“O investimento logístico não foi altruísmo imperial — foi uma demonstração clara de como infraestrutura bem pensada gera multiplicação de rentabilidade, integração territorial e domínio estratégico. O lucro britânico, estimado em múltiplos daquele valor, é prova cabal de que logística não é custo: é ativo soberano e multiplicador de riqueza.”
Editorial BAA
Como um arauto da dignidade esquecida de ter levado a Amazônia a ocupar constrangedores lugares na fila de provimento da infraestrutura regional, o professor Augusto Rocha não perde uma oportunidade para alertar o país sobre seus compromissos com uma região que muita gente gostaria de chamar de sua.
A Amazônia está à beira de uma crise logística terminal — não por falta de ideias, mas por excesso de negligência histórica. A cada vazante extrema, como a de 2023 e as anunciadas para os próximos anos, fica evidente o risco sistêmico que assombra a infraestrutura regional. O transporte fluvial, embora ainda majoritário, está se tornando cada vez mais intermitente, frágil e vulnerável às mudanças climáticas.
A ausência de alternativas viáveis por rodovias ou ferrovias deixa a região encurralada num modelo de circulação do século XIX com demandas e pressões do século XXI. Essa contradição ameaça a competitividade da Zona Franca de Manaus, a segurança alimentar de centenas de municípios, e a soberania nacional sobre a maior bacia hidrográfica do planeta.
A cabotagem que nunca chegou
A navegação de cabotagem — solução óbvia para um território com 23 mil quilômetros de rios navegáveis — jamais se consolidou como política pública estratégica. Onde ela existe, é precária, cara, dependente de operadores privados e incapaz de responder às sazonalidades climáticas.
Essa falha logística não é apenas uma omissão — é uma expressão cruel da desigualdade regional, que reduz a Amazônia a consumidor passivo de soluções fabricadas no Sudeste e no exterior, enquanto ignora sua capacidade de produção, circulação e autonomia.
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Tecnocracia da desigualdade: o vício do centro
O Plano Nacional de Logística de Transportes (PNLT), como bem denunciou o professor Augusto Rocha, é um exemplo gritante daquilo que se pode chamar de tecnocracia da desigualdade. Ao usar critérios “neutros” de retorno de investimento e hierarquização de obras, o plano reforça assimetrias históricas e empurra soluções estruturantes para um futuro sempre adiado.
Não se trata de má vontade, mas de uma má inteligência territorial. A Amazônia exige um planejamento invertido: primeiro a infraestrutura, depois a intensificação produtiva. Como nos ensinou a história da borracha.
O passado que nos aponta o futuro
Na virada do século XX, quando o Reino Unido dependia da borracha amazônica, os ingleses investiram 200 mil libras esterlinas nos estaleiros de Glasgow, na Escócia, para construir embarcações adaptadas à navegação nos rios da Amazônia. Esses navios transportavam mantimentos, insumos, passageiros e produtos florestais.
O investimento logístico não foi altruísmo imperial — foi uma demonstração clara de como infraestrutura bem pensada gera multiplicação de rentabilidade, integração territorial e domínio estratégico. O lucro britânico, estimado em múltiplos daquele valor, é prova cabal de que logística não é custo: é ativo soberano e multiplicador de riqueza.
Propostas para o presente
É preciso reconstruir esse espírito estratégico com inteligência contemporânea:
- Utilizar big data da Zona Franca de Manaus (ex.: análise de notas fiscais internadas) para mapear fluxos logísticos e gargalos reais;
- Transformar os rios em hidrovias funcionais com portos públicos de baixo custo e estruturas resilientes às sazonalidades;
- Avaliar rotas alternativas de integração como o eixo Santarém–Miritituba (BR-163);
- Recuperar o protagonismo da SUFRAMA como instância de formulação logística para além da indústria;
- Criar um Fundo Amazônico de Infraestrutura Verde, com recursos públicos, privados e internacionais, voltado exclusivamente à estruturação logística com critérios de justiça regional e sustentabilidade.
Oportunidade histórica: COP30 como ponto de inflexão
A COP30 não pode ser apenas uma conferência climática: deve ser o momento de afirmação logística da Amazônia. Levar à Belém — e ao mundo — o compromisso com uma nova infraestrutura justa, resiliente e conectada à floresta em pé é a melhor forma de transformar discurso em estratégia.
Decifrar a Amazônia é estruturá-la. Estruturá-la é protegê-la. Protegê-la é garantir o futuro.
Se o século XIX nos legou um exemplo de inteligência logística conectada ao território, o século XXI não pode repetir os erros da omissão, da tecnocracia excludente e da geopolítica míope. A Amazônia não pode mais esperar.