na disputa da Copa do Mundo em 1959, quando foi inaugurado o Estádio do Maracanã. Pedíamos a vitória e recebemos de volta a frustração. Aqui, no atoleiro da integração, pedimos respeito e recebemos em troca o descaso, o esquecimento e a exclusão.
O CBA e a BR-319
Podemos ilustrar esta comparação com dois exemplos, dentro de uma lista razoável de pedidos legítimos e historicamente frustrados. Referimos à estrutura de funcionamento do Centro de Biotecnologia da Amazônia, o CBA, e a recuperação da BR-319. Todos os superintendentes da Suframa que ocuparam a cadeira, neste século XXI, se juntaram à classe política local, instituições de pesquisa e desenvolvimento, entidades de classe da indústria, comércio e serviços, jovens que perambulam pela Amazônia a procura da dignidade perdida com os baixos índices de desenvolvimento da região, pediram juntos ou divididos o CNPJ do CBA e a recuperação da BR-319. O que recebemos em troca?
O sonho não acabou
A demanda tem sido a mesma, simples e justa: o funcionamento efetivo da instituição que deveria cumprir o velho sonho de tantas gerações de transformação da biodiversidade amazônica em prosperidade para sua gente. Nada mais do que isso. Mesmo assim, são anunciadas e frustradas medidas de impacto, promessas românticas e eleitoreiras de que “daqui para frente tudo vai ser diferente”. Até aqui não foi. E pasmem: em breve teremos o evento coerente e frustrante com essa procrastinação crônica, com todo respeito, é a realização, neste mês de julho, uma rodada internacional de negócios da bioeconomia, com “apoio do CBA”, que não tem o que mostrar. Seria cômico se não fosse trágico.
Alhos são diferentes dos bugalhos
Como explicar para um pesquisador do Instituto Butantan ou de qualquer universidade do continente, ou mesmo de um investidor europeu interessado nas fibras poderosas do curauá, que esta iniciativa da Feira tenha alguma conexão com a sua demanda. As portas da instituição estão fechadas para a mais simples investigação laboratorial sobre a viabilidade fabril de qualquer bioativo da floresta.Por uma razão muito simples, o CBA não existe. Alhos são diferentes dos bugalhos.
Cantiga para não morrer
Poderíamos dizer que o CBA, rigorosamente, é um gnomo institucionalizado em estado terminal. Ou um ser vivo que, por descrédito, descaso ou rancor, não tem condições de sobreviver. Ninguém se compromete com isso, verdadeiramente. Aplica-se a essa fatídica iniciativa o alerta poético de Ferreira Gullar, em Cantiga para não morrer – não deixe de ler – de onde se pode inferir um fato: o que mata o homem não é a idade, é o esquecimento. E como esta instituição, ao longo do tempo, transformou-se em pouco tempo numa lamentável recordação do que nós poderíamos ter sido, tenhamos certeza: essa responsabilidade cabe exclusivamente a nós. É ridículo seguir apontado o dedo na direção do Ministério X,Y, Z deste governo ou de todos os outros que o procederam. Fomos nós que fizemos tudo para sermos esquecidos apesar desta cara de pidão, ou de frustração, que permanece em cada um de nós, patologicamente alcançados pela síndrome do vira-lata. E o que é mais triste, sem saber dizer se nós nos contentamos com restos de pele ou reles ração de segunda categoria.
Mergulho interdisciplinar
O mesmo se aplicará à recuperação da rodovia BR-319? Se dermos trela ao complexo canino maldito com certeza se aplicará. Antes da instalação da pandemia, janeiro de 2020, entretanto – e isso é uma excelente notícia – as entidades de ensino, pesquisa e extensão de Manaus, sob a coordenação do INPA, recrutaram uma equipe de cientistas e técnicos que iriam/e ainda vão fazer uma imersão nos problemas mais urgentes que a reconstrução da rodovia oferece. Muitos parceiros de outros estados e até outros países se ofereceram voluntariamente para o desafio que nada mais é do que mapear espécies de madeiras regionais para construção de pontes, mapeamento geológico e geomorfológico dos gargalos estruturais. Um mergulho interdisciplinar e multi-institucional. Uma iniciativa que viralizou um sentimento dos mais nobres entre os heróis de nossa discreta resistência: a certeza de que nós podemos. Sim, nós podemos!!!
Proibicionismo vesgo
Não faz sentido pontificar a inviabilidade estrutural da estrada, muito menos invocar os riscos de depredação/destruição da floresta, se nós já fizemos coisas do arco da velha na floresta. Instituições como o INPA, que tem 70 anos de pesquisa, sabe tudo de Amazônia, padecem de recursos para transformar esse saber em produtos e serviços. A UFAM, que é a primeira instituição universitária do país, corre o risco do esquecimento fúnebre. A Embrapa Amazônia Ocidental e vizinhas, tem um cardápio de soluções para empinar a curica da obstinação. Por que não empina? E mais recentemente a UEA, paga integralmente pela indústria, começa a mostrar as boas garras em conexão com seu mantenedor. O mergulho desta missão desaforada vai consolidar informações que tornarão irreversível a conjugação do verbo construir, manter e fiscalizar o traçado da rodovia BR-319 e sua utilização pela tribo. O proibicionismo é vesgo e burro.
Segurança Made in ZFM
E como se deu a proteção da BR-174, que liga Manaus ao Caribe, onde não houve ensaio qualquer de devastação? Ora, perguntem às etnias Waimiri-Atroari. Eles sabem como fazer. Pois bem, assim como eles, por que não podemos garantir a saúde da floresta, se nós também sabemos fazê-lo? Não podemos esquecer da existência do Sipam-Sivam (Sistema de proteção e vigilância da Amazônia), adquirido há mais de duas décadas pelo governo brasileiro para vigiar e proteger a mata. Com estudos adaptados à demanda de proteção da BR-319, podemos sim desenhar, com tecnologia, feita na tribo Manaó, Made in ZFM, isso mesmo na Zona Franca de Manaus. Basta o governo do estado ou as entidades de classe da indústria tecnicamente demandarem um sistema de vigilância, para monitorar, em tempo real e integral, toda a extensão da estrada. Firmada essa plataforma e assumida pelo órgão legalmente responsável – a BR-319 é federal – só teremos desmatamento se as autoridades constituídas assim determinarem ou se, por um surto de demência, continuarmos a fomentar o maldito complexo de vira-lata.
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