“Faz um ano que a população está sem espaços de diálogo com o poder público para debater medidas sobre a BR-319. Não se fala mais na criação dos portais de fiscalização, por exemplo. Não se fala mais na regularização fundiária, na gestão e proteção das unidades de conservação e terras indígenas, entre outras medidas mínimas para garantir as salvaguardas socioambientais. Precisamos ter um diálogo amplo e democrático com o poder público para dar andamento a questões importantes que podem resultar em soluções para problemas da rodovia” – Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório BR-319
Há um ano a vida das pessoas que dependem do trecho A da BR-319 foi drasticamente alterada com o desabamento das pontes sobre os rios Curuçá e Autaz-Mirim, nos dias 28 de setembro e 8 de outubro, respectivamente. Trajetos que antes duravam de meia a duas horas agora duram mais de três horas, devido às filas que podem se formar na travessia das balsas instaladas sobre os rios para a passagem de veículos e pessoas. A investigação sobre as razões do colapso das estruturas ainda não foi concluída, assim como a definição da responsabilidade pelas cinco vidas perdidas na tragédia.
“A falta das pontes ou de uma solução menos improvisada prejudica muito a vida de quem depende desta parte da BR-319. As pessoas demoram muito para ir e vir, encareceu os custos de transporte e tudo virou uma bola de neve elevando os preços de itens básicos para sobrevivência da população, como alimentos, água e gás”, conta a diretora de programas da Casa do Rio, Eliane Soares.
“Todos os setores da economia da cidade foram impactados, até o turismo”, acrescenta. “Sem contar nas pessoas que precisam de atendimento em saúde de alta complexidade ou de atendimento regular, como é o caso de hemodiálise. A situação é desgastante pra população, principalmente do ponto de vista emocional, pois não tem informação, não tem diálogo e a menor sensibilidade em diminuir os transtornos cotidianos na vida de quem não tem a menor condição de contorná-los”, diz Eliane.
Os primeiros dias que se seguiram à queda da primeira ponte, sobre o rio Curuçá, no km 23 da BR-319, foram dramáticos com buscas por desparecidos, resgate de corpos e atendimento a feridos. Depois veio o risco de desabastecimento de alimentos, água potável, remédios, combustível e tudo o mais do que a vida depende nos municípios de Careiro da Várzea, Autazes, Careiro Castanho e até Manaquiri, somando mais ou menos 140 mil habitantes. Dez dias depois veio abaixo a ponte sobre o rio Autaz-Mirim, no km 25, cuja estrutura se desagregou e ruiu lentamente até que a parte do meio caísse no rio. Esta não fez vítimas fatais e causou tanto ou mais impacto que a primeira.
A solução encontrada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para viabilizar o tráfego nos dois locais foi a instalação de balsas geridas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Soluções inadequadas para a realidade local, pois no primeiro trecho a travessia provoca filas devido ao tempo que a balsa leva para ir de um lado para o outro do rio; e no segundo trecho, mais curto, tanto criação de uma passagem seca quanto a fixação da balsa sucumbiram ao comportamento do rio no período de cheia, levando a diversos transtornos e necessidade de obras no local.
Para Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório BR-319, a tragédia reflete o nível de negligência do governo federal com a BR-319. “Em 2021, já se sabia dos riscos existentes na rodovia por um documento assinado por uma ex-superintendente regional do Dnit e publicado no Diário Oficial da União e, também, por um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), mas a tragédia não foi evitada”, destacou.
“Muito se fala sobre a repavimentação do trecho C e do trecho do meio, mas existe uma parte da BR-319 que já está asfaltada, que já está consolidada, que serve a mais ou menos 140 mil pessoas entre as quais produtores rurais para escoamento de alimentos que abastecem feiras locais e comunidades, porém sem manutenção. No inverno, quando chove forte e os rios enchem, as bordas da rodovia desabam, são levadas pela água e, quase sempre, o tráfego é prejudicado. Se o poder público não cuida de cerca de 200 km, como é que vai dar conta de 800 km? Isso sem falar nos ramais que dão acesso às comunidades, onde a estrutura logística é precária”, disse Meirelles.
Ela também destacou a perda de riquezas naturais. “É preciso discutir a BR-319 com seriedade, sem amadorismo, sem oportunismo e com honestidade. A rodovia é hoje um vetor de destruição da floresta, vejam o que está acontecendo em Manaus neste mês de setembro encoberta pela fumaça. Estão queimando nossa biodiversidade, os recursos naturais e transformando em cinzas nosso potencial de bioeconomia”, avaliou Fernanda.
“Faz um ano que a população está sem espaços de diálogo com o poder público para debater medidas sobre a BR-319. Não se fala mais na criação dos portais de fiscalização, por exemplo. Não se fala mais na regularização fundiária, na gestão e proteção das unidades de conservação e terras indígenas, entre outras medidas mínimas para garantir as salvaguardas socioambientais. Precisamos ter um diálogo amplo e democrático com o poder público para dar andamento a questões importantes que podem resultar em soluções para problemas da rodovia”, finalizou.
Relembre
Os alertas aos quais Fernanda se refere são a Portaria nº 7.442, de 28 de dezembro de 2021, publicada no Diário Oficial da União (DOU), que citava a “situação de emergência” do km 13 (fim travessia do rio amazonas, em Careiro da Várzea) ao km 178,50 (fim do segmento pavimentado até então) “haja vista as condições em que se encontra a BR-319/AM, bem como os riscos iminentes aos quais se expõem os usuários, que nela trafegam, devido à situação calamitosa de trafegabilidade no trecho mencionado”, assinada pelo então superintendente regional do Dnit no Amazonas, Afonso Costa Lins Júnior.
E o artigo “Burying water and biodiversity through road constructions in Brazil”, em tradução literal para o português “Enterrando água e biodiversidade através da construção de estradas no Brasil”, publicado em 2019 e quem tem o pesquisador do Inpa, William Ernest Magnusson, como um dos autores. Magnusson alertou ao Ministério Público Federal (MPF) sobre a incompatibilidade de obras previstas para a recuperação da rodovia e as características geográficas locais. “Em 2021, publicamos um artigo que previu os desastres com as pontes.
As estruturas caíram na época da seca, quando o trânsito aumentou, mas é possível ver nas imagens divulgadas que a água tinha cavado em volta dos suportes das pontes no período chuvoso, de subida das águas, quando o aterramento de Áreas de Proteção Permanente [APPs], na cabeceira das pontes, direcionou toda a força da água para as colunas que apoiam as estruturas. Não é o pulso do rio que é o problema, o problema é o aterramento das APPs, com rampas de acesso em vez de pontes atravessando toda a área”, explicou Magnusson ao Observatório BR-319. Segundo o pesquisador, o resumo do artigo em português foi entregue ao Dnit na audiência pública de setembro de 2021.
Agricultura familiar comprometida
O agricultor Jorge Luiz dos Santos, presidente da Associação de Produtores Orgânicos Renascer de Careiro da Várzea, foi um dos entrevistados da edição nº36 do Informativo Observatório BR-319. Na ocasião, ele relatou que as pontes desabaram na véspera do início do escoamento da produção da associação. A situação era bastante crítica, principalmente por causa do abacaxi. Atualmente, segundo Jorge, “a situação está complicada” por diversas razões, uma delas é o atraso em Programas de Aquisição de Alimentos (PAA), “uma das válvulas de escape dos produtores”, e as queimadas.
“Aí, pra acabar de inteirar, agora veio as queimadas queimando tudo. Só da minha associação queimou mais de dez hectares de produtos, abacaxi, sítio que já tinha castanheira, pupunha, laranjeira, limão, queimou tudo. Teve agricultor que nem o contador [de energia elétrica] escapou, queimou até o contador da casa dele”, contou Jorge.
Ele também relatou que o governo do Amazonas chegou a comprar a produção do ano anterior, mas que disse que os produtores não tiveram mais nem um tipo de auxílio para enfrentar as dificuldades impostas pela queda das duas pontes. “E até hoje nós não recebemos nada do governo não”, disse.
“A maior dificuldade tivemos era na travessia para Manaus, principalmente nas balsas dos rios Curuçá e Autaz-Mirim, pois a fila era muito grande e se tivesse um carro-pipa, por exemplo, tínhamos que esperar. Mesmo sabendo que trabalhamos com produtos perecíveis, a gente esperava para não fazer confusão. Era complicado, porque sempre chegávamos fora do horário de venda e perdíamos da feira”, contou Jorge.
Mas deixar de produzir não é uma opção para quem precisa tirar o sustento da terra. “Mesmo com essas dificuldades, já estamos nos preparando para quando a chuva chegar. E o agricultor trabalha de sol a sol para produzir alimentos saudáveis. É muito complicado a gente ter que enfrentar todas essas dificuldades, para escoar e vender nossa produção. Mas, como digo aos nossos associados, temos que plantar cada vez mais, diversificar nossa plantação não abaixar a cabeça, porque é disso nós vivemos a aconteça o que acontecer”, disse o presidente da Associação de Produtores Orgânicos Renascer de Careiro da Várzea.
Impacto ambiental
Ainda é difícil avaliar a extensão dos impactos ambientais provocados pela construção de aterros e pela fixação de balsas nos rios Curuçá e Autaz-Mirim, principalmente no contexto de seca que o Amazonas vive no atual verão amazônico. Para a criação das passagens, trechos de ambos os rios foram aterrados de forma emergencial para atender à necessidade de se manter a trafegabilidade deste setor da estrada.
A morosidade na reconstrução das pontes, ao longo de um ano, consolidou a situação, uma vez que os locais receberam diversas intervenções à medida que o nível dos rios subiu e desceu e que o fluxo de água foi se alterando nos períodos de cheia e vazante. Ainda hoje, a travessia nos locais é feita por balsas fixadas nos aterros construídos.
“Infelizmente, essa situação representa uma grande ameaça adicional aos rios Curuçá e Autaz-Mirim, sua biodiversidade e ecossistemas associados e também às pessoas que aí vivem e dependem dos mesmos, uma vez que as medidas tomadas, de forma precária, alteraram de forma significativa o fluxo da água e o leito dos rios nestes pontos e ainda se acentua pelo forte verão em que nos encontramos, e esta dinâmica deve impactar fortemente também a sobrevivência de peixes e outras espécies que aí vivem e isso por sua vez impacta a vida das pessoas que dependem dos mesmos”, avaliou o diretor da WCS Brasil, Carlos Durigan.
“A solução encontrada de forma emergencial já deveria ter sido adequada para reduzir estes impactos. Em intervenções como estas devemos considerar sempre que ao buscarmos soluções, não podemos gerar novos e ainda mais intensos impactos. Esperamos que todos estes impactos sejam minimizados com a reconstrução definitiva das pontes. Enquanto isso, será importante monitorarmos o que deve acontecer em ambos os rios e apoiar as pessoas que ali vivem”, explicou Durigan.
O que dizem os citados?
Ao Observatório BR-319, o Dnit informou que “com relação a construção da nova ponte sobre o rio Curuçá, km 23,1 da BR-319/AM, as obras já estão em andamento. Atualmente, as equipes da autarquia seguem trabalhando na remoção dos escombros da antiga ponte já em fase final dos trabalhos. Contudo, com a vazante acentuada do rio Curuçá ainda há algumas peças submersas a serem retiradas, o que deve levar um pouco mais de tempo para que este serviço seja concluído.
Em paralelo, está sendo executada a fundação da nova ponte, com os trabalhos de cravação das camisas metálicas das estacas, com montagem das armaduras e concretagem desses elementos. No caso da ponte sobre o rio Autaz-Mirim no km 24,6 da BR-319/AM, os serviços estão focados no desenvolvimento do projeto executivo de engenharia. As obras de construção devem iniciar tão logo este projeto seja analisado e aprovado pelos técnicos do Dnit. Com relação ao orçamento para a construção das duas ponte e remoção dos escombros, o Dnit deve investir aproximadamente R$ 24,8 milhões (Curuçá) e R$ 18,9 milhões (Autaz-Mirim).
O Dnit lembra que a travessia sobre o Curuçá e Autaz-Mirim está sendo realizada por balsas ancoradas nos rios. O Departamento reforça que desde o início deste mês de setembro as embarcações precisaram ser travadas entre os acessos tornando-se fixas e funcionando como ponte. O travamento das balsas deve-se à vazante acentuada dos rios. Sobre a fiscalização das Obras de Arte Especiais (pontes, túneis, viadutos, passarelas e estruturas de contenção), o Dnit possui vigente o Programa de Manutenção e Reabilitação de Estruturas (PROARTE) o qual é responsável pelo gerenciamento de serviços de manutenção e de reabilitação dessas estruturas.”
Sobre as mortes, a Polícia Civil informou que “o Inquérito Policial (IP) ainda não foi finalizado, e depende de documentos a serem enviados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para dar continuidade ao processo”. Mas o portal A Crítica noticiou que pelo menos dez pessoas devem ser indiciadas por homicídio culposo e lesão corporal a partir da investigação que Polícia Civil que dividiu os responsáveis em dois núcleos: aqueles que irão responder pela já comprovada falta de manutenção na estrutura da ponte; e aqueles que contribuíram para o sobrepeso na via.
Postada originalmente no site do Idesam
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