O legado do Papa Francisco para a COP30

“O Papa Francisco enfatizou a necessidade de um novo diálogo sobre como poderemos formatar o futuro do nosso Planeta. Propôs uma compreensão teológica da Natureza visando a definir uma convivência harmônica do Homem com a Natureza. Na origem do Mundo está o Criador, portanto o Criador precisa ser honrado em sua obra. Se não respeitarmos a obra do Criador não respeitaremos o próprio Criador.”

Mahatma Gandhi

Antônio Carlos Jobim

Guimarães Rosa

Tem sido difícil sensibilizar a opinião pública brasileira sobre a atual crise ambiental que o País atravessa. A sociedade permanece politicamente conformista, mesmo sendo informada, através dos meios de comunicação social, que restam apenas 8 por cento da nossa exuberante Mata Atlântica e que o desmatamento já atingiu mais de 20 por cento da prístina Floresta Amazônica, sendo que muitas das nossas bacias e microbacias hidrográficas estão se transformando em lixões a céu aberto, além, claro, das mudanças climáticas, que vêm provocando inúmeras catástrofes nas metrópoles, nas zonas costeiras e nos principais Biomas do País. Como dizia Victor Hugo, é triste pensar que a natureza fala e que o gênero humano não a ouve.

A crise ambiental tornou-se tão profunda ao longo de nossa história, que os problemas passados e atuais dos processos de degradação ambiental nos cinco Biomas (Mata Atlântica, Amazônia, Cerrados, Pantanal e Pampas) não se equacionam através de ajustes incrementais, mas através de grandes transformações apoiadas em novas ideias. Como diz o cientista político Mark Blyth, em momentos de crise, as ideias importam e são poderosas. Elas têm a capacidade de dar substância histórica à diversidade dos interesses dos diferentes grupos sociais em termos de ações programáticas. Elas são capazes de determinar a forma e o conteúdo das instituições que formulam e definem a trajetória histórica de um país, de suas regiões e classes sociais.

Desmatamento do Cerrado na região da Chapada dos Guimarães.
Desmatamento do Cerrado na região da Chapada dos Guimarães | Foto: Ademir/Adobe Stock

As ideias, tomadas como parte de uma sequência geral de mudança institucional, reduzem incertezas, atuam como recursos para a construção de coalisões, empoderam protagonistas para contestar as instituições existentes, atuam como recursos na construção de novas instituições e, finalmente, coordenam as expectativas dos agentes, reproduzindo, portanto, estabilidade institucional.

Como as ideias são, frequentemente, a base inicial para a concepção e a implementação de políticas públicas, de programas e de projetos, elas podem ser avaliadas pela sua capacidade de transformação a partir de seus objetivos propostos e efeitos inesperados. 

Um dos documentos que contém e provisiona ideias substantivas para um programa que pode sintetizar uma agenda de Grande Transformação do Brasil é a ENCÍCLICA LAUDATO SI’ do Papa Francisco, divulgada em junho de 2015. Conhecida como “O Cuidado da Casa Comum”, foi construída com a colaboração de mais de cem dos mais destacados cientistas do Mundo. Em seus diferentes capítulos, funciona como uma lanterna de popa para novas trajetórias de desenvolvimento da Humanidade.

A Encíclica defende uma Ecologia integral, uma vez que o ambiente humano e o ambiente natural se deterioram conjuntamente. Não estamos diante de duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas de uma crise que é, ao mesmo tempo, social e ambiental. “Estratégias para uma solução demandam uma abordagem integrada para combater a pobreza, restaurar a dignidade dos excluídos e, ao mesmo tempo, proteger a natureza”.

Pode-se observar essa tese central da Encíclica no caso da formação histórica das áreas economicamente deprimidas no Brasil. São áreas que incluem quase 1700 dos 5571 municípios brasileiros, caracterizando-se pelos altos índices de pobreza e de miséria de sua população, pelas elevadas taxas de desemprego e de subemprego, pela precária infraestrutura econômica e social. Essas áreas se localizam, principalmente, no Sertão e no Agreste do Nordeste, nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, no Norte de Minas Gerais, em quatro Microrregiões do Vale do Rio Doce, nas regiões historicamente desmatadas da Amazônia. A sua população (quase 60 por cento das famílias) sobrevive precariamente de mesadas das políticas sociais compensatórias (Bolsa Família, Lei Orgânica de Assistência Social, Previdência Social) e as suas Prefeituras de transferências fiscais (mais de 70 por cento da receita total) do Governo Federal.

O que há de comum entre essas áreas? O fato de terem historicamente usado, de forma predatória ou não sustentável, a sua base de recursos naturais renováveis e não renováveis, através do extrativismo vegetal e mineral. A degradação dos ativos e serviços ambientais em uma região no presente, significa uma população socialmente empobrecida e carente no futuro, com a sensível redução do seu potencial produtivo e da produtividade total dos fatores de produção. Assim, enquanto se cuida de políticas de estabilização para evitar a insolvência financeira do País, é preciso, simultaneamente, ter consciência de que “uma abordagem ecológica deve sempre se tornar uma abordagem social, deve integrar justiça social nos debates sobre meio ambiente, de tal forma a ouvir ambos o grito da terra e o grito dos pobres”.

Ainda não conseguimos adotar um modelo circular de produção, capaz de preservar os recursos naturais para as gerações presentes e futuras, limitando ao máximo o uso de recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando o seu uso eficiente, reuso e reciclagem. Não é possível manter e reproduzir o nível atual de consumo dos países desenvolvidos e dos segmentos mais ricos da sociedade, nos quais os hábitos de desperdício e de descarte atingiram níveis sem precedência. A exploração do Planeta já excedeu limites aceitáveis e ainda não se resolveram os problemas da pobreza e da miséria de muitos povos e grupos sociais. O processo de crescimento econômico deveria seguir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS).

O cidadão brasileiro tem percebido a crise ambiental em virtude das mudanças climáticas e da crise hídrica em muitas regiões do País. Não associa, contudo, essa crise com a necessidade de mudanças do estilo de vida, dos modos de produção e dos padrões de consumo. Muitas das pessoas pobres vivem em áreas particularmente afetadas por fenômenos relacionados com o aquecimento global e os seus meios de subsistência são amplamente dependentes das reservas naturais e dos serviços ecossistêmicos, como a agricultura, a pesca e a silvicultura. Na LAUDATO SI’, o Papa Francisco afirmou também que os efeitos mais graves de todos os ataques ao meio ambiente são sofridos pelos pobres.

A Encíclica não é apenas uma rigorosa análise da crise ambiental no Planeta mas propõe, também, as diretrizes e recomendações para as políticas públicas ambientais, as quais servirão de legado para as discussões e os compromissos que permearão a COP30.

No último capítulo de sua obra clássica de 1936, Keynes expressa o seguinte pensamento: “Mas, à parte esta disposição de espírito peculiar à época, as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o Mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das ideias”.

A comunidade científica, inúmeros empreendedores privados e muitas organizações não governamentais têm contribuído com um conjunto de ideias sobre programas e projetos de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Esses projetos têm o seu valor insubstituível pois:

  1. eles permitem que a exploração econômica da Amazônia mantenha a floresta em pé;
  2. eles apresentam rentabilidade financeira compatível com as regras de mercado e rentabilidade socioeconômica compatível com as regras de sustentabilidade ambiental;
  3. todos são compatíveis com novos ciclos de inovação científica e tecnológica prevalecente;
  4. todos têm escala de produção necessária para gerar emprego e renda suficientes para erradicar a pobreza da região, dentro do trilema global: crescer, distribuir e preservar.

Como o Governo Federal passa por uma profunda crise fiscal, tendo que cortar algumas despesas essenciais, há uma impossibilidade de atender a avalanche de demandas que advêm dos mais diferentes grupos sociais, segmentos produtivos, interesses regionais/locais da Região. Assim, novos projetos de desenvolvimento sustentável, ao serem formulados e executados, não podem depender significativamente do aporte de recursos fiscais do Governo Federal e dos Governos Estaduais. O Estado poderá ser indutor desses projetos, mas o núcleo central das despesas de implantação e de operação deveria ser desempenhado pelo Segundo e Terceiro Setor e por recursos advindos da cooperação e das parcerias com instituições públicas e privadas, interessadas na mobilização rentável das potencialidades socioeconômicas e socioambientais da Amazônia.

Muitos desses projetos do Segundo e do Terceiro Setor já foram profundamente avaliados por instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais sendo que alguns deles já se encontram em nível de análise de implementação ou de pré-viabilidade econômico-financeira. Como não se implementam ideias, mas programas e projetos de investimento gerados por essas ideias e como muitos países que participarão da COP30, em Belém, veem a Amazônia apenas do ponto de vista das mudanças climáticas sem reconhecer que ali estão milhões de brasileiros a passar por necessidades básicas, as nossas lideranças políticas, empresariais e comunitárias devem considerar a COP30 como uma oportunidade para a prática do planejamento para a negociação segundo as luzes da LAUDATO SÍ`. De outra forma, a COP30 estará na lista de muitas COPs que entraram na história como encontros científicos e culturais assinalados por compromissos que não se efetivaram e se diluíram ao longo do tempo.

A NOSSA CASA COMUM*

Atualmente, a LAUDATO SI’ é o documento sobre a crise ecológica mais importante para a Humanidade, por diversos motivos. A encíclica do Papa Francisco oferece um diagnóstico sintético sobre o que está acontecendo com “Nossa Casa Comum”, considerando as questões da água, da biodiversidade, do declínio na qualidade da vida humana, da desigualdade global e das respostas fracas e difusas às questões da poluição e da mudança climática. Oferece, também, as linhas de ação a serem seguidas a fim de que, com espiritualidade e educação ecológica, se estabeleça um novo diálogo sobre como construir o futuro do Planeta.

Mas, não se trata apenas de um relatório técnico abordando as raízes humanas da crise ecológica com a assistência de mais de uma centena dos maiores especialistas do Mundo nas questões dos ecossistemas e da biodiversidade. A Encíclica é escrita a partir das doutrinas das religiões, da luz oferecida pela fé, da sabedoria dos ensinamentos da Bíblia, do mistério do Universo, da mensagem de cada criatura na harmonia da Criação, da comunhão universal, da destinação comum dos bens, etc.

O Papa Francisco enfatizou a necessidade de um novo diálogo sobre como poderemos formatar o futuro do nosso Planeta. Propôs uma compreensão teológica da Natureza visando a definir uma convivência harmônica do Homem com a Natureza. Na origem do Mundo está o Criador, portanto o Criador precisa ser honrado em sua obra. Se não respeitarmos a obra do Criador não respeitaremos o próprio Criador.

O Papa Francisco enfatizou a necessidade de um novo diálogo sobre como poderemos formatar o futuro do nosso Planeta. Propôs uma compreensão teológica da Natureza visando a definir uma convivência harmônica do Homem com a Natureza. Na origem do Mundo está o Criador, portanto o Criador precisa ser honrado em sua obra. Se não respeitarmos a obra do Criador não respeitaremos o próprio Criador.

A Encíclica se inicia com uma breve resenha da atual crise ecológica a partir da melhor pesquisa científica disponível. Espera que deixemos os seus ensinamentos nos tocar profundamente e que possam prover um fundamento concreto para um itinerário ético e espiritual. Considera alguns princípios extraídos da tradição Judaico-Cristã que podem tornar nosso comprometimento com a Natureza mais coerente.

Ainda na apresentação da Encíclica, o Papa Francisco mostrou que há uma tradição na Igreja Católica e em outras religiões, quanto aos seus discípulos terem responsabilidade dentro da Criação e dever em relação à Natureza e ao Criador, uma parte essencial de sua fé. A Encíclica resume, nas primeiras páginas, alguns documentos e pronunciamentos das maiores autoridades religiosas que trataram das questões ecológicas do ponto de vista mais amplo e mais incisivo, com mensagens sobre os sintomas de doença evidentes no solo, na água, no ar e em todas as formas de vida. Podemos destacar:

  1. Papa Paulo VI: menciona (1971), em visita à FAO/UN, as trágicas consequências da atividade humana descontrolada; o risco de a Humanidade se destruir e tornar-se vítima dessa degradação devida à exploração irrefletida da natureza; o potencial de uma catástrofe ecológica decorrente de uma explosão efetiva da civilização industrial; a urgente necessidade de uma mudança radical na conduta da Humanidade pois, enquanto os avanços científicos mais extraordinários, as habilidades técnicas mais impressionantes e o mais surpreendente crescimento econômico não forem acompanhados de um autêntico progresso social e moral, eles definitivamente irão se voltar contra o próprio homem.
  2. Santo João Paulo II: afirma que os seres humanos parecem frequentemente não ver outro significado no seu ambiente natural a não ser o que serve para o seu imediato uso e consumo; que pouco esforço tem sido feito para salvaguardar as condições para uma autêntica ecologia humana; sustenta que todo esforço para proteger e melhorar nosso Mundo implica em mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo e nas estruturas estabelecidas de poder que hoje governam as sociedades – indicando uma convocação para uma conversão ecológica global; defende que todo desenvolvimento humano tem um caráter moral e pressupõe pleno respeito à pessoa humana e deve levar em consideração a natureza de cada ser e sua conexão mútua com um sistema ordenado.
  3. Bento XVI: propõe eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir modelos de crescimento que provaram ser incapazes de assegurar o respeito ao meio ambiente; aponta que o ambiente natural foi gravemente danificado tanto quanto o ambiente social devido à noção de que não há verdades indiscutíveis para guiar nossas vidas e, portanto, a liberdade humana é sem limites.
  4. Patriarca Bartolomeu: destaca a necessidade de cada um de nós arrepender-se das diferentes formas com que prejudicamos o Planeta; desafia-nos a reconhecer os nossos pecados contra a criação de Deus, ao degradar a integridade da terra, causando mudanças no clima, ao despojar a terra das suas florestas naturais ou ao destruir suas terras alagadas, ao contaminar as águas da Terra, suas áreas, seu ar e sua vida.

O Papa Francisco alerta que certo número de temas irá reaparecer no texto à medida que a Encíclica vai se desdobrando, embora cada capítulo tenha o seu próprio assunto e a sua própria abordagem. Como exemplo, cita a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do Planeta; a convicção de que tudo no Mundo está interconectado; a crítica aos novos paradigmas e formas de poder derivadas da tecnologia; uma convocação para pesquisar as formas de compreender a economia e o progresso; o valor próprio de cada criatura; o significado humano da ecologia; a necessidade de debate franco e honesto; a responsabilidade internacional séria assim como deve ser séria a política local; a cultura descartável e a proposta de uma nova vida. São questões que não são tratadas de uma única vez, mas reformuladas e enriquecidas repetidamente ao longo do texto da Encíclica.

A leitura da Encíclica deve se processar como uma proposta de Grande Transformação tanto na percepção que as pessoas têm da gravidade da atual crise ecológica do Planeta quanto na precária insuficiência das ações que os homens e mulheres vêm conduzindo para mitigar e evitar as catástrofes e os colapsos no meio ambiente. Não é apenas um documento que avalia as condições de bem-estar das sociedades nem um plano de ajustes nas políticas públicas ambientais. A Encíclica recusa a estabelecer um tipo de relacionamento desrespeitoso entre o Homem e a Natureza, no qual a Natureza é tão somente um mega almoxarifado de onde a sociedade humana extrai serviços e ativos ambientais para o seu consumo e deposita os resíduos e os dejetos de seu padrão de vida. Não aceita uma ideologia ambientalista que ingenuamente acredita que as forças desregulamentadas do mercado trarão o progresso tecnológico capaz de superar os processos de produção e de consumo intensivos de poluentes e de danos ecológicos.

O primeiro capítulo da Encíclica é dedicado a analisar o que está acontecendo com “Nossa Casa Comum”, onde se destaca o contraste entre a rapidez com que a atividade humana tem se desenvolvido e o ritmo naturalmente lento da evolução biológica. Felizmente, há uma crescente sensibilidade para o que ocorre no meio ambiente e a necessidade de proteger a Natureza, sempre se enfatizando que temos de descobrir o que cada um de nós pode fazer pela evolução do Planeta. Destacamos algumas das principais proposições da Encíclica sobre o que está ocorrendo com o nosso Planeta, nas quais se sente a maior contribuição do grupo de cientistas colaboradores:

  • a tecnologia, vinculada aos interesses empresariais, é apresentada como o único caminho para resolver os problemas de poluição, dos dejetos e da cultura do desperdício, mas de fato ela tem sido incapaz de perceber a misteriosa rede de relações entre as coisas e assim, algumas vezes, consegue resolver um problema somente para criar outros;
  • nosso sistema industrial, no fim dos ciclos de produção e de consumo, não desenvolveu a capacidade para absorver e reusar dejetos e resíduos; ainda não conseguimos adotar um modelo circular de produção capaz de preservar os recursos para as gerações presentes e futuras, enquanto limitamos ao máximo o uso de recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando o seu uso eficiente, reuso e reciclagem;
  • o clima é um bem comum, pertencente a todos e destinado para todos; a Humanidade é convocada a reconhecer a necessidade de mudanças de estilo de vida, produção e consumo para combater o aquecimento global ou pelo menos as causas que o produzem ou o agravam.
  • muitas das pessoas pobres vivem em áreas particularmente afetadas por fenômenos relacionados com o aquecimento global e os seus meios de subsistência são amplamente dependentes das reservas naturais e dos serviços ecossistêmicos, como a agricultura, a pesca e a silvicultura;
  • não é possível manter o nível atual de consumo nos países desenvolvidos e nos setores mais ricos da sociedade nos quais o hábito de desperdício e de descarte atingiu níveis sem precedência; a exploração do Planeta já excedeu limites aceitáveis e ainda não resolveu o problema da pobreza;
  • mesmo que a qualidade da água esteja constantemente diminuindo, em alguns lugares há tendência crescente, apesar da sua escassez, de privatizar esse recurso, tornando-o uma mercadoria sujeita às leis do mercado; contudo, o acesso à água potável é um direito humano básico e universal, desde que é essencial para a sobrevivência humana e, dessa forma, é uma condição para o exercício de outros direitos humanos;
  • os recursos da Terra estão também sendo pilhados por causa das abordagens de curto prazo da economia, do comércio e da produção; não basta, contudo, considerar as espécies simplesmente como “recursos” potenciais a serem explorados, esquecendo-se do fato de que têm valor em si mesmas;
  • na avaliação do impacto ambiental de qualquer projeto, a preocupação é com seus efeitos sobre o solo, a água e o ar; contudo, poucos estudos cuidadosos são elaborados sobre seu impacto sobre a biodiversidade, como se a perda de espécies ou animais e grupos de plantas fosse de pouca importância;
  • muitas cidades são imensas e ineficientes estruturas, de excessivo desperdício de energia e água; áreas vizinhas, até mesmo as que foram construídas recentemente, estão caóticas, congestionadas e carentes de espaço verde; muitas cidades cresceram desproporcionalmente e de forma desgovernada.
Startups selecionadas pelo programa de inovação climática irão ganhar apoio estratégico para participar da COP30 em Belém do Pará, em novembro.
Foto: Leandro Fonseca/Exame

Assim, a leitura do primeiro capítulo da Encíclica destaca o declínio da qualidade da vida humana e o colapso da sociedade através de diferentes indicadores de desenvolvimento sustentável. Como os seres humanos são criaturas deste Mundo, gozando o direito à vida e à felicidade e dotados de dignidade original, não podemos falhar em considerar os efeitos da deterioração ambiental sobre as vidas das pessoas, os modelos de desenvolvimento atuais e a cultura do desperdício.

Em uma avaliação criteriosa, observamos que os fundamentos doutrinários da LAUDATO SI’ são muito equilibrados. Muitos governos se propõem, através de planos, programas e projetos, a conceber e executar processos de desenvolvimento sustentável, os quais se baseiam no tripé dos objetivos de crescimento econômico globalmente competitivo com melhor distribuição de renda e de riqueza e com sustentabilidade ambiental. Internamente esse tripé não é, em princípio, espontaneamente integrado, no sentido de que ao se implementar um, outros serão também implementados.

Na verdade, ele é eivado de conflitos e contradições: o crescimento econômico acelerado pode levar à concentração de renda e de riqueza assim como à degradação ambiental; o avanço da pobreza pode usar predatoriamente os recursos ambientais (florestas, pescas, fertilidade do solo, etc.) no sentido de reconhecer apenas o seu valor de uso direto; uma postura radical das ideologias ambientalistas preservacionistas pode ter um custo de oportunidade para a sociedade em termos de geração de renda e emprego em diferentes projetos de investimentos.

A Encíclica defende uma Ecologia Integral, uma vez que o ambiente humano e o ambiente natural se deterioram conjuntamente e não se pode combater a degradação ambiental a não ser que se atinjam as causas da degradação social e humana. E que a pesquisa científica e a experiência cotidiana mostram que os efeitos mais graves de todos os ataques ao meio ambiente são sofridos pelos pobres. “Temos que ter consciência de que uma abordagem ecológica deve sempre se tornar uma abordagem social, deve integrar questões de justiça nos debates sobre o meio ambiente, de tal forma a ouvir ambos o grito da terra e o grito dos pobres”.

O conceito de Ecologia Integral é o eixo central em torno do qual giram as principais reflexões da LAUDATO SI’, tanto para analisar o que está acontecendo com nosso Planeta, como para definir as linhas de ação, visando à construção de novo relacionamento entre Homem e Natureza. O Papa Francisco apresenta a concepção de Ecologia Integral que não se limita a uma única dimensão dos problemas ambientais, uma vez que esses problemas estão muito interligados numa realidade ecológica ambiental, econômica, social e cultural. Como afirma: “A Ecologia estuda a relação entre os organismos vivos e o meio ambiente no qual se desenvolvem. Isto necessariamente implica reflexão e debate sobre as condições requeridas pela vida e pela sobrevivência da sociedade e a honestidade necessária para questionar certos modelos de desenvolvimento, produção e consumo”.

De que forma a Encíclica propõe o conceito de integração no tratamento das questões ecológicas? Os aspectos mais destacados podem ser enumerados:

  1. tudo está interconectado; tempo e espaço não são independentes um do outro;
  2. a fragmentação do conhecimento e o isolamento de partes de informações podem se tornar, na verdade, uma forma de ignorância, a menos que conhecimento e informação sejam integrados numa visão mais ampla da realidade;
  3. a Natureza não pode ser considerada como algo separado de nós ou apenas como um ambiente no qual vivemos; somos parte da Natureza, incluídos nela e em constante interação com ela;
  4. não estamos diante de duas crises separadas, uma ambiental e outra social, ao contrário, trata-se de uma crise complexa que é ao mesmo tempo social e ambiental;
  5. é essencial buscar soluções compreensivas, que considerem as interações dentro dos próprios sistemas naturais e com os sistemas sociais;
  6. estratégias para uma solução demandam uma abordagem integrada para combater a pobreza, restaurar a dignidade excluída e, ao mesmo tempo, proteger a Natureza.

A leitura completa da Encíclica nos conduz a um conjunto de reflexões para a formulação das políticas públicas indispensáveis visando o processo de desenvolvimento sustentável da Amazônia, destacando-se os parágrafos 141 a 146. Nesses parágrafos, o Papa Francisco enfatiza as questões que podem nos orientar quanto às diretrizes a serem analisadas e discutidas durante a COP30.

Há uma expectativa de que a COP30 não se limite a definir quais são as ações programáticas a serem executadas para conservar, preservar e reabilitar a Floresta Amazônica visando apenas ao controle das mudanças climáticas. Igual atenção deve ser dada às condições de vida dos brasileiros que vivem na Região. Daí a presença das ideias do Papa Francisco para iluminar corações e mentes.

Paulo Roberto Haddad
Paulo Roberto Haddad
Paulo Roberto Haddad é professor emérito da UFMG. Foi Ministro do Planejamento e da Fazenda no Governo Itamar Franco.

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