O desregramento ambiental está crescendo no Brasil. Deixou de ser a devastação infralegal que ocorria no âmbito do governo federal e ministérios. Agora não são só decretos, portarias e despachos. Há um novo patamar de devastação normativa, o desregramento legislativo.
A Câmara Federal, na contramão da sustentabilidade, aprovou a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3.729/2004), que seguiu para o Senado. A aprovação foi um inequívoco retrocesso. Revela uma Câmara Federal capturada pelo negacionismo, sem apresentar justificativa ou motivação técnico e científica. O desregramento, que tem sido o foco, o objetivo e o modus operandi do governo de Jair Bolsonaro, ganhou espaço dentro do Congresso Nacional, depois das negociações com o chamado Centrão, meio político inconsistente e amorfo que se pauta no toma lá dá cá.
As comissões especiais de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e de Constituição, Justiça e Cidadania perderam suas características essenciais. Sua missão, tanto no que se refere à clareza sobre a obrigatoriedade da proteção do meio ambiente, assim como o respeito aos preceitos fundamentais garantidos na Constituição Federal, foram obscurecidos na onda negacionista. Essa fase nociva sacrifica os interesses difusos dentro do caldeirão dos conflitos de interesse que se abrigam na Câmara Federal, transformada em suporte político do Executivo, como consequência das negociações de verbas e cargos.
Setores econômicos privados serão agora premiados com licenças facilitadas para espoliação imediata e lucro fácil, na linha do business as usual, ou seja, os negócios como sempre foram, onde poucos se locupletam sem se preocupar com o respeito ao patrimônio ambiental público, direito de todos. Até os agentes financiadores foram beneficiados com facilitações.
Aristóteles dizia que a democracia se retrata da igualdade e que quanto maior for a igualdade maior será a democracia. Não resta dúvida que o cenário ambiental brasileiro tem caminhado para privilegiar a desigualdade, na medida em que premia grupos de interesse em detrimento da coisa pública.
Depois de desregrar o licenciamento ambiental, um dos maiores e mais democráticos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, surge uma segunda onda já sinalizada pelo governo de Jair Bolsonaro, que é a regularização fundiária das áreas públicas na Amazônia, que foram objeto de grilagem. Trata-se do PL 510/2011, herdeiro da MP 910/2020 do Executivo federal, que caducou por decurso de prazo.
As iniciativas de desregramento promovidas pelo Planalto não só invadiram o poder legislativo, mas também afetam outras áreas importantíssimas e vitais para o Brasil: seus compromissos internacionais. Tratados como a Convenção da Diversidade Biológica e o Acordo de Paris têm sua implementação impossibilitada diante do depauperamento do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), que depende do bom funcionamento do Ibama para garantir controle sobre atividades ilícitas. A falta de execução de multas e meios apropriados de fiscalização ambiental deixam à solta a ilegalidade na Amazônia, livre para desmatar, garimpar e extrair madeira.
Estão sendo inviabilizadas as metas brasileiras assumidas junto à comunidade internacional. Os dados atuais representam total perda de controle governamental: o desmatamento na Amazônia continua crescendo, mesmo antes do período anual considerado como sendo o mais crítico. A devastação atingiu 778 km², o maior índice em 10 anos para o mês de abril.
No plano da participação social, a convenção de Aarhus, que trata de Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Meio Ambiente, está em pleno vigor na União Europeia, com a adesão de vários países. O Brasil está atrasado em aderir, em que pese sua Constituição ter por pilares a participação social, especialmente em matéria de meio ambiente, que é um direito de todos — assim como também é o dever de todos protegê-lo.
O governo de Jair Bolsonaro se opõe ao crescimento da gestão participativa em matéria ambiental, assim como outras áreas vitais associadas, como a de direitos humanos, como ficou demonstrado na destruição a que foi submetido o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). O governo segue condenado pelo STF a reformular seu Decreto nº 9.806/2019 e reestruturar a participação social, assim como a restaurar ditames constitucionais de proteção ambiental.
A relatora do processo, ministra Rosa Weber, expressou em seu voto: “O Estado brasileiro tem o dever – imposto tanto pela Constituição da República quanto por tratados internacionais de que signatário – de manter política pública eficiente de defesa e preservação do meio ambiente, bem como de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais”.
O Brasil atravessa um período obscuro de desregulamentação ambiental, plasmado na perda dos instrumentos legais e de gestão que poderiam estar garantindo integridade do patrimônio ambiental público e a sustentabilidade das futuras atuais e gerações. Estamos presenciando o dano moral com a perda de espécies endêmicas e uma devastação sem freios. Ademais, nos vemos reduzidos a uma sociedade sem o contrapeso da normalidade democrática decorrente da separação dos poderes, situação agravada por conflitos de interesse e a falta de plena participação social.
Montesquieu, ao versar sobre a tripartição e as atribuições dos poderes, defendia a tese de não deixar em uma única mão as tarefas de legislar, administrar e julgar, já que a concentração de poder tende a gerar o abuso. Estamos vivendo o pesadelo de Montesquieu. O Brasil sofre nas mãos de um administrador de plantão que demonstra tendências de negação à ciência e aos mecanismos de transparência, portanto aos princípios, justificativas e motivações que devem reger a boa administração pública. Por meio da concentração de poder, garantido pela distribuição de verbas e barganhas políticas, influencia alterações legislativas em benefício de seus apoiadores.
Nestes dias obscuros, o futuro do patrimônio ambiental brasileiro encontra-se depositado na dignidade e integridade das forças independentes e fiéis à democracia que resistem na Câmara Federal e que não cederam às benesses de verbas e cargos promovidas pelo Executivo. Há de se parar o desregramento da normatização que atinge a essência do Capítulo do Meio Ambiente da Constituição Federal – e esta tarefa deverá ser cumprida pelo Poder Judiciário, que certamente será devidamente provocado pelas forças vivas da sociedade.
Fonte: O Eco
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