“A preparação do lado brasileiro para a realização da COP30 não deve se limitar a uma organização como se fosse apenas um encontro científico ou um festival cultural, mas também decidir e implementar um conjunto de ações planejadas para a promoção do desenvolvimento sustentável da Floresta e dos povos da Floresta, os cuidados de ‘nossa casa comum’ como oportunidade histórica.”
Por Paulo Haddad
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Este texto faz parte de uma série de dois artigos.
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“O perigo que nos confronta, portanto, é a rápida depressão do padrão de vida das populações Europeias até o ponto que significa a atual fome para alguns (um ponto já atingido na Rússia e aproximadamente atingido na Áustria).
J.M. Keynes – Consequências Econômicas da Paz (1919)
Os homens nem sempre morrem silenciosamente. Porque a fome, que traz alguma letargia e um desespero desamparado,
leva outros temperamentos à instabilidade nervosa de histeria e de louca aflição”.
“Ideias permitem que os agentes reduzam as incertezas e proponham uma solução particular para um momento de crise, e empoderam agentes para resolver determinada crise construindo novas instituições alinhadas com novas ideias”.
Mark Blyth (2015)
“Uma coisa é por ideias arranjadas; outra é lidar com país de pessoas de carne e sangue, de mil–e tantas misérias … De sorte que carece de se escolher”.
Guimarães Rosa
Apresentação
Há 40 anos exerço atividades de consultoria na Amazônia Legal, tendo iniciado na equipe que participou da organização administrativa de Rondônia quando o Território se tornou Unidade da federação no início dos anos 1980, prosseguindo até os dias atuais quando, como consultor do SEBRAE, elaborei uma análise das potencialidades de desenvolvimento sustentável do Estado do Acre, através da formação de um eixo de logística como saída das exportações brasileiras pelo Oceano Pacífico.
O que mais me impressionou, e ainda impressiona, nesses quarenta anos de convivência com a Região e com o seu povo é a ausência de um projeto de desenvolvimento sustentável para a Amazônia e como as demais regiões do País vêm tratando a Amazônia como um mega almoxarifado de recursos naturais.
A minha percepção é a de que o processo de integração nacional em direção ao Centro-Oeste e ao Norte do País, concebido como um projeto geopolítico pela Escola Superior de Guerra, representou, desde os anos 1970, uma arena espacial em que foram se formando historicamente grandes benefícios para a população brasileira (a migração bem sucedida para a exploração das áreas de Cerrado no Noroeste do País, a criação da Zona Franca de Manaus, a exploração capitalista de reservas minerais no Pará, etc.), mas também grandes danos socioambientais nos modos de produção adotados na Região (o aprofundamento dos regimes de desigualdades sociais, a degradação de muitos ecossistemas regionais, a formação de enclaves econômicos espaciais, etc.).
Falta na Região a concepção e a implementação de um conjunto de projetos de desenvolvimento sustentável, o qual se caracteriza pelos processos de crescimento globalmente competitivo, socialmente justo na distribuição dos frutos de crescimento e ambientalmente sustentável..
Quando da realização da COP30 – Belém, qual realidade socioeconômica ou socioambiental poderá ser observada pelos milhares de visitantes que irão comparecer à Reunião? Provavelmente, irá se destacar o esforço de reconstrução das políticas de desenvolvimento sustentável da Região pela atual administração do Governo Federal, após a desativação dessas políticas, de seus instrumentos econômicos e de seus mecanismos institucionais, induzidos por uma política de “porteira aberta” na gestão anterior.
Uma política que foi formulada dentro da ideologia do laissez-faire dos anos 1970, em uma concepção do que se denomina atualmente de “Economia Zumbi”, formada por ideias que já morreram mas que insistem em ficar entre nós, alimentadas por interesses velados da biopirataria empresarial que explora predatoriamente os recursos ambientais da Floresta, das Bacias Hidrográficas, da Biodiversidade. Essa política da “porteira aberta” hipertrofiou a organização das poderosas milícias amazônicas, a tal ponto que nos lembra o contexto de uma “região sitiada”.
Mas creio que que seria fundamental que, durante a COP, o Governo Federal apresente os resultados de um conjunto de projetos de desenvolvimento sustentável em andamento.
Neste texto, elaboramos 5 sugestões desses projetos, cientes de que, na Amazônia, não estamos diante de duas crises, uma ambiental e outra social, mas de uma crise que é, ao mesmo tempo, social e ambiental. Como afirma o Papa Francisco na Encíclica LAUDATO SÍ: “Estratégias para uma solução demandam uma abordagem integrada para combater a pobreza, restaurar a dignidade dos excluídos e, ao mesmo tempo, proteger a natureza”.
Introdução
Normalmente, quando a COP foi realizada em determinado país, houve uma particular atenção às questões ambientais desse país: quais são os principais indicadores que revelam o grau de preservação, de conservação e de recuperação dos ecossistemas locais e, principalmente, quais são as políticas públicas ambientais que são concebidas e implementadas e a sua efetividade operacional. No caso da COP de Dubai, a principal crítica apresentada por comentaristas e organizações não governamentais foi a de que a COP foi “tomada” por representantes de petroleiras que fizeram valer os seus argumentos conservadores nas decisões finais.
A COP30 – Belém terá como objetivo central impulsionar a implementação dos compromissos principais assumidos pelas diferentes nações quanto à promoção de processos de desenvolvimento sustentável, visando a controlar e a mitigar os desastres ambientais e as mudanças climáticas, assim como estruturar um valor de legado do Encontro para o progresso econômico e social da Amazônia.
A preparação do lado brasileiro para a realização da COP30 não deve se limitar a uma organização como se fosse apenas um encontro científico ou um festival cultural, mas também decidir e implementar um conjunto de ações planejadas para a promoção do desenvolvimento sustentável da Floresta e dos povos da Floresta, os cuidados de “nossa casa comum” como oportunidade histórica.
Não resta a menor dúvida de que um dos objetivos da COP30 será avaliar como o Governo do Brasil está cuidando da Amazônia e revertendo o seu processo histórico de degradação ambiental. Precisamos estar conscientes de que, na taxonomia de planejamento do desenvolvimento sustentável, a Amazônia se classifica como um problema regional de interesse internacional por causa das mudanças climáticas, e assim deverá ser tratado, procurando obter compromissos efetivos da comunidade internacional para a promoção de projetos de desenvolvimento sustentável na Região.
Na época da COP 30, a atual administração do Governo Federal já estará no terceiro ano do seu mandato. O grande trunfo a ser apresentado será a decisão político-institucional da reconstrução das políticas públicas ambientais para a Amazônia com os seus instrumentos e mecanismos operacionais, a retomada de alguns projetos de desenvolvimento sustentável da Região, maior respeito aos acordos e às convenções internacionais, a definição da questão ambiental como uma das prioridades máximas do Governo Federal.
Esse processo de reconstrução da intervenção direta e indireta do Governo Federal na Amazônia é fundamental, principalmente após a administração anterior ter adotado uma política de “porteira aberta” para a Região, ou seja, menor regulamentação; desrespeito à fiscalização das normas e das regras de sustentabilidade; desmonte e fragilização das instituições responsáveis pela conservação, preservação e reabilitação dos ecossistemas; entre outras sandices.
Amazônia: Interesse público versus interesses individuais
O que mais impressiona a opinião pública internacional, mais consciente e socialmente responsável, é o conformismo político da maioria dos formadores de opinião pública no Brasil quando da adoção de uma política ambiental do estilo laissez-faire do século passado. Talvez a explicação para essa postura conservadora de líderes empresariais, políticos e comunitários esteja na figura do homo oeconomicus que vem sendo forjada pelo capitalismo desde a sua origem, na fase final da Idade Média. Mas quem é o homo oeconomicus nas atuais economias mistas de mercado?
Albert Hirschman analisou o papel do interesse individual que se tornou funcional na formação das economias capitalistas desde o século XVI até os tempos atuais, considerando o tripé das funções do sistema: crescer, estabilizar e distribuir.
Ao longo do tempo foi se configurando um indivíduo isolado, orientado pelo interesse próprio, que escolhe, livre e racionalmente, entre os cursos alternativos de ação, após estimar os custos e os benefícios prospectivos para si, ignorando, ao mesmo tempo, os custos e os benefícios para outras pessoas e para a própria sociedade. Hirschman destaca dois elementos essenciais que caracterizam a ação impulsionada pelo interesse individual. Autocentrado, isto é, atenção predominante do ator para as consequências de qualquer ação quando consideradas para si mesmo. Cálculo racional, isto é, um esforço para avaliar custos, benefícios, satisfações prospectivas.
Enfim, o homo oeconomicus é produtor e consumidor, mas não pratica a cidadania. Em 1776, Adam Smith já afirmava: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm do seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles”.
O conflito entre o interesse público e os interesses privados no uso dos recursos ambientais da Amazônia pode ser ilustrado através do que o biólogo Garret Hardin denominou “a tragédia dos comuns” ou a tragédia dos bens comuns, por ele descrito através do seguinte exemplo:
“A tragédia dos bens comuns se desenvolve da seguinte forma. Imagine um pasto aberto para todos. Espera-se que cada pastor tentará colocar no pasto o maior número de gado possível. Tal arranjo poderá funcionar razoavelmente bem durante séculos, desde que conflitos tribais, caças furtivas e doenças mantenham o número de homens e animais bem abaixo da capacidade de suporte da terra.Finalmente, contudo, chega o dia do acerto de contas, isto é, o dia quando o longo e desejado objetivo de estabilidade social torna-se realidade. Nesse ponto, a lógica inerente dos comuns gera uma tragédia sem remorso”.
Como se verá no exemplo da Amazônia, a construção e o desenvolvimento de instituições que evitem a tragédia dos comuns (o acesso livre e irrestrito a recursos ambientais) pode ser politicamente construído, como foi no Brasil, particularmente a partir da Constituição de 1988.
Desmatamentos
O aumento exponencial dos desmatamentos que ocorreu na administração passada do Governo Federal pode ser considerado uma escolha política daqueles que estavam no poder em Brasília. Há, contudo, inúmeros brasileiros, politicamente progressistas ou conservadores, os quais têm manifestado a opinião de que tal situação não pode continuar. Qual é, então, a lógica econômica dos desmatamentos das florestas e matas prístinas?
As florestas são ativos ambientais renováveis, estocáveis ou armazenáveis, que prestam múltiplos serviços para a população em termos da produtividade total dos fatores de produção, assim como em termos de bem-estar social sustentável da população. Os serviços ambientais que podem ser ofertados pelas florestas se classificam em valor de uso direto (madeira, alimentos, bioenergia, matérias-primas, recursos genéticos, habitat humano, recreação, etc.) e em valor de uso indireto (filtragem das águas, proteção de bacias hidrográficas, ciclo de nutrientes, sequestro de carbono, qualidade de microclima, fertilidade e controle da erosão do solo, serviços de habitat fauna e flora, etc.
A questão básica é a de que apenas alguns desses serviços ambientais são, atualmente, transacionados em mercados estruturados. A maioria, contudo, tem valor para a sociedade, mesmo que não tenha preço de mercado. Oscar Wilde dizia que “o cínico é aquele que sabe os preços de todas as coisas, mas não sabe o preço de nada”. Quem paga, então, pelos custos de destruição do valor dos serviços ambientais, pelos desmatamentos e, também, pela poluição das águas por resíduos tóxicos e assoreamento provocados por garimpos ilegais?
Esses custos são transferidos para gerações futuras, as quais são tributadas direta (renda e propriedade) ou indiretamente (circulação de bens e serviços) para financiar as populações das áreas que se tornaram economicamente deprimidas pelo uso predatório de sua base de recursos naturais no passado. Essas áreas são constituídas, atualmente, por quase 1700 municípios no Nordeste e no Leste do Brasil (Sertão e Agreste do NE, Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, principalmente na Mata Atlântica) e no anel de desmatamento mais antigo da Amazônia (eixo Belém-Brasília).
As suas populações sobrevivem graças às políticas sociais compensatórias (cerca de 60% da renda disponível das famílias) e as suas prefeituras, graças aos fundos fiscais transferidos pelo Governo Federal (cerca de 80% das fontes de fundos).
O Estado deve servir como gestor dos interesses das futuras gerações, por meio de políticas públicas que utilizem mecanismos regulatórios ou de mercado, adaptando a estrutura de incentivos a fim de proteger o meio ambiente global e a base de recursos para as pessoas que ainda vão nascer. Mas, na situação político-administrativa, em que os próprios responsáveis pelo comando e controle das políticas ambientais demonstram elástica complacência com os desmatamentos, ou com garimpos ilegais há pouca expectativa de que haja racionalidade técnica e justiça intergeracional no uso de nossos ativos e serviços ambientais.
A esperança da opinião pública se concentra nas ações rigorosas e competentes dos três níveis de governo no Brasil para confrontar os crimes ambientais previstos no artigo 225 da Constituição Federal, como vem ocorrendo com efetividade pelo Poder Judiciário em sua atuação nos casos dos desastres socioambientais de Mariana e Brumadinho. Na LAUDATO SI’, o Papa Francisco afirma que “temos de ter consciência de que uma abordagem ecológica deve sempre se tornar uma abordagem social, deve integrar questões de justiça nos debates sobre meio ambiente, de tal forma a ouvir ambos o grito da terra e o grito dos pobres”.
Este artigo faz parte de uma série de dois artigos.
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Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior.
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