O veneno de Ananteris balzani, assim como o da maioria dos escorpiões, é fraco e pouco eficaz para deter predadores como ratos e corujas. Mas, quando apanhado pela cauda e prestes a ser devorado, o artrópode, um animal noturno de 2 a 3 centímetros de comprimento que vive em regiões rurais e se esconde na camada de terra e folhas secas sobre o solo (a serrapilheira), consegue escapar com uma estratégia radical: agarra-se ao solo com as pernas e faz movimentos vigorosos até provocar o rompimento de parte da cauda. Geralmente, o trecho mutilado cai se contorcendo no chão, o que ajuda a distrair o predador enquanto o escorpião foge. As consequências reprodutivas do mecanismo, exclusivo das 16 espécies do gênero Ananteris, foram analisadas em detalhes pela primeira vez em artigo publicado na revista The American Naturalist em 26/1.
“Além do ferrão, eles perdem parte do abdome, que inclui a parte posterior do intestino, do sistema nervoso e do sistema circulatório, estruturas que não se regeneram”, relata a bióloga Solimary García Hernández, que fez o trabalho como parte do doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com financiamento FAPESP, e também transformou os achados em história em quadrinhos. “Sem o ânus, o animal não consegue mais defecar e passa o resto da vida em permanente constipação.” A mutilação diminui a expectativa de vida, que em suas observações caiu de 1 ano para 7 meses entre os machos e de 18 meses para 1 ano entre as fêmeas, e diminuiu o sucesso reprodutivo das fêmeas. Mas salvou a vida dos animais, tanto machos quanto fêmeas, que sobreviveram e se reproduziram.
O mecanismo, chamado de autotomia, é comum entre insetos, aranhas, lagartos, caranguejos, estrelas-do-mar e polvos. Mas nesses animais a parte amputada não contém órgãos vitais e, muitas vezes, é regenerada integralmente. Isso acontece no documentário sul-africano Professor polvo (2020), em que o cinegrafista fica deprimido quando o molusco perde um tentáculo para um tubarão, até vê-lo ressurgir por completo. Mesmo a minhoca, que perde intestino e ânus, regenera-se e continua defecando normalmente.
“Escorpiões de outros gêneros, ainda que também tenham o veneno fraco, não fazem autotomia da cauda”, ressalta o biólogo Glauco Machado, orientador de Solimary, que também assina o artigo. Ao contrário da abelha, que aferroa só uma vez, o escorpião consegue modular a quantidade de veneno de acordo com tipo e tamanho da presa, retirar o aguilhão e continuar ferroando. É uma ferramenta importante de caça e de defesa, e abrir mão dela é uma perda considerável.
Nos experimentos, a autotomia foi induzida com uma pinça, que simulou o predador. Sem o ferrão, os escorpiões passaram mais tempo caçando e só conseguiram capturar presas pequenas – como insetos – usando as garras, ou pedipalpos, que são pinças ao lado da boca. Para caçar mais, tiveram também de se movimentar mais, expondo-se a predadores, segundo artigo da revista Animal Behaviour publicado em abril de 2020.
Novos desafios também apareceram na cópula. O macho com a cauda encurtada, que balança de um lado para o outro para impressionar a fêmea, perdeu parte do poder de atração. Eles compensaram estimulando as fêmeas com movimentos improvisados, como usar as garras para dar leves mordidas nas garras da fêmea ou usar o primeiro par de pernas para massagear, com um ritmo acelerado, a abertura genital da fêmea. Depois de conquistá-la, o macho a conduz para que passe por cima do esperma, que ele deposita em uma estrutura que parece um pequeno pedestal. Mesmo amputado, ele encosta no chão a ponta do que restou da cauda, servindo como apoio para puxar a fêmea, que tem o dobro do seu peso.
Contornando as limitações, os machos mutilados tiveram sucesso reprodutivo idêntico ao dos intactos, ainda que demorassem um pouco mais para fecundar a parceira. “Em casos raros, esse tempo era até quatro vezes maior, talvez por uma relutância da fêmea ao perceber que o cortejo era diferente”, conjectura Solimary.
Já as fêmeas sofreram mais consequências quando mutiladas. As intactas produziram 35% mais ninfas — os filhotes dos aracnídeos — do que as mutiladas. O excremento acumulado nos intestinos pode ter diminuído o espaço para a gestação, já que os escorpiões são vivíparos: os embriões se desenvolvem dentro da mãe. Além disso, é possível que o excremento produza toxinas que matam alguns filhotes. Talvez isso contribua para que a prole das que não sofreram amputação tenha uma taxa de sobrevivência 54% maior. Mas a perda da cauda não deixa sequelas, e todas as crias que vingaram, no estudo, eram grandes e saudáveis.
O maior custo da autotomia para as fêmeas talvez explique por que os machos são os que mais se automutilam em condições experimentais. Um estudo de 2015 com diferentes espécies de Ananteris publicado na revista PLOS ONE, com a participação de Solimary, verificou que 88% dos machos cuja cauda foi agarrada com uma pinça perderam a cauda, diante de apenas 20% das fêmeas. “É nítido que elas relutam muito antes de abrir mão de parte do abdome”, relata a bióloga colombiana, homenageada com o nome de uma espécie nova coletada em seu país: A. solimariae.
Depois de entender as consequências reprodutivas da autotomia, algumas perguntas ficaram em aberto. Não se sabe por que o gênero Ananteris, bastante parecido com os demais em termos de morfologia e hábitat, foi o único a desenvolver autotomia entre os escorpiões. “Talvez a musculatura interna do abdome seja diferente”, sugere Machado. Também falta esclarecer as circunstâncias exatas nas quais A. balzani toma sua atitude drástica. Como é um mecanismo de alto custo, provavelmente só é adotado quando alternativas mais simples e menos custosas falham, como pinçar o agressor com as garras e aguilhoar com o ferrão para injetar veneno. Se nada disso funciona, a automutilação seria um recurso extremo, útil para a sobrevivência.
“O estudo dos escorpiões geralmente aborda apenas os animais de importância médica, que são 2% das mais de 2.500 espécies, limitando-se ao veneno e à produção de soro — alguns deles são capazes de infligir dor intensa e até matar uma criança ou um idoso debilitado”, assinala a bióloga Gracielle Braga-Pereira, especialista em escorpiões e doutoranda na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Ainda há muito o que desvendar sobre a história natural e o comportamento da maior parte das espécies de escorpião.”
Fonte: Revista FAPESP
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