O grupo AgroSaber, ligado ao agronegócio, publicou no último domingo (22/8) em parceria com o jornal O Estado de S.Paulo um anúncio de duas páginas com dados de um suposto estudo que calcula “impacto negativo de R$ 1,95 bilhão em Mato Grosso” com a ampliação ou criação de terras indígenas, caso o STF rejeite a tese do “marco temporal”. Esses dados, porém, só estão disponíveis na peça publicitária. Apontado como autor do estudo, o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) foi procurado por Fakebook.eco e afirmou que o trabalho “tem caráter confidencial”. “Por questões contratuais, não podemos repassá-lo”, acrescentou a coordenadora de Desenvolvimento Regional do Imea, Vanessa Gasch, sem informar quem pagou.
Os dados foram contestados pelo Observatório Socioambiental de Mato Grosso (leia abaixo).
O AgroSaber é uma “inciativa conjunta da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa) e da Companhia das Cooperativas Agrícolas do Brasil (CCAB Agro)”, segundo informações que constam em seu site.
Procurada, a Abrapa informou, porém, que “não tem nenhuma relação com o referido anúncio ou com o estudo mencionado”. Já a CCAB Agro respondeu que “já patrocinou, mas não patrocina mais a plataforma AgroSaber”. “Quanto ao estudo, não temos vínculo de qualquer ordem com sua origem, desenvolvimento ou resultados”, acrescentou a CCAB Agro.
Não há contatos de e-mail ou telefones no site do AgroSaber. Foram enviadas perguntas por meio da caixa de mensagens do site, mas não houve resposta até a publicação deste texto. Na seção ”O que é o AgroSaber?” consta também o logo da Associação Matogrossense dos Produtores de Algodão (Ampa), além das duas entidades já citadas, mas não há informação sobre qual seria sua participação no grupo. Procurada, a Ampa também informou que não tem o estudo citado no anúncio.
O site do Estadão informa que o “conteúdo” foi “criado em parceria com patrocinadores” e é “de responsabilidade do anunciante”. Publicado em formato de notícia, o anúncio inclui uma “entrevista” com o ex-ministro Aldo Rebelo em que ele ataca ONGs e defende o chamado marco temporal, tese segundo a qual indígenas que não estivessem ocupando suas terras em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, perderiam o direito à demarcação.
Com base no suposto estudo, o anúncio afirma que “4,42 milhões de hectares devem se tornar terras indígenas” em Mato Grosso caso o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeite a tese do marco temporal. O julgamento começou nesta quinta-feira (26/8), após 12 anos de tramitação. Para acompanhar o julgamento, mais de 6.000 indígenas foram a Brasília e se reuniram no Acampamento Luta Pela Vida – considerado a maior manifestação indígena do país desde 1988. A apreciação do Marco Temporal, no entanto, foi adiada mais uma vez para a próxima quarta-feira, dia 1º.
Em nota de repúdio, o Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT) contestou os números apresentados: “Hoje, de acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), Mato Grosso conta com pelo menos 31 processos de reivindicação de reconhecimento de terras indígenas e 16 com o status formal ‘em estudo’, sem qualquer informação sobre seu perímetro. Ou seja, os números voluptuosos propagandeados pelo jornal são mera especulação.”
De acordo com o anúncio, a suposta perda de terras resultante da rejeição da tese jurídica causaria “declínio de 4,37% na soja produzida no Estado, 4,16% no milho, 2,31% no algodão em caroço, e 4,72% na produção de carne bovina”.
“O texto omite que o processo de demarcação de terras indígenas se baseia em critérios claros definidos no Decreto 1775/96, que regulamentou o procedimento calcado em princípios de legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”, acrescenta o Observa-MT.
O Observatório afirma que a alegação de que 30% da população de Mato Grosso seria afetada pelas demarcações de terras indígenas “estabelece uma interpretação fantasiosa dos conflitos fundiários e da produção de commodities de exportação”.
“Esta afirmação também omite os interesses privados por trás dos conflitos fundiários em terras indígenas. Esses conflitos não envolvem todos os moradores dos municípios, mas sim os poucos que reivindicam propriedade em terras indígenas”, acrescenta o Observa-MT, citando dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR). “A base de dados oficiais do governo brasileiro apresenta hoje um número de mil cadastros sobrepostos a terras indígenas, o que significaria 0,02% da população mato-grossense se ainda fosse demonstrado que os indivíduos em questão são mato-grossenses, e representam menos de 1% dos imóveis rurais do estado.”
Mesmo que o estudo exista, venha a ser divulgado e seus dados sobre supostos prejuízos sejam corretos, eles precisam ser colocados em contexto. Para comparação, só o plantio fora de época do milho em Mato Grosso em 2021 deverá causar perdas superiores a 20% na safra deste ano, segundo a Aprosoja-MT. E apenas entre fevereiro e março deste ano as chuvas excessivas no Estado causaram prejuízo de R$ 1,3 bilhão somente aos sojicultores, segundo o mesmo Imea.
“Qualquer debate precisa se basear em dados e fatos transparentes. Logo, sem acesso ao estudo citado no encarte publicitário do Estadão de domingo não existe diálogo democrático. Se adicionar a isso o fato de que as informações publicadas são incompatíveis com os dados que temos e com a legislação atual, chegamos à fórmula de fabricação de fake news: informações infundadas, falaciosas e distribuídas em massa”, afirmou Alice Thuault, diretora-adjunta do ICV, integrante do Observa-MT.
O julgamento pelo STF de uma reintegração de posse ajuizada pelo governo de Santa Catarina contra os xokleng servirá de referência para todos os casos semelhantes em andamento no Judiciário. Segundo indígenas e indigenistas, se aprovada, a tese defendida pelo agronegócio vai inviabilizar ou prejudicar a demarcação de mais de 700 territórios no país, em andamento ou ainda não iniciados.
Fonte: O Eco
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