O projeto de pesquisa que analisou os dados sobre os incêndios na Amazônia e El Niño é o maior aplicado em recursos hídricos no Brasil, com foco nas águas subterrâneas
Por meio de imagens de satélite e dados históricos sobre queimadas, um grupo de pesquisadores concluiu que em regiões que recebem a ação de fenômenos climáticos como o El Niño e o armazenamento de água subterrânea já está comprometido, a seca é agravada e o risco de incêndios torna-se maior. A boa notícia é que a análise permitiu o desenvolvimento de uma ferramenta que, no futuro, poderá ser usada para planejar ações preventivas e mitigar os impactos dos incêndios florestais na Amazônia, um dos biomas mais importantes do planeta.
Publicado na revista Science of the Total Environment, o estudo, que tem como base dados de 2004 a 2016, revela que as secas extremas e consecutivas associadas ao El Niño causaram uma redução significativa na umidade em três níveis: solo superficial, zona das raízes das árvores e águas subterrâneas. O armazenamento de água subterrânea foi o mais severamente afetado e leva mais tempo para se recuperar, destacando a vulnerabilidade desse “reservatório” crítico em períodos de seca prolongada.
Além disso, incêndios florestais provocados por atividades humanas (antropogênicos) alteraram a dinâmica da vegetação amazônica, funcionando como “ignições” para o fogo. A escalada das queimadas está intimamente ligada às condições climáticas, porém, combinados, os fatores humanos e fenômenos naturais intensificam os riscos à floresta tropical.
O que é o El Niño?
El Niño é um fenômeno climático caracterizado pelo aquecimento anormal das águas superficiais e sub-superficiais do Oceano Pacífico Equatorial. O termo, derivado do espanhol, refere-se às águas quentes que aparecem na costa norte do Peru por volta do Natal, sendo chamado pelos pescadores locais de Corriente de El Niño, em alusão ao Menino Jesus.
Atualmente, as anomalias climáticas conhecidas como El Niño e La Niña são identificadas como alterações no sistema oceano-atmosfera no Pacífico tropical. Essas mudanças têm impactos globais, influenciando padrões climáticos, como aumento de secas, inundações e alterações na temperatura, afetando ecossistemas e comunidades em várias partes do mundo.
Metodologia do estudo
Para caracterizar a seca hidrológica, os pesquisadores utilizaram dados de satélite da missão GRACE (Gravity Recovery and Climate Experiment), que detecta o armazenamento total de água terrestre, Foi a combinação de informações sobre umidade do solo, águas superficiais e subterrâneas e seu cruzamento com a gravidade da seca em cada local analisado o que permitiu identificar áreas com menor concentração de umidade, especialmente no nordeste da bacia amazônica, e uma tendência de redução em direção ao leste.
Os resultados mostraram que as maiores áreas queimadas coincidiram com regiões afetadas por secas severas durante eventos extremos de El Niño, especialmente entre 2015 e 2016, quando o fenômeno foi um dos três mais intensos já registrados (junto com os de 1982/83 e 1997/98). O El Niño de 2023/2024 está entre os cinco mais fortes da história, segundo a Organização Meteorológica Mundial (WMO).
Em agosto, um grupo internacional de pesquisadores lançou o primeiro relatório State of Wildfires, destacando que os incêndios florestais na Amazônia Ocidental, que abrange Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia, entre março de 2023 e fevereiro de 2024, foram amplamente impulsionados por secas prolongadas associadas ao El Niño. Essas condições explicaram 68% dos incêndios na região, enquanto os outros 32% foram atribuídos a atividades humanas, como desmatamento, práticas agrícolas e fragmentação de paisagens naturais.
“Sabemos que as queimadas na Amazônia têm origem antrópica. No entanto, quando há o registro de um El Niño mais intenso, como ocorreu em 2016, que investigamos, e novamente em 2024, as secas meteorológicas e hidrológicas tornam-se mais severas na floresta. Nessas condições, a vegetação depende intensamente da água subterrânea para sobreviver. As árvores menores, com raízes menos profundas, são as primeiras a sofrer com a falta de água”, diz Bruno Conicelli, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), autor correspondente da pesquisa.
Manejo de riscos futuros
Com base nos resultados do estudo, os pesquisadores estão desenvolvendo um índice de risco de incêndios adaptado às condições específicas da região amazônica. Esse índice combina indicadores meteorológicos, como dados sobre chuvas, com indicadores hidrológicos, que incluem informações sobre a disponibilidade de água no solo, rios, aquíferos e outras reservas. O modelo, além de auxiliar na previsão e prevenção de incêndios florestais na Amazônia, tem o potencial de ser aplicado em outros ecossistemas, fornecendo uma ferramenta valiosa para a gestão de riscos ambientais em diferentes contextos climáticos e geográficos.