“Para saber para onde estamos indo em termos de concentração de renda, dos níveis de pobreza, de extrema pobreza e de desigualdades sociais, temos que avaliar se as políticas macroeconômicas e as políticas sociais em andamento estariam tendo a intensidade, a cadência e o sequenciamento necessários para promover grandes transformações e mudanças estruturais na evolução da sociedade brasileira”
Por Paulo Haddad
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“Os principais defeitos da sociedade em que vivemos são a sua incapacidade para proporcionar o pleno emprego e desigual distribuição da riqueza e das rendas”
John Maynard Keynes (1936)
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INTRODUÇÃO
Os paradoxos de Pollyanna, Alice e Cinderela
1. Pollyanna é um clássico da literatura infanto-juvenil, escrito e popularizado a partir de 1913. Pollyanna gostava de praticar um jogo que consistia em extrair algo de positivo mesmo nas coisas mais desagradáveis ou desfavoráveis. Na Psicologia Social, essa atitude recebeu a denominação de “Princípio de Pollyanna” para designar atitudes ingênuas ou panglossianas diante de situações dramáticas, sofridas ou até mesmo catastróficas.
Pois bem. O Brasil tem um PIB de 11 trilhões de Reais e está situado entre as dez maiores economias do Mundo. Exporta atualmente quase 350 bilhões de dólares ao ano. Dispõe de setores produtivos extremamente dinâmicos e competitivos globalmente. Assim, é muito difícil que o País deixe de crescer anualmente 1% a 2% do PIB. Ora arrastado pelos efeitos propulsores das boas safras ou da extração mineral, ora induzido por inovações tecnológicas dos setores intensivos de Ciência e Tecnologia. Então, ainda que no intenso imbróglio macroeconômico do País, não há como deixar de comemorar algo de positivo que é uma taxa de crescimento do PIB acima do crescimento demográfico.
Contudo, o Brasil vem se tornando, desde os anos 1980, um país de baixo crescimento. De 2017 a 2022, a taxa média de crescimento do PIB no Brasil foi de apenas 2,2%. Quando se leva em conta que a taxa média de crescimento da população residente por ano está em torno de 1,67%, fica claro que foi insignificante o aumento da quantidade de bens e serviços per capita produzidos por uma economia semi8-estagnada. No mesmo período, a China cresceu no acumulado mais de 340% em cinco anos.
Na verdade, o Brasil precisa crescer de forma sustentada e com estabilidade a uma taxa necessária de 5% ao ano para equacionar os seus inúmeros problemas socioeconômicos e socioambientais, que vão do desemprego aberto e do subemprego aos processos dos desmatamentos e dos garimpos ilegais, o que conseguirá caso venha a construir um novo ciclo de expansão da economia, o que envolve paciência administrativa, negociações políticas e experiência técnica. A alternativa poderia ser pensar e agir como Pollyanna: “Em tudo há sempre uma coisa boa para ser grato, se você procurar suficiente para descobrir onde está”.
2. Pode-se destacar também o “Paradoxo de Alice” que perguntou ao gato que ri “onde fica a saída?”; “depende”; respondeu o gato; “de quê”? perguntou Alice; “Depende para onde você quer ir, pois qualquer caminho serve para quem não sabe para onde quer ir. “…Alice ficou ali sentada, os olhos fechados e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria numa insípida realidade….
Pois bem. A Constituição de 1988, no seu Art. 6º, manifestou profunda preocupação com a pobreza e as desigualdades sociais no Brasil. A partir daí, foi sendo elaborado e implementado um conjunto expressivo de políticas sociais compensatórias, sendo que somente três delas (Bolsa Família, Previdência Social e Lei Orgânica de Assistência Social) realizam pagamentos em torno de 35 milhões de benefícios por mês. Políticas que são absolutamente essenciais e indispensáveis para evitar que as classes D e E de nossa população mergulhem em um grau de pobreza africana, como os países da Somália, Burundi ou do Sudão do Sul.
Contudo, essas ações compensatórias são insuficientes para erradicar a pobreza e as desigualdades sociais no País, as quais nascem, se perpetuam e se reproduzem desde o período histórico da escravidão, através do que se denomina regimes das desigualdades. Não basta, pois, através de ações compensatórias ou de eventuais melhorias da renda domiciliar per capita, sinalizar que os indicadores de desigualdades sociais melhoraram. Os regimes de desigualdades são um contexto socioeconômico em que há interdependência entre múltiplas manifestações de desigualdades (habitação, nutrição, saúde, qualidade dos serviços públicos, etc.) e a institucionalização das novas formas de organização social das políticas sociais.
Na verdade, o Brasil é uma das maiores economias do Mundo que convive, no tempo e no espaço, com o fato de ter uma das maiores desigualdades sociais do Mundo. Em 2022, havia, segundo os critérios do Banco Mundial, 67,8 milhões de pessoas na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza. De 2017 a 2022, o aumento da renda real dos mais ricos chegou a 49% enquanto os mais pobres (incluindo a classe média, o que chega a 95% da população brasileira) foi apenas de 1,5% em média.
O Brasil precisa resgatar os processos de planejamento de longo prazo para a construção do futuro. Sem planejamento não há caminho favorável à medida que o tempo passa e o tempo não para. Como dizia Alice: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo?”
3. Desde 2014, a política econômica brasileira tem sido fundamentada no modelo de equilíbrio fiscal expansionista, o qual pressupõe que, com o ajuste fiscal articulado com as tríplices reformas político-institucionais (Tributária, Previdência e Administrativa), ocorrerá a retomada do crescimento impulsionada pelas forças livres dos mercados.
Uma adequada coordenação da política fiscal e da política monetária poderá manter a dívida pública em níveis adequados e viabilizar as taxas necessárias para que o País supere as atuais crises econômica e socioambiental, o que poderá resultar na queda da taxa básica de juros..
Pois bem. O déficit fiscal consolidado no Brasil não é de natureza conjuntural como ocorreu em vários países desenvolvidos quando foram impactados pela crise de 2008 e da COVID-19. A condição necessária e suficiente para a retomada do crescimento nesses países foi a normalização do equilíbrio fiscal.
No caso brasileiro, o déficit é de natureza histórico-estrutural e se configurou a partir dos anos 1990, quando a despesa pública cresceu de forma acelerada com a implantação das diferentes políticas públicas previstas na Constituição de 1988, enquanto a desaceleração do crescimento do PIB e da Renda Nacional levou a um crescimento pouco significativo da base tributária. Mário Henrique Simonsen e Delfim Netto advertiam que essa escala de despesas não caberia no PIB, a não ser que houvesse um crescimento do PIB em ritmo proporcional.
Contudo, como é difícil politicamente equilibrar os usos e fontes de fundos que compõem um descompasso entre receitas e despesas do setor público consolidado, a política vai de ajuste em ajuste de curto prazo impulsionada por decisões ad hoc. Não há dúvida que o equilíbrio macroeconômico é indispensável para que haja condições para a efetividade da política monetária manter a inflação dentro da meta programada, mas, se depender do déficit zero, a cronologia do equilíbrio será imprevisível.
Como a maioria das políticas sociais é financiada pelos recursos orçamentários anuais e plurianuais, elas têm que avançar num ambiente de incertezas, de cortes e de contingenciamentos, o que reduz a sua eficiência e a sua eficácia em termos de suas metas (objetivos quantificados) e da qualidade dos serviços públicos.
Na verdade, os déficits fiscais têm sido parcialmente cobertos, de forma insuficiente, através da crescente dívida pública, de aumentos ocasionais de impostos e taxas, de rendimentos distribuídos pelas empresas estatais, de restos a pagar institucionalizados. Os governantes, diante da avalanche de demandas legítimas para mais custeio e mais investimentos, têm de compartilhar, trimestre a trimestre, uma reprogramação orçamentária com sua base aliada, com enorme sacrifício dos compromissos prioritários com eleitores que os conduziram aos novos mandatos. Uma trajetória que coloca a economia brasileira em banho-maria, sem veias abertas e sem progresso econômico e social significativo numa sociedade conformista.
Os governantes, no início de seus mandatos, ficam sob o encantamento das benesses esperadas que os equilíbrios fiscais trarão com a eventual expansão do excedente econômico. Mas, no meio do caminho tinha uma pedra e a retomada do crescimento pode demorar ou até não vir (contexto que Robert Skildesky denominou de sadismo intelectual) e o seu desencantamento pode ocorrer, como em Cinderela , no meio de seu mandato, ou seja, antes da meia-noite. Descontentes podem querer reduzir o tempo necessário para viabilizar os seus compromissos eleitorais com artifícios micro e macroeconômicos. Nesse momento, coisas estranhas podem ocorrer na política econômica.
Pobreza e Desigualdades Sociais: Três leituras e o caso brasileiro
“É lamentável ter que reconhecer que, ao longo do tempo, o resultado de nossas políticas tem sido – ou será – redistribuir riqueza e renda de forma injusta e desigual”
Mario Draghi (2016), presidente do Banco Central Europeu
A concentração dentro da concentração da renda
O pesquisador Sérgio Gobetti, do Observatório de Política Fiscal da Fundação Getúlio Vargas, analisou a concentração de renda no topo da pirâmide social brasileira entre 2017 e 2022. Procurou pesquisar se o Brasil, que tem uma das maiores concentração de riqueza e de renda do Mundo, também teria um processo crescente de concentração dentro dessa concentração, como ocorreu em diversos países após 1980.
A sua conclusão geral: descontando a inflação pelo IPCA nesse período que foi de 31,4%, o aumento acumulado da renda real entre os mais ricos chegou a 49%, enquanto entre os mais pobres (e a classe média), o aumento foi de apenas 1,5% em média. Identifica, pois, a concentração de renda no topo da pirâmide social, destacando-se:
- a renda da elite econômica do 0,01% da população cresceu nominalmente 96% no período de cinco anos – quase três vezes mais do que a registrada na base da pirâmide de 33% (a qual inclui 95% da população adulta), que permaneceu semi-estagnada em termos reais, enquanto a dos mais ricos cresceu a um ritmo chinês;
- em 2022, a base de pirâmide é formada por todos os adultos que tiveram renda líquida total inferior a R$10mil mensais;
A renda da elite cresceu mais nas Unidades da Federação nas quais o agronegócio predomina na base da economia e que é, atualmente, o setor produtivo mais dinâmico da economia brasileira, chegando a uma alta, em valores reais, de 131% no Mato Grosso do Sul no extrato social constituído pelo 0,01% mais rico. Depois do Mato Grosso do Sul, as maiores taxas de expansão para o mesmo segmento populacional foram verificadas acima da inflação em:
- Amazônia (122%)
- Mato Grosso (115%)
- Rondônia (106%)
Sérgio Gobetti refez as mesmas estimativas por Unidade Federada para o extrato constituído pelos 0,1% da população. Alguns resultados em destaque:
- em média, a renda desse grupo populacional cresceu 42% em termos reais, um pouco abaixo do 0,01%; no Mato Grosso, o crescimento real dos rendimentos dessa “elite econômica” chegou a 117%, seguido pelo Mato Grosso do Sul (99%), Amazonas (84%) e Tocantins (78%).
- A razão entre a renda média dos mais ricos e da classe média, em 2022, foi 364 vezes no Mato Grosso, 331 em São Paulo, 268 no Paraná, 257 no Mato Grosso do Sul.
- A Região Nordeste, em 2022, detinha 27% da população total do Brasil, mas concentrava 43,5% do total da população na pobreza e 54,6% do total da população na extrema pobreza;
- o Estado em que a elite (0,01%) teve o pior desempenho foi o Ceará (-9% em valores reais), seguido por Pará e Rio de Janeiro.
Nas análises de Sérgio Corbetti da FGV, além de destacar a concentração da renda no topo da pirâmide, outros indicadores sobre a pobreza e as desigualdades sociais no Brasil merecem ser mencionados:
a. o percentual de pessoas em situação de pobreza caiu de 36,7% em 2021, para 31,6% em 2022, enquanto a proporção de pessoas em extrema pobreza caiu de 9,0%para 5,9% neste período;
b. em 2022, havia 67,8 milhões na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza; frente a 2021, esses contingentes recuaram 10,2 milhões e 6,5 milhões de pessoas, respectivamente;
c. em 2022, entre as pessoas com até 14 anos de idade, 49,1% eram pobres e 10% extremamente pobres;
d. as pessoas pretas ou pardas representavam mais de 70% dos pobres e dos extremamente pobres;
e. duas em cada cinco mulheres pretas ou pardas estão na pobreza.
Fica evidente que, embora a economia brasileira se situe entre as dez maiores do Mundo, a sociedade está dividida pela renda, pela riqueza e pelas oportunidades.
Para saber para onde estamos indo em termos de concentração de renda, dos níveis de pobreza, de extrema pobreza e de desigualdades sociais, temos que avaliar se as políticas macroeconômicas e as políticas sociais em andamento estariam tendo a intensidade, a cadência e o sequenciamento necessários para promover grandes transformações e mudanças estruturais na evolução da sociedade brasileira*.
Intensidade, cadência e sequenciamento constituem atividades de programação que aparecem nas etapas de implementação, quando os objetivos dessas políticas efetivamente acontecem. Muitos planos programas e projetos tendem a fracassar por desconhecerem que essas atividades, as quais compõem os parâmetros de uma Rede de Precedência, delimitam o tempo ótimo (tempística) para a sua realização. Planejadores têm ficado, em geral, nas diretrizes e objetivos gerais com baixo grau de implementabilidades.
Intensidades diferentes de execução de projetos, em função da disponibilidade de recursos ou do grau de mobilização dos atores e protagonistas públicos e privados, podem provocar efeitos não esperados, descontinuidades ou até rupturas nos processos de implementação descontinuadas.
Por exemplo: experiências recentes de arranjos produtivos locais (APLs) ou até mesmo rupturas nos processos de implementação de turismo no Nordeste Brasileiro, que pretendem gerar emprego e renda em localidades específicas com valioso capital natural (no contexto do PRODETUR), podem estimular a migração de seus recursos humanos escassos e potencialmente empreendedores, se a intensidade do seu componente de treinamento e de capacitação for maior do que os investimentos na rede de hospedagem e em sua promoção onde serão geradas as novas oportunidades de emprego e renda.
Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2021, ao avaliar as experiências das políticas propostas pelo FMI e pelo Banco Mundial para países emergentes, afirma que programas bem sucedidos requerem cuidado extremo no sequenciamento – a ordem em que os programas ocorrem – e no seu cadenciamento. “Se, por exemplo, os mercados são abertos para concorrência muito rapidamente, antes que sólidas instituições financeiras sejam estabelecidas, então empregos são destruídos mais rapidamente do que novos empregos são criados. Em muitos países, erros no sequenciamento e no cadenciamento levam a desemprego crescente e a maior pobreza”.
O sequenciamento, o cadenciamento e a intensidade das ações de um plano ou de um projeto compõem os parâmetros básicos da sua Rede de Precedência. A construção de uma Rede de Precedência envolve não apenas a organização e a gestão de um cronograma físico-financeiro do plano ou projeto, mas a definição de critérios que possibilitem executá-lo no tempo ideal, com os melhores resultados possíveis. A desconsideração desses componentes da Rede de Precedência tem sido um dos fatores mais relevantes para explicar o fracasso na implementação de muitos planos, programas e projetos no Brasil.*
Para avaliar a efetividade das políticas públicas na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais no Brasil, utilizaremos como referência as obras recentes de três cientistas sociais:
- Julia Lynch – Regimes of Inequality: The Political Economy of Health and Wealth – Cambridge University Press, 2020.
- Walter Scheidel – The Great Leveler – Violence and the History of Inequality – Princeton University Press, 2018.
- Thomas Piketty – Capital and Ideology – Harvard University Press, 2020; acompanhado de After Piketty – The Agenda for Economics and Inequality, edited by Heather Boushey, J. Bradford Delong and Marshall Steinbaum, Harvard University Press, 2017; que analisaram o livro de Piketty “Capital in the twenty–first century.
São autores que avaliaram as políticas sociais em diversos países a partir da efetividade da sua implementação em múltiplos períodos históricos, normalmente articulando-as com as políticas macroeconômicas ou setoriais prevalecentes. As reflexões serão elaboradas em função da necessidade de se superar a atual crise social no Brasil, conforme os indicadores de pobreza e de desigualdades sociais apresentados.
Este artigo faz parte de uma série de três artigos.
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Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior.
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