“Como avaliar o sistema capitalista brasileiro do ponto de vista de uma Grande Transformação para superar os problemas estruturais do País? Como ampliar o campo de oportunidades dos jovens que vêm se graduando em um sistema educacional de acessibilidade cada vez mais democrático? Como erradicar a pobreza extrema e atenuar a distribuição da renda e da riqueza?”
Por Paulo Haddad
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O QUE FAZER?
A COMPLACÊNCIA NEOMALTHUSIANA
Em 1798, o Reverendo Robert Malthus analisou a questão do desequilíbrio entre a expansão geométrica da população e o crescimento aritmético da produção de alimentos como uma causa inevitável da miséria de algumas classes mais pobres da sociedade. Embora tenha apresentado obstáculos positivos e obstáculos preventivos que pudessem atenuar esse desequilíbrio, acreditava que o reequilíbrio se daria pelas condições de miséria, fome e morte, que se deterioravam pela insalubridade nas moradias e nos locais de trabalho, que facilitavam a propagação de epidemias e de pestes.
A história mostrou que suas projeções estavam equivocadas tanto em termos de taxas de mortalidade e de natalidade quanto na subestimativa do gigantesco progresso tecnológico da agropecuária ao longo do século 20. No entanto, os seus argumentos sinistros reaparecem em situações de grandes crises socioeconômicas e socioambientais, criando uma desconfiança quase fatalista e ingênua de que, em determinados contextos, alguns resultados catastróficos são inevitáveis. Essa desconfiança está presente entre aqueles que não acreditam na capacidade das políticas públicas sociais e ambientais para reverter o avanço de desastres ou colapsos nos sistemas humanos e nos sistemas naturais.
Para Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, o desenvolvimento é um processo de criação de oportunidades para que as pessoas possam realizar os seus projetos de vida. Em uma economia de baixo crescimento com ciclos frequentes instabilidades econômicas, como é o caso do Brasil nos últimos quarenta anos, o processo prevalecente tem sido o de destruição de oportunidades. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos tende a ser superior ao dobro da taxa geral, o que aborta muitas esperanças da juventude no futuro do País.
Desse contexto, em que prevalecem taxas abissais no tripé das desigualdades de renda, de emprego e de oportunidades, algumas lições podem ser apreendidas a partir das experiências históricas de diversos países de economias de mercado, onde fica evidente o poder transformador de políticas públicas de caráter distributivo:
• As economias de mercado que apresentam melhor desempenho econômico sustentado são as que têm os melhores indicadores de igualdades sociais.
• Políticas econômicas que aumentam as desigualdades sociais resultam em menor crescimento econômico; o tamanho do mercado interno depende do tamanho da população, da produtividade total e da distribuição da renda e da riqueza;
• As economias de mercado que têm piores indicadores de desenvolvimento social sustentável são as economias com pior distribuição de renda e de riqueza, independentemente do seu nível de desenvolvimento.
• Políticas públicas bem concebidas e implementadas têm a capacidade de reduzir sensivelmente o número de pobres e de miseráveis de um país ou de uma região, ou seja, o melhor cenário é aquele que construímos;
• Economias de mercado que se envolveram em processo excessivos e dominantes de financeirização têm os seus níveis do tripé de desigualdades acentuados (desigualdades de renda, desigualdades de riqueza e desigualdades de oportunidades);
• As economias capitalistas que progridem mais e melhor sempre realizaram uma inteligente combinação de mercado e governo, de tal forma que não se trata de mercado ou governo, mas de combinar ambos para maior benefício da sociedade, através de processos de planejamento indicativo.
Como avaliar o sistema capitalista brasileiro do ponto de vista de uma Grande Transformação para superar os problemas estruturais do País? Como ampliar o campo de oportunidades dos jovens que vêm se graduando em um sistema educacional de acessibilidade cada vez mais democrático? Como erradicar a pobreza extrema e atenuar a distribuição da renda e da riqueza?
Avaliar um sistema econômico significa observar, através de diferentes indicadores socioeconômicos e socioambientais, como o sistema está resolvendo os problemas fundamentais de desenvolvimento sustentável de uma sociedade. Essa observação não pode ser realizada apenas sobre indicadores de curto prazo (taxa de inflação, déficit fiscal, etc.), pois o sistema pode sempre sofrer ajustes fiscais e financeiros para superar as questões de conjuntura. Uma das características do capitalismo após o longo período do pós-II Grande Guerra, marcado por um longo ciclo de crescimento com estabilidade monetária até o início dos anos 1970, tem sido uma sequência de ciclos de instabilidades econômicas e financeiras.
No Brasil, o capitalismo tem se mostrado incapaz de resolver alguns dos problemas que são usualmente denominados de estruturais. O seu equacionamento não ocorre apenas através de medidas transitórias e voluntaristas, mas é preciso que nasça da consciência política de lideranças propensas a conceber e a implementar grandes transformações. Essas transformações nascem da interrelação de ideias renovadas, de interesses iluminados e de instituições flexíveis e dinâmicas, geralmente estruturadas em políticas públicas sob a liderança de estadistas que vislumbram o horizonte de uma nação além do jogo político cujo principal objetivo é a manutenção e a preservação do poder para sustentar os interesses de sua base aliada.
São necessárias lideranças como a do Presidente JK que, sem otimismo ingênuo, baseava o seu mandato presidencial “na manifestação inequívoca de fé na capacidade realizadora dos brasileiros, no triunfo do espírito pioneiro, na prova de confiança na grandeza do Brasil, na ruptura completa com a rotina e o compromisso”.
As fragilidades do capitalismo brasileiro em muitos contextos são semelhantes às experiências históricas do capitalismo norte-americano ou europeu. Em outros, são específicas do nosso subdesenvolvimento político e do caráter emergente do nosso progresso econômico e social. Essas fragilidades se tornam visíveis em assimetrias e dissonâncias no processo de desenvolvimento do bem-estar social sustentável na vida dos brasileiros.
Incapacidade para equacionar o problema da pobreza persistente e para reverter um processo de crescentes desigualdades sociais na distribuição da renda e da riqueza. Incapacidade para conter o uso predatório da base de recursos ambientais do País. Incapacidade para eliminar a tendência de imiscuir interesses privados com interesses públicos na gestão governamental dentro do estilo de capitalismo de compadrio associado às práticas de corrupção. Incapacidade para controlar a vocação imanente entre protagonistas políticos para ações de populismo econômico que criam ciclos de instabilidade econômica que resultam quase sempre em elevadas taxas de desemprego, etc.
Um dos problemas específicos do capitalismo no Brasil é a necessidade de se consolidar uma nova geração de empreendedores, inconformados com o status quo, que tenham o perfil cultural, a base ideológica e a sensibilidade política para lidar com os desafios contemporâneos de um mundo cada vez mais veloz, mais complexo e mais inextricável.
Novos empreendedores com níveis de informação e conhecimento compatíveis com as inovações científicas e tecnológicas das revoluções industriais em marcha. E, ao mesmo tempo, compatíveis com uma cosmo visão indispensável para lidar, em seu planejamento estratégico, com as questões da sustentabilidade ambiental e da equidade social, em um país no qual as elites têm se tornado cada vez mais especulativas no campo econômico e impiedosas no campo socioambiental.
A importância de se rejuvenescer o capitalismo, criando um campo de oportunidades para a emergência de uma nova geração de empreendedores econômicos, sociais e culturais, se exprime na reflexão de Keynes, escrita em dezembro de 1935: “A dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram criados como a maioria de nós foi, por todos os cantos de nossas mentes”.
Thomas Piketty, Diretor de Estudos da École des Hautes Études em Sciences Sociales e Professor na Paris School of Economics, elaborou duas obras, que já se tornaram clássicas sobre os regimes de desigualdades na História, combinando análises e pesquisas de historiadores, sociólogos, cientistas locais. Ao se pensar em um processo de Grande Transformação da economia brasileira, que não se limita a ajustes incrementais de curto prazo, a leitura dos textos de Thomas Piketty é fundamental para avaliar as experiências históricas e ideológicas sobre como diferentes países em diversos momentos históricos, conseguiram superar suas crises econômicas e regimes de desigualdades.
Pode-se afirmar que as obras de Piketty, além da construção de uma agenda histórica das relações dos sistemas econômicos com os regimes de desigualdades, culminando com propostas para a organização de experiências do socialismo participativo no século 21, trouxe novas luzes às controvérsias prevalecentes com a incorporação das análises de historiadores, sociólogos, cientistas políticos. Essa incorporação levou os editores do livro “After Piketty” a destacar uma reconciliação entre a Economia e as demais Ciências Sociais, particularmente quando se discutem as relações entre a acumulação de riquezas financeiras e não financeiras e os seus impactos nas estruturas do poder político.
Esses impactos permitem que se imponha uma alternativa a um modelo de política econômica que melhor atende os interesses dos grupos sociais mais bem aquinhoados no topo da pirâmide, acobertados por racionalizações acadêmicas, segundo as quais a concentração da renda e da riqueza de uma sociedade é favorável à acumulação de capital social, ao aumento não inflacionário da demanda agregada e ao bem-estar social de todos direta ou indiretamente.
No caso brasileiro, o principal desafio no atual momento histórico, é o de retomada do crescimento acelerado da economia brasileira a uma taxa necessária em torno de 5% ao ano. Com esse ritmo de crescimento sustentado, será possível equacionar alguns problemas conjunturais e estruturais a partir da formação ampliada de um excedente econômico que facilitará a geração de renda e de emprego, com aumento da base tributável.
De 2002 a 2022, a taxa média de crescimento do PIB no Brasil foi de apenas 2,2%. Quando se leva em conta que a taxa média geométrica de crescimento da população residente por ano está em torno de 1,67%, fica claro que é insignificante o aumento da quantidade de bens e serviços finais produzidos que a economia semi-estagnada colocou à disposição do bem-estar social sustentável dos brasileiros no século 21. Esse baixo crescimento da economia acaba contaminando o crescimento da Renda, do Emprego da base tributável.
Desde os anos 1990, ocorreram, de fato, alguns anos não sequenciais em que a taxa de crescimento girou em torno de 5% ao ano: no fim do imposto inflacionário com a recomposição do poder de compra da massa salarial a partir do bem sucedido Plano Real; com o boom dos preços das commodities na economia globalizada no período da pré-crise mundial de 2008; com o renivelamento do emprego e da renda após a crise econômica e financeira da pandemia da Covid-19 quando, em 2020, a taxa de crescimento foi negativa (-3,3%) para se recuperar nos dois anos seguintes. Foram, pois, espasmos de crescimento e não ciclos de expansão sustentada da economia.
Há uma taxa mínima de crescimento da economia brasileira que é indispensável para que sejam atingidos três objetivos, simultânea e complementarmente. O primeiro objetivo é manter um ritmo adequado do nível de emprego de qualidade e estável, capaz de acomodar quase dois milhões de brasileiros que se mobilizam e se reposicionam anualmente nos diferentes mercados de trabalho. O segundo objetivo é gerar um excedente econômico, de maior magnitude e recorrência, de investimentos crescentes para a recuperação e a modernização de nossa infraestrutura econômica e social, e que permita financiar as necessidades crescentes das políticas sociais compensatórias visando a atenuar os índices de pobreza e de miséria social, e eventuais tensões sociais e políticas em nosso País.
Finalmente, essa taxa tem a função de manter acesa a chama do que Keynes denominava “o espírito animal” dos nossos empreendedores efetivos ou potenciais, além de uma expectativa recorrente de confiança no nosso progresso econômico e social, a partir de programas e projetos de investimentos que aumentem significativamente a produtividade total dos fatores nos setores produtivos mais significativos.
Há necessidade de se conceber e implementar um novo ciclo de expansão da economia brasileira que poderia ser considerado um “big push”. Há várias propostas para se estruturar um big push: a substituição de importações nas indústrias de bens de capital e de bens duráveis de consumo e de energia relacionados com as mudanças climáticas; a promoção de projetos integrados de Bioeconomia; um programa de New Deal Verde, etc. Uma ideia-força que apresenta as características de ser cientificamente consistente, operacionalmente exequível e historicamente realista, é a de transformar o Brasil no maior produtor de alimentos (proteína vegetal e proteína animal) do Mundo.
Trata-se de uma estratégia que pressupõe um novo ciclo de inovações cientificas e tecnológicas na fronteira dinâmica do País, assim como uma nova estratégia de transporte e de comunicação, incluindo o acesso direto aos crescentes mercados consumidores do Pacífico (Eixo Centro-Norte com saída pelo Peru e o Eixo Sul-Sudeste com saída pelo Chile). Dada a escala necessária dos investimentos públicos e privados para a construção sociopolítica do novo ciclo de expansão, será indispensável a cooperação técnica e financeira de um país como a China ou o Japão, em um modelo organizacional semelhante ao que viabilizou os Projetos Carajás, PRODECER, nos anos de 1970, com a cooperação do Japão.
Atualmente, o agronegócio é o setor produtivo mais importante da economia brasileira e tem evitado que o quadro recessivo, iniciado em 2014, se transforme em depressão econômica. É o carro-chefe de poderosas cadeias produtivas e de valor que envolvem, direta e indiretamente, inúmeros setores produtivos, com impactos que se espraiam para a indústria química, a indústria de bens de capital, os setores de tecnologia e informação, o setor de transporte, etc.
Contribui para intensa redução do custo da cesta básica, que beneficiou, principalmente, os grupos sociais de baixa renda, para os quais o peso das despesas com alimentos é maior. Utiliza diferentes sistemas de produção nas diversas regiões do País, desde as grandes plantações até a agricultura familiar, com elevado nível de competitividade sistêmica.
O agronegócio não precisa desmatar para se expandir. Segundo pesquisadores da EMBRAPA, se conseguíssemos transferir 50% da tecnologia sustentável para a agricultura, seria possível dobrar a produção de alimentos sem abrir novas áreas e sem abater uma única árvore sequer. A moderna agropecuária do agronegócio e da agricultura familiar produz com menor intensidade de terra, consome menos água por tonelagem de produção irrigada, recicla os resíduos e os dejetos das atividades produtivas, além de conservar, preservar e reabilitar os ativos ambientais como patrimônio natural em suas propriedades privadas.
Um ciclo de expansão como base para promover a Grande Transformação do Brasil no maior produtor mundial de alimentos faz todo sentido histórico do ponto de vista econômico. O agronegócio brasileiro dispõe de pelo menos três das pré-condições para alavancar um novo ciclo de crescimento de longo prazo:
- a) o Terceiro Salto da Agropecuária Brasileira, que vem se estruturando nos últimos anos sob a liderança do saudoso Ministro e Professor Alysson Paolinelli, se baseia nas cinco inovações schumpeterianas: a introdução de um novo bem (alimentos saudáveis, sustentáveis e resistentes às mudanças climáticas) ou de uma nova qualidade de um bem (estratégias empresariais de diferenciação de produtos); a introdução de um novo método de produção (agricultura de precisão, agropecuária de baixo carbono, plantio direto, etc.); abertura de um novo mercado (Sudeste Asiático, com a redução dos custos de acessibilidade); estabelecimento de uma nova fonte de matérias-primas ou de bens semimanufaturados (adensamento das cadeias produtivas de produtos passíveis de elevada replicabilidade); estabelecimento de uma nova organização de qualquer indústria (o modelo organizacional de clusters produtivos, com empresa-âncora, que permite a integração dos interesses da grande empresa com a pequena produção familiar);
- b) o moderno processo de desenvolvimento sustentável pressupõe que o País já dispõe de níveis adequados de capitais intangíveis (capital institucional, capital humano, capital sinergético, capital intelectual, etc.), o que é a condição necessária para que se promova um ciclo de expansão intensivo de ciência e tecnologia, a partir de um modelo de desenvolvimento endógeno dentro do estilo de planejamento participativo;
- c) a promoção econômica da produção de alimentos dentro dos padrões científicos e tecnológicos modernos tem a intensidade, o sequenciamento e a cadência de acumulação de capitais tangíveis e intangíveis necessários para o espraiamento em poderosas cadeias de valor (mínero-metalúrgico-mecânica, fármaco-químico, tecnologia de informação e conhecimento, etc.) e em regiões tradicionais de base econômica agropecuária consolidadas no Sul e no Sudeste ou nas regiões da fronteira dinâmica (Balsas no Maranhão, Oeste da Bahia, Sul de Rondônia, Gurguéia no Piauí, Centro-Norte do Mato Grosso, Rio Verde em Goiás, etc.); Os mercados mundiais de alimentos tendem a crescer geometricamente em função da expansão das demandas e das necessidades dos programas nacionais e internacionais de segurança alimentar. O Brasil precisa voltar a crescer através de um novo ciclo de expansão econômica que seria o terceiro pós-Segunda Grande Guerra (1º. Plano de Metas do Presidente JK; 2º. “milagre econômico” dos anos 1970). O start-up desse novo ciclo de expansão pode emergir de diferentes alternativas intersetoriais: substituição de importações e promoção de exportações da indústria relacionada com as mudanças climáticas, o New Deal Verde, a promoção de projetos integrados de Bioeconomia etc. Destaca-se também a transformação do Brasil no maior produtor mundial de alimentos para a Humanidade através das poderosas cadeias produtivas do agronegócio.
Este artigo faz parte de uma série de três artigos.
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Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior.
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