A recente redução de alíquotas do IPI no Brasil tem acarretado uma confusão em face do que é determinado pela Constituição como proteção à Zona Franca de Manaus, o que tentarei esclarecer em breves linhas.
Por Fernando Facury – Conjur
O IPI é um imposto da União cuja base de incidência econômica é o consumo, à semelhança do ICMS (estadual), do ISS (municipal) e das travestidas contribuições federais PIS e Cofins (federais), com a característica de juridicamente incidir sobre a produção. Trata-se de um tributo essencialmente regulatório, o que faz com que suas alíquotas possam ser modificadas através de decretos (ato do presidente da República), nos limites da lei (ato do Congresso), conforme o artigo 153, §1º, CF, e sem precisar cumprir o princípio da anterioridade (artigo 150, §1º, CF).
Logo, a redução das alíquotas do IPI pode ocorrer por ato do presidente da República, através de decretos, sem ser necessária a anuência do Poder Legislativo, com vigência imediata. Isso impacta diretamente a receita de estados e municípios, pois cerca de 50% do que é arrecadado pela União é transferido para esses entes federados por força da Constituição — o que caracteriza uma cortesia com o chapéu alheio.
O presidente reduziu o IPI de diversos produtos através de vários, sucessivos e atabalhoados decretos, gerando uma confusão jurídica em relação aos produtos elaborados na Zona Franca de Manaus.
Foi editado o Decreto 11.047 (de 14/4/22), que foi revogado pelo Decreto 11.055 (de 28/4/22), igualmente revogado pelo Decreto 11.158 (de 29/7/22), que coexiste com o Decreto 11.052 (de 28/4/22) reduzindo o IPI para diversos produtos no Brasil.
O estado do Amazonas propôs em 22/4/22 a ADI 7.147, sob relatoria do ministro André Mendonça, contra o Decreto 11.047/22. Não foi concedida liminar e essa ADI foi extinta em face da revogação desse decreto, por perda de seu objeto.
O partido político Solidariedade ingressou em 1º/5/22 com a ADI 7.153, contra os decretos acima mencionados, vários dos quais sucessivamente revogados. Seu relator, ministro Alexandre de Moraes, em 6/5/22 deferiu o pedido suspendendo os efeitos dos Decretos 11.052, 11.047 e 11.055, “apenas no tocante à redução das alíquotas em relação aos produtos produzidos pelas indústrias da Zona Franca de Manaus que possuem o Processo Produtivo Básico, conforme conceito constante do artigo 7º, §8º, b, da Lei 8.387/1991”, que se refere ao Decreto-Lei 288/67.
Posteriormente, no âmbito da mesma ADI 7.153, em face do novo decreto editado (Decreto 11.158/22) e da revogação dos anteriores, o ministro Alexandre de Moraes proferiu em 8/8/22 novo despacho suspendendo seus efeitos “apenas no tocante à redução das alíquotas em relação aos produtos produzidos pelas indústrias da Zona Franca de Manaus que possuem o Processo Produtivo Básico, conforme conceito extraído do artigo 7º, §8º, b, da Lei 8.387/1991, inclusive quanto ao aos insumos catalogados no código 2106.90.10 Ex01 da TIPI (extratos concentrados ou sabores concentrados)”.
Em 24 de agosto foi editado pelo presidente da República novo decreto, de nº 11.182, reduzindo o IPI de outros produtos, que já foi submetido à análise do STF no âmbito da ADI 7153, ainda sem pronunciamento judicial.
É notória a enorme insegurança jurídica gerada pelo Poder Executivo, pois não é usual a edição de tantos sucessivos decretos de forma sequencial em tão pouco tempo, alguns deles editados e revogados poucos dias após. Por outro lado, a causa da judicialização é que a Zona Franca de Manaus tem tratamento jurídico diferenciado conforme previsto na Constituição, sendo que o STF apenas reconheceu tal proteção.
De fato, o artigo 40 do ADCT estabeleceu que a Zona Franca de Manaus, com suas características de área de livre comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, perdurará por 85 anos, contados da promulgação da Constituição (artigos 92 e 92-A, ADCT). Isso foi inserido na Constituição pelo Congresso, goste-se ou não. A ideia é a de proteção daquela zona produtiva, nos moldes que se encontrava em vigor em 1988, o que é objeto de discussão em diversas ADIs (310, 2.348, 1.799 e 5.902, entre outras).
Considerando esse quadro, a situação atual é a seguinte: 1) A redução das alíquotas do IPI está valendo para todos os produtos mencionados nos decretos em vigor; 2) exceto para aqueles bens que são também produzidos na Zona Franca de Manaus.
Aqui se encontra o problema que gera insegurança jurídica: quais são os bens produzidos na Zona Franca de Manaus, que “possuem o Processo Produtivo Básico, conforme conceito constante do artigo 7º, §8º, ‘b’, da Lei 8.387/1991″, consoante determinado pelo ministro Alexandre de Moraes nas liminares concedidas na ADI 7.153?
O estado do Amazonas, que havia proposto a ADI 7.147, julgada extinta pelo ministro André Mendonça, “atravessou” uma listagem nos autos da ADI 7.153, que permanece tramitando sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, informando os produtos que entende ter havido redução indevida.
Ocorre que o presidente da República (Ministério da Economia) não validou a lista dos produtos apresentada pelo governo do estado do Amazonas (ID 78 a 80), que permanece “flutuando nos autos”, sem convalidação oficial, o que gera nova insegurança jurídica. Se a lista amazonense tivesse sido validada, ou qualquer outra tivesse sido apresentada pela União, o problema teria sido equacionado.
Um caso concreto ajudará a compreender a situação: uma indústria situada “fora” da Zona Franca de Manaus produz o bem X, que é também produzido por empresa situada “dentro” da referida zona — ambas concorrendo dentro do mercado nacional. Em 1988, a alíquota de IPI para esse produto era 0%.
Em 2002, para aumentar a arrecadação, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, por decreto, aumentou a alíquota do IPI para 15%, apenas para o referido produto produzido “fora” da zona, o que gerou distúrbio concorrencial. Agora, por meio dessa enxurrada de decretos do atual presidente, a alíquota foi reduzida para 9,75%. Dúvida: qual a alíquota correta a ser aplicada, considerando que o produto está na lista informalapresentada pelo estado do Amazonas nos autos da ADI 7.153, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes? A insegurança jurídica é enorme em face da omissão da União para definir se a lista amazonense é válida ou não.
A opção “conservadora” é usar a alíquota atual, de 15%, sem a redução, o que gera maior preço ao consumidor final. A opção “arriscada” é usar a alíquota de 9,75%, sob pena de não ser convalidada pela União a lista indicada pelo estado do Amazonas, correndo a empresa o risco de vir a ser obrigada a pagar o diferencial de alíquota, além de penalidades, caso o presidente da República (Ministério da Economia) não acatar a lista informal apresentada pelo estado do Amazonas ao STF, e ser mantida a alíquota de 15%.
Considerando que durante o governo FHC a alíquota desse produto passou de 0% para 15%, por qual motivo, agora, não se pode baixar de 15% para 9,75%, pois mantida a diferença competitiva prevista na Constituição para a Zona Franca de Manaus? Entre 1988 e 2002 a alíquota do produto era 0%, produzido onde quer que fosse.
Enfim, é necessário que a Presidência da República se entenda, através dos diversos órgãos envolvidos, Ministério da Economia e Advocacia-Geral da União (AGU), validando ou não a lista apresentada informalmente pelo estado do Amazonas na ADI 7.153. Enquanto isso não ocorrer, o problema envolvendo a redução da alíquota do IPI referente aos produtos que tambémsão produzidos na Zona Franca de Manaus não será resolvido — e a insegurança jurídica permanecerá nesse setor da economia.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Texto publicado originalmente em CONJUR
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