Politizar a nossa mesa, politizar a produção dos alimentos e politizar a ciência sobre nossos alimentos são necessidades peremptórias no contexto em que vivemos.
Por Adalberto Val e Tiago Silva
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Quanto mais avançamos na compreensão dos efeitos da mudança climática, maior também tem sido o entendimento de como as ações de adaptação às novas realidades exigem um esforço interdisciplinar e intersetorial. Isto porque em diversos âmbitos da vida social, econômica e cultural, a mudança climática já gera impactos em todos os pontos das cadeias por meios das quais nos habituamos a viver e a produzir. Essa constatação também é válida para um aspecto crucial de nossa existência: a alimentação.
A comida que colocamos à mesa é, ao mesmo tempo, fonte de um problema ambiental grave e afetada pelas consequências deste mesmo revés. Por um lado, no Brasil, o padrão de consumo alimentar associada a agropecuária e ao desmatamento é responsável por 73% das emissões de gases de efeito estufa do país, conforme dados do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa).
Por outro, as alterações na paisagem e nos regimes climáticos ligadas a estas atividades, dentre outros fatores, oferecem um severo risco à segurança e à soberania alimentares de países como o Brasil, pelos desafios que impõem à produção de alimentos, sobretudo a de pequenos e médios produtores.
No INTC ADAPTA, temos desenvolvido pesquisas que demonstram esse argumento no contexto do cultivo de peixes que compõem a dieta da região amazônica, como o tambaqui e o matrinxã. Por aqui, a população ribeirinha consome cerca de 600g de pescado por dia, ou seja, mais de 200 quilos por ano. Já em Manaus, uma capital com mais de 2 milhões de habitantes, o consumo bate a casa dos 33 quilos por pessoa em um ano.
Todavia, temos visto em laboratório que, quando os peixes são expostos a ambientes com alta concentração de CO2, ocorrem um aumento na intensidade de parasitismo, inflamações agudas, comprometimento das capacidades reprodutivas do tambaqui, comprometimento muscular de matrinxãs e outras mazelas. Com isso, o futuro que estamos desvelando é preocupante: uma região inteira do país que pode encontrar-se comprometida na capacidade de produzir uma das bases de sua alimentação.
O debate sobre o conceito de segurança alimentar avançou consideravelmente no Brasil, sobretudo nos anos 2000. Tornou-se um consenso que o direito de um povo à “comida de verdade” e socialmente justa é um elemento da soberania de uma nação. Isto é, trata-se da liberdade de um país em definir o quê, como e para quem produzir de modo a garantir alimentação a toda sua população.
No passado recente, conforme debate Maria Zênia Tavares da Silva em artigo sobre o tema, a discussão sobre segurança alimentar levantava a necessidade de engajamento em questões que até hoje continuam presentes no tecido social brasileiro: o desmonte do latifúndio e das práticas de monocultura, o apoio à agricultura camponesa, o livre acesso a sementes, dentre outros. Hoje, medidas de adaptação e mitigação da mudança climática também devem ser parte do tema.
Com isso, poderíamos afirmar que, em sendo a segurança alimentar uma questão de soberania de um país, também o são as ações necessárias para evitar que as mudanças do clima afetem de maneira desastrosa nossa capacidade em produzir e distribuir nosso próprio alimento.
Atualmente, essa é uma condição para garantir o direito à alimentação de uma população, como a da região amazônica, com base na pequena e média produção e respeitando a diversidade dos modos de produzir, comercializar e gerir alimentos.
Todavia, nos últimos anos, o debate sobre segurança alimentar foi arrefecido. Um marco simbólico desse retrocesso ocorreu em 2019, com a extinção do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), freando os avanços na discussão sobre a temática.
Porém, em fevereiro deste ano, o conselho foi recriado, retomando, com isso, a formulação, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas que garantam o fim da fome no Brasil. Logo, dá-se uma nova oportunidade para aprofundar com informações científicas robustas o entendimento sobre o contato que existe entre alimentação e mudança climática.
Isso coloca a ciência que se produz na Amazônia e sobre a Amazônia com papel imprescindível. Com nossas pesquisas, estamos desenvolvendo aquelas informações que servirão de base para orientar novas ações e políticas em direção à segurança e à soberania alimentar. Mas nós, enquanto sociedade, ainda podemos avançar na compreensão de quais são as responsabilidades que a ciência tem em meio a esse contexto.
Não existe soberania que não seja primeiramente política: aquela capacidade dos povos de contribuírem nas decisões de um país de modo a estabelecer seus modos de vida.
A ciência que se realiza também está em um espaço social que pede por esta mesma competência, e isto conduz a dois pontos de debate:
- cientistas também são sujeitos sociais e políticos que demandam contribuir com as decisões que precisam ser tomadas;
- cientistas precisam estar porosos às contribuições dos povos que compartilham com eles o espaço social, mantendo-se abertos às suas tradições, aos seus saberes e aos seus sabores.
Podemos resumir esta intenção a um conceito: politização, tomado aqui como sinônimo de participação. Politizar a nossa mesa, politizar a produção dos alimentos e politizar a ciência sobre nossos alimentos são necessidades peremptórias no contexto em que vivemos.
Referências Bibliográficas
SEEG. 2021. Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil, 1970-2020. Disponível em:https://seeg.eco.br/wpcontent/uploads/2023/03/SEEG9_DOC_ANALITICO_2021_FINAL.pdf
Silva, M. Z. T. 2020. A segurança e a soberania alimentares: conceitos e possibilidades de combate à fome no Brasil. In: Revista de Ciências Sociais Configurações, 25, p. 97-111, Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/8626#quotation.
Val, A.L., Saes, M.S.M., Bittencourt, F., Meirelles, J., Fonseca, V.L.I. and Marcovitch, J. (in press) Segurança Alimentar: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome. Hungria, M. and Siqueira, J.O. (eds), Academia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro.
Val, A.L. and Wood, C.M. 2022. Global change and physiological challenges for fish of the Amazon today and in the near future. J. exp. Biol. 225, jeb216440.
Val, A.L., Saes, M.S.M., Bittencourt, F., Meirelles, J., Fonseca, V.L.I. and Marcovitch, J. (in press) Segurança Alimentar: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome. Hungria, M. and Siqueira, J.O. (eds), Academia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro.
Sobre os autores:
Adalberto Luis Val Pesquisador sênior do INPA. Líder de pesquisa do Laboratório de Ecofisiologia e Evolução Molecular – LEEM, Coordenador do INCT Adapta, Titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mundial de Ciências.
Tiago da Mota e Silva é jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e, atualmente, bolsista DTI-A/CNPq no INCT Adapta.
*O artigo expressa exclusivamente a opinião dos autores
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