Essa interlocução – mediada pelo conhecimento e envolvimento na defesa da floresta – com este mestre querido, me fez guardar a mais saudosa lembrança e meu eterno respeito. Todas as pompas, honrarias e circunstâncias são oportunas para celebrar seu Centenário, recordar sua figura e registrar minha perene gratidão, professor Samuel Benchimol!
Um ensaio de Luiz Augusto Barreto Rocha, advogado, empresário e presidente do Conselho Superior do CIEAM
Em 2023, a Amazônia e o Brasil celebram o Centenário de Samuel Benchimol. Considerei importante realizar uma singela homenagem, pessoal e institucional, como advogado, empresário e dirigente do CIEAM, entidade que congrega a indústria do Amazonas.
Para esboçar esta homenagem, resolvi revisitar em seu acervo literário o discurso de formatura de Samuel como bacharel em Direito, pela Universidade do Amazonas, uma das primeiras faculdades de Direito do Brasil, a saudosa “Jaqueira”, como a chamávamos e onde também me formei.
Este discurso de formatura, uma aula de História e um termo de compromisso com o Brasil, nos ajuda a descrever às novas gerações quem foi Samuel Benchimol. O texto traduz seu perfil precoce de intelectual e estudioso atento a nossa Amazônia, com foco nas pessoas da região. Àquela altura, o novo bacharel já traduzia a identidade miscigenada do nosso Brasil, com suas demandas próprias, necessidades e visão de mundo, completamente impregnada com os princípios e destinos e premissas do bioma amazônico.
Um jovem nascido em Manaus, de uma família de judeus marroquinos, que viera nos anos 1810 “fazer a Amazônia”, como costumava descrever seu desembarque na nova Terra Prometida. Entre as notícias das Ervas do Sertão, já havia no Velho Mundo a atração do Eldorado Verde, a biodiversidade amazônica, na qual pulsava a economia da “árvore da fortuna”, a seringueira. E os Benchimol se destacaram na consolidação do Ciclo da Borracha, que durou três décadas, e que fez da Amazônia, até 1910, a região mais próspera e glamourosa daquele Novo Mundo em construção.
Já na qualidade de Bacharel em Direito, o professor Samuel traduz, inequivocamente, sua confissão de pertencimento à vida pública, exercida no lugar que sua família chamou de seu. Este recorte memorial se dá no contexto do II Ciclo da Borracha, nos anos 1940, em plena II Guerra Mundial. O Brasil combatia na resistência ao nazismo hitlerista e lhe coube fornecer os insumos da borracha que iriam movimentar as máquinas de guerra. Numa campanha financiada pelos Estados Unidos, a mão de obra nordestina foi mobilizada para voltar aos seringais e coletar o látex, o precioso líquido da seringueira. Naquele momento, Samuel Benchimol inicia uma trajetória que mesclou a produção intelectual e sua evolução empresarial como um dos fundadores do Grupo Bemol.
“Pertencemos, de agora em diante, como Bacharéis, a uma classe ligada secularmente, através de gerações e gerações de moços, à vida púbica do país. Herdeiros que somos dos bacharéis do passado cabe a nós conservarmos e desenvolvermos essa influência já tradicional na história social e política do País. Precisamos, portanto, conhecer essa influência, analisar os fundamentos e raízes desse prestígio.”
Um convite à jornada do conhecimento, uma obstinação que marcou toda sua caminhada. Voltando ao seu pronunciamento, o jovem Samuel já dava indícios de sua convicção de que é preciso ter muito claro o lugar de onde nascem e se explicam as narrativas. Essa consciência de quem somos e como se forma nossa visão de mundo, nossas escolhas e propósitos já aparecem na inquietação do pensador Samuel Benchimol.
“Monopolizando dessa forma a educação das nossas elites, Coimbra deformava, à europeia, os nossos mestiços e os filhos dos nossos colonos. Deformava no sentido regional e cultural da expressão, isto é, sem atender às necessidades de uma educação regional para a nossa gente, o que era impossível, mas que era e sempre foi preciso para a construção de uma nova forma de política, de cultura e de trabalho.”
Como se deu a formação social, cultural e econômica do Brasil? Quais as implicações e influência do modo lusitano na forma de ser e de pensar do povo brasileiro, colonizado e escolarizado dentro de padrões arcaicos da matriz colonial? Um pensamento absolutamente subalterno, conformista, desfigurado em sua real identidade. A educação nada mais era do que a transmissão dos valores, crenças e dogmas do Rei, a quem todos devem submissão e obediência. Esse era um motivo de forte inquietação para Samuel.
Samuel Benchimol foi um economista, cientista e professor brasileiro que defendia a sobrevivência do homem com a floresta. Para ele, o homem tinha de ser feliz com a floresta em pé, mas a floresta não poderia se sobressair sobre o bem-estar do homem. Foi o maior amazonólogo de todos os tempos. Ele defendeu a Amazônia como ninguém, escreveu 150 livros.
Foi considerado um dos principais especialistas da região amazônica. Contribuiu no estudo de aspectos sociais no domínio da economia da região da Amazónia, aprofundando questões sobre o desenvolvimento sustentável da bacia do rio Amazonas.
“Constituiu-se assim aquela célebre universidade em uma réplica intelectual da velha civilização europeia, ao trabalho material dos colonos, desejosos de fundar uma colônia sem preconceitos nem orgulhos. Daí o interesse que Portugal sempre teve em não deixar fundar, durante a época da colônia, uma Faculdade ou um curso superior onde os descendentes dos imigrantes, os filhos dos colonos e os mestiços pudessem ser bacharéis, mas sem sair do país.”
Por fim, a leitura de seu primeiro ensaio, com as lentes do Século XXI, nos permitem vislumbrar o olhar profético do professor Samuel Benchimol e sua intuição amazônica. Esta é a marca digital de sua obra, única e admirável, pois retrata comprometimento com nosso modo de ser e compreender a bioma, nossa experiência de modernidade de uma sociedade que experimentou o glamour e a decadência econômica. Essa experiência, o conhecimento de sua relevância e o desafio de resgatar a riqueza que a Amazônia representa, explicam a formulação do conceito de sustentabilidade, que o professor Samuel detalhou no livro a Guerra na Floresta.
“Hoje, homem culto não é apenas o homem que pode recitar Virgílio e Horácio, que tem de cor Camões inteiro, que conhece na exata a colocação dos pronomes e discute assuntos gramaticais. Homem culto também, além do que conhece tudo isso, é aquele que se dedica ao estudo, investigação e interpretação dos nossos complexos de economia e de cultura, dos nossos problemas de raça e de sexo, de saúde, de alimentação e de técnica.”
Já se passaram muitas décadas dessa profecia. Um legado que continua atual, a nos alertar dos significados e lições que a floresta e nossas pessoas nos ensinam. Hoje, o termo sustentabilidade já não é mais um conceito literário disputado pela inteligência socioambiental e climática que nos mobiliza. Sustentabilidade é um paradigma para quem pretende empreender na Amazônia e que precisa submeter-se a seus códigos de postura e de condutas, de acordo com a autoridade do professor Samuel Benchimol, para quem qualquer empreendimento precisa ser economicamente viável, politicamente correto, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Isso é ou não olhar 50, 100 anos à frente?
Antes de ingressar no Curso de Direito da Universidade do Amazonas, tão logo cheguei a Manaus, habituado a jogar xadrez, passei a frequentar a FAX – Federação Amazonense de Xadrez, que funcionava à época no Luso Sporting Club, na Rua Monsenhor Coutinho. Lá, conheci Samuel Benchimol, que costumava chegar ao Clube por volta das 16 horas, nos finais de semana. Tinha mesa reservada e adversários que apreciava enfrentar. E até que chegassem jogávamos nós dois.
Estamos falando dos anos 80, em sua primeira metade. Na época eu estava adentrando a idade adulta, certamente não tinha condições de avaliar a estatura daquele senhor de trato refinado e gentil. “Sem parentes importantes”, posso dizer que interagi com meus peões e humildes torres, com bispos, damas e Rei de uma celebridade que iria marcar minha caminhada. Uma honraria que só não é maior do que frequentar suas aulas e revisitar suas obras para lhe prestar, em seu Centenário, minha singela homenagem.
Cumpre encerrar este depoimento para relembrar minha experiência como aluno: o Professor Samuel Benchimol é um dos maiores privilégios da minha vida acadêmica, que se deu na segunda metade dos anos 80. Como aluno o encontro ocorreu em sala de aula onde, mais maduro e atento, estava apto a admirar sua sabedoria e maturidade acadêmica, revestidas da habitual humildade. Ministrava a disciplina “Introdução à Amazônia”. Uma preciosidade! Naquelas manhãs de sábado, suas aulas significavam para mim um acontecimento.
Eram momentos prazerosos, que fazia questão de alongar acompanhando-o até a “cantina” da velha “Jaqueira”, após as aulas. Ali, de modo mais descontraído, as lições ganhavam mais encanto pelo conhecimento e pela Amazônia, seus mistérios, promessas e convites envolventes. Foi este privilégio na vida acadêmica um dos momentos mais determinantes para minha imersão na Amazônia. Essa interlocução – mediada pelo conhecimento e envolvimento na defesa da floresta – com este mestre querido, me fez guardar a mais saudosa lembrança e meu eterno respeito. Todas as pompas, honrarias e circunstâncias são oportunas para celebrar seu Centenário, recordar sua figura e registrar minha perene gratidão, professor Samuel Benchimol!
Luiz Augusto Barreto Rocha é advogado, CEO das empresas BDS Confecções e Fio de Água, Lavanderias, é presidente do Conselho Superior do CIEAM, conselheiro da Abit e da UEA.
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