- Estudo mostra que, nas regiões degradadas da Amazônia, diminuiu a quantidade de água evaporada e transportada pelos chamados rios voadores, impactando a biodiversidade da Mata Atlântica.
- Uma das consequências dessas mudanças foi a seca de 2014 na região Sudeste, que coibiu o período reprodutivo das rãs-de-corredeira (Hylodes sazimai), endêmicas de quatro municípios do sul de Minas Gerais e São Paulo, colocando a população em declínio.
- Outras 20 espécies de anfíbios já sofrem oscilações populacionais na região; por ser um grupo bioindicador, anfíbios antecipam efeitos que podem repercutir em toda a biodiversidade.
- Brecar o desmatamento da Amazônia é uma das medidas para ajudar a regular o ciclo de chuvas — entre 30 e 40 % das chuvas que ocorrem nas regiões Sudeste e Sul do Brasil vêm da floresta.
Por Sibélia Zanon – Mongabay
É pelo silêncio das rãs que o desmatamento da Amazônia pode ser medido na Mata Atlântica. “É muito comum, nas primeiras chuvas do verão, os anfíbios começarem a cantar para atrair as fêmeas”, conta Lucas Ferrante, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Com a ausência de chuvas durante a seca de 2014 e o ressecamento dos riachos, as rãs ficaram reclusas. “Esses bichos não vão sair justamente para não morrer, não ser predados, não sofrer ressecamento, porque o lugar está muito quente, está muito seco e aquela é uma estação reprodutiva perdida”.
O estudo liderado pelo biólogo analisou mais de 15 anos de dados de imagens de satélite da Nasa para verificar o fluxo de chuvas em Areado, Poços de Caldas e Caldas, no sul de Minas Gerais, e Campinas, em São Paulo. Estes são os quatro municípios onde os machos da espécie endêmica de rã-de-corredeira (Hylodes sazimai), descoberta em 1995, costumam aparecer no topo das pedras, cantando ao longo de riachos encachoeirados na época reprodutiva – quando há água.
A análise das imagens mostrou aos pesquisadores que o avanço do desmatamento na Amazônia já interfere no ciclo de chuvas do Sul e Sudeste do Brasil. Regiões da Amazônia que concentram degradação, como o Arco do Desmatamento, nas bordas sul e leste da floresta, exportam menor quantidade de água pelos rios voadores, impactando a biodiversidade da Mata Atlântica e gerando instabilidade climática numa área que se estende do sul de Minas Gerais até a cidade de São Paulo.
“O desmatamento da Amazônia significa hoje colapsos para todo o Brasil”, diz Lucas Ferrante, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “A gente está falando de perdas significativas de biodiversidade na Mata Atlântica, o que pode fazer emergir uma nova pandemia, porque a gente sabe que os anfíbios são controladores de vetores de doenças para o ser humano e também de pragas para a agricultura.”
Outro apontamento do estudo foi que, de acordo com o clima de cada região de ocorrência, as populações de rãs apresentam adaptações em seus corpos. Nos municípios mais secos e quentes, como Areado e Campinas, as rãs são menores, têm patas mais curtas e membranas nas patas traseiras.
Apesar da estratégia evolutiva, que ajuda a evitar a perda de água, o tempo necessário para adaptação da espécie às mudanças climáticas teria de ser muito maior para contornar o risco premente de extinção que a espécie já enfrenta.
O evento climático que em 2014 secou reservatórios no Sudeste fez com que a população de rãs diminuísse nos anos seguintes. “A perda de uma estação reprodutiva por causa de uma seca extrema afeta essas populações pequenas que estão isoladas em fragmentos florestais. E, para uma espécie que só ocorre em quatro localidades do Brasil, isso é catastrófico”, afirma Ferrante.
Segundo o pesquisador, toda a comunidade de anfíbios da área estudada tem sido impactada pelo clima. Uma nova pesquisa em andamento já mostra outras 20 espécies de anfíbios sofrendo oscilações populacionais.
Caminho das águas
Fato é que o silêncio das rãs diz muito. Por ser um grupo bioindicador — muito sensível ao clima e às mudanças ambientais — os anfíbios sofrem em primeira mão os efeitos que podem repercutir em toda a biodiversidade.
“O clima da Mata Atlântica é o que é por conta dos rios voadores amazônicos”, afirma Ferrante. “O que nós vemos primeiro são as chuvas dessas localidades se formando na costa da África. Então essas chuvas migram pelo Oceano Atlântico, adentram a região Nordeste do Brasil, migram para a região amazônica e a Amazônia vai manter esse ciclo ativo através de evapotranspiração da floresta.”
Com a condensação de vapor muito grande em determinadas áreas, formam-se células de alta pressão de vapor, fenômeno chamado de bomba biótica por alguns cientistas, e isso gera ventos de baixa pressão que carregam a umidade. Conhecidos por rios voadores, estes ventos encontram resistência na Cordilheira dos Andes e se deslocam para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, gerando as chuvas.
As espécies da Mata Atlântica são dependentes do ciclo hidrológico promovido pelo Oceano Atlântico e pelos rios voadores amazônicos, sendo, portanto, fortemente impactadas por efeitos combinados de mudanças climáticas e desmatamentos. “Em torno de 30 a 40% das chuvas do Sul e Sudeste do Brasil vêm da região amazônica”, destaca Ferrante.
Anomalias climáticas
Com o aquecimento do planeta, climatologistas apontam para o aumento de catástrofes climáticas, a exemplo das fortes chuvas no último feriado de Carnaval, em 18 de fevereiro, na região de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, que bateram o recorde nacional de quase 700 milímetros de águas vertidas em apenas 24 horas.
As mudanças de temperatura dos oceanos, consequência do aquecimento global, têm grande impacto sobre o clima do Sudeste. Segundo o climatologista Philip Fearnside, também autor do estudo, as secas devem piorar no futuro. “Isso aumenta a importância da Amazônia; significa que não tem mais margem para perder a água que vem de lá”, diz ele.
Além da seca de 2014, também nos anos de 2020 e 2021 as chuvas se apresentaram muito abaixo da média histórica. Artigo publicado na revista Nature mostrou que a escassez hídrica no Sul e no Sudeste afetaram a agricultura e a geração de energia, impactando a economia e a população ao elevar o preço de commodities e a conta de luz dos moradores.
Brecar o desmatamento da Amazônia é uma das medidas para ajudar a regular o ciclo de chuvas. O apelo por desmatamento zero ganha cada vez mais importância diante dos alertas de cientistas sobre o chamado ponto de inflexão, ou de não-retorno, em que a Floresta Amazônica se tornaria de modo definitivo uma savana. Mais de um terço da floresta em pé já sofre algum tipo de degradação, conforme mostrou recente estudo publicado na revista Science.
Mais do que apenas rãs, ou a biodiversidade de outros biomas, a savanização da Amazônia — e a consequente diminuição dos rios voadores — poderia também condenar à morte a própria produção de alimento em larga escala no resto do Brasil. A região Centro-Sul, responsável por cerca de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, tem seu clima parcialmente controlado pela transferência de umidade da floresta. Sem ela, pouco do que se planta poderia prosperar.
Texto publicado originalmente em MONGABAY
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