Os conceitos sobre o que seja a bioeconomia ainda não constituem um consenso, mas a ciência já mostrou o que não pode ser: a reprodução do agronegócio extrativista e de monocultura
Leia o artigo de introdução da última edição do Jornal da Ciência clicando aqui
Leia também “Um novo modelo de desenvolvimento econômico” clicando aqui
Os alertas para a necessidade de mudança dos modelos econômicos tradicionais em face da emergência climática vêm de longe no tempo. O romeno Georgescu-Roegen (1906-1994), matemático e estatístico de formação, que se iniciou em Economia em Harvard (1934-36), já questionava paradigmas das teorias econômicas tradicionais a partir de uma variável chave: a transformação de energia “útil” em energia “inútil”.
Em um artigo publicado em 2010 no Brazilian Journal of Political Economy intitulado “A economia ecológica e evolucionária de Georgescu-Roegen”, os pesquisadores Andrei Domingues Cechin e José Eli da Veiga mostraram como Georgescu-Roegen colocou os primeiros alicerces da economia ecológica, provocando, ao mesmo tempo uma ruptura científica desse campo de estudos.
“A ruptura maior está na admissão de que o processo de geração de ordem, que é o sentido da produção econômica vem necessariamente acompanhado da geração de desordem”, afirmam Cechin e Veiga. Isso inclui desde impactos ambientais locais até o fenômeno das mudanças climáticas antropogênicas. Na época, Georgescu-Roegen sofreu um cancelamento dos meios acadêmicos da economia. Hoje suas teses estão sendo reabilitadas e entrando para o centro do debate, não só na academia.
A economista Inaiê Takaes Santos, cofacilitadora do Grupo de Trabalho em Bioeconomia da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia afirma que foi Georgescu-Roegen quem primeiro trouxe a noção de bioeconomia. “Alguns pesquisadores conectam com a ideia do Georgescu-Roegen, da década de 70 que usou o termo
“bioeconomics” que se traduz para o português da mesma forma que “bioeconomy”, explica Santos. Por exemplo, no artigo citado de Cechin e Veiga (2010), encontra-se o termo “bioeconomics”, mas não “bioeconomia”. Por outro lado, um artigo mais recente – Vivien et al. (2018) – reconhece a diferença entre “bioconomics” e “bioeconomy”, mas os autores tomam a liberdade de considerá-los sinônimos para tecer uma crítica à forma como o termo “bioeconomy” vem sendo utilizado nos últimos anos. Ela vê nesse campo as primeiras associações do sistema econômico com a natureza. “Mas é um termo disputado nos últimos anos, e na Concertação a gente se deparou com esse problema, porque as pessoas estavam se referindo a coisas diferentes quando falavam de bioeconomia”.
De um lado, explicou, “existe a indústria do agronegócio, em especial a sucroalcooleira, conectada à produção de commodities agrícolas reivindicando fazer parte da bioeconomia”. De outro, um conjunto de organizações que trabalham com negócios comunitários, com associações de extrativistas na Amazônia, também se definindo como parte da bioeconomia, muitas vezes rejeitando o modo de produção de monocultura do agronegócio, da agricultura em larga escala.
Um grupo de estudos do qual a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) faz parte, em conjunto com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas (Sedecti/AM) elaborou seu próprio conceito que está exposto em uma nota técnica conjunta emitida em janeiro deste ano. Esta nota fala em “produção, fomento à produção, distribuição e consumo de bens e serviços provenientes de recursos da sociobiodiversidade”.Embora não exista um consenso sobre a definição de bioeconomia, já está mais ou menos pacificado que trata-se de um modelo econômico referenciado na preservação da biodiversidade. Essa condição impõe alguns limites, especialmente na região Norte do Brasil onde é apontada como alternativa de desenvolvimento socioeconômico.
O biólogo Adalberto Luís Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Adaptações da Biota Aquática da Amazônia (INCT/Adapta) explica de forma clara quais são esses obstáculos. Primeiro, a estruturação das cadeias de valor já existentes – por exemplo o açaí, a castanha do Brasil, o cacau, produtos naturais da região e os peixes pirarucu e o tambaqui precisam de atenção. “Uma coisa que me incomoda é que o Brasil tem, só na Amazônia, quase três mil espécies de peixes e nenhuma delas é usada como alimento no mercado mundial”, observa Val. Na verdade, é também pouco usada mesmo no Sul e Sudeste do País, o que demonstra, na visão dele, o desperdício de uma oportunidade econômica valiosa.
“O pirarucu cresce 15 kg no primeiro ano de vida. Não tem outro animal na face da Terra que cresça tanto no primeiro ano. Nem o boi, que para aumentar 15 kg, precisa de um espaço imenso, comparado ao espacinho que precisamos para criar o pirarucu”, diz.
Segundo, afirma Val, falta infraestrutura para o desenvolvimento de qualquer atividade econômica na região. Não há energia elétrica limpa no interior da Amazônia, o transporte de barco demora dias para o deslocamento até a capital Manaus e usa o caríssimo diesel e a exigência de transporte aéreo para algumas cargas torna tudo mais caro. “A gente precisa começar a estudar maneiras de desfragmentar essas cadeias de valor”, comentou.
Em terceiro lugar vem a Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) que, na visão do pesquisador do Inpa, é fundamental. No caso da aquicultura, por exemplo, as pesquisas em países como o Canadá e Estados Unidos envolvem processos metabólicos e fisiológicos dos animais com objetivo de ganhos metabólicos, ou seja, fazer com que o alimento ingerido tenha uma taxa de conversão maior para produção de carne.
“Nós também precisamos fazer pesquisas disruptivas, mas o sistema hoje induz você a fazer coisas repetitivas”. Ele se refere às políticas de incentivo à pesquisa que, além de cortes orçamentários se apoiam em critérios que não incentivam a bioeconomia. “Se você mandar hoje um projeto para uma agencia de apoio a pesquisa para desvendar por que o pirarucu cresce rápido e esse projeto for para o comitê de aquicultura, eles vão dizer que isso é fisiologia e você não é contemplado com apoio. Ou seja, o conceito de aquicultura hoje precisa incorporar tecnologias modernas, biotecnologia, precisa ter informações que sejam disruptivas dentro desse sistema. Enquanto não avançarmos com essas coisas vai ser muito difícil a gente ter uma espécie de peixe no mercado internacional e fazer dinheiro, inclusão social e geração de renda”.
O engenheiro agrônomo Elíbio Leopoldo Rech Filho reforça o papel da CT&I como fundamental no estudo da constituição e da sinergia dos biomas entre si e com o agronegócio. Pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e coordenador do INCT Biologia Sintética, Rech acredita que encontrar essa equação é o que dará sustentabilidade de longo prazo para que o Brasil possa ocupar espaços competitivos no segmento.
“Bioeconomia para mim, em poucas palavras é isso, a equação de desenvolvimento para geração de progresso incluindo ser humano, saúde, escola, respeito ao meio ambiente, uso sustentável, acesso a crédito”, concluiu Rech. Ele alerta ainda para “avaliações puramente econômicas” sobre a bioeconomia que desconsideram a fragilidade do ambiente e a presença humana no cenário. “É preciso ver como está vivendo aquela comunidade que está extraindo açaí (por exemplo) dentro do processo da bioeconomia”, questiona.
“Acho que a bioeconomia é o rumo da solução para um problema econômico ambiental e social profundo que o mundo está vivendo hoje em dia”, afirma Daniel Vargas, doutor em Direito e coordenador do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Ao longo dos últimos séculos, as empresas e os países cresceram em cima de um custo oculto, que era o uso indiscriminado de recursos naturais, explica Vargas. “Hoje pagamos a conta na forma de inundações, degelo do ártico, queimadas na Amazônia, aumento na temperatura e instabilidade climática”. O desafio que se coloca agora é a compreensão desse problema e como internalizar esse custo oculto dentro do modelo de negócios das empresas e dos projetos dos países. Para o professor da FGV, entre os desafios que o mundo se coloca para acelerar essa passagem para uma economia verde, descarbonizada, talvez o mais central eprioritário de todos é o do avanço científico e tecnológico. “Em todos os setores que a gente debate como as mudanças climáticas impactarão e como nós devemos nos adaptar, existe uma tarefa fundamental para a ciência que precisa ser desdobrada e desenvolvida e isso vai desde ajudar o mundo a de fato criar novas fontes e maneiras de usar energia de forma mais eficiente, até o desenvolvimento de bioinsumos, de técnicas, de formas de manejo, de tecnologias do uso do solo para compreender sua riqueza. E isso passa pela tecnologia”
O conhecimento científico é a chave também para desbravar e revelar os mistérios da Amazônia para convertê-la de fato em um manancial de soluções para os problemas da sociedade no Brasil e em outros países, opina Vargas.
“Tentar separar essa tarefa científica do desafio climático, dos problemas econômicos e sociais é um erro”, diz o professor da FGV. E acrescenta: “o que nós precisamos é o contrário, aproximar e conectar de forma cada vez mais orgânica e profunda a tarefa científica com a tarefa ambiental, econômica e social que estão colocadas diante de nós”.
Elizabeth Farina, diretora executiva da organização WRI Brasil, acrescenta a necessidade de levar em conta as necessidades locais, inclusive de capacidade institucional de governança, restrições orçamentárias e capacidade de retorno de investimentos possíveis nos territórios amazônicos, em especial aqueles com maiores níveis de desmatamento, conflitos agrários e presença de unidades de conservação.
“Marcos regulatórios também são importantes instrumentos para a governança no setor de bioeconomia e devem refletir as características que potencializem as iniciativas econômicas conectadas à sociobiodiversidade amazônica”, afirma Farina. Dentro desse conceito, a executiva do WRI acrescenta que customizar as noções de bioeconomia em voga mundialmente para a realidade e as aspirações dos nove Estados da Amazônia Legal é extremamente importante para garantir que os recursos tenham os efeitos esperados: desmatamento evitado, valorização das comunidades tradicionais e recomposiçãodas florestas.
Sem ciência, conclui Daniel Vargas, “o teto é baixo e insuficiente pra gente de fato conseguir completar esse desafio que o mundo nos coloca de realizar a transição
para uma sociedade descarbonizada”. (JR)
Comentários