“Se o país aceitar esse desafio, a BR-319 pode se tornar um laboratório de governança climática e social para o século XXI: uma rodovia vigiada por satélites, protegida por UCs, guardada pela fiscalização, estruturada pela regularização fundiária e animada por economias sustentáveis. Se continuar negando a si mesmo aquilo que já desenhou em norma, relatório e condicionante, o Brasil estará confessando outra coisa: que ainda não decidiu levar a sério nem a Amazônia, nem a própria República“
Coluna Follow-Up
Há mais de meio século, o Amazonas convive com um paradoxo cruel: é parte do Brasil apenas no mapa. Na prática, depende de uma logística cara, lenta, altamente emissora e vulnerável para se conectar ao restante do país. A BR-319, única rodovia que integra o estado ao território nacional, foi mantida num limbo político, jurídico e emocional que se alimenta de uma falsa dicotomia: ou estrada, ou floresta.
O último relatório do Ministério dos Transportes, no qual se baseiam estas anotações, consolidando as condicionantes ambientais e institucionais exigidas para a restauração da rodovia, muda esse cenário. Pela primeira vez, o licenciamento de um grande empreendimento na Amazônia não se limita a “mitigar impactos” em papel: ele desenha, em detalhes, uma arquitetura de governança territorial.
É aqui que está o ponto central deste ensaio:
As condicionantes da BR-319 já configuram um novo patamar de governança na Amazônia. O que está em julgamento agora não é a rodovia – é o próprio Estado brasileiro.
Se o Estado não cumpre o que ele mesmo pactuou, a omissão passa a ser ambiental, social e economicamente insustentável.
O fim da desculpa confortável
O relatório reconhece algo que a ciência, a fiscalização e quem vive na região sabem há muito tempo: os crimes ambientais são frequentes no entorno da BR-319 mesmo sem pavimentação. O problema não é o asfalto; é o vazio de Estado.
O conjunto de condicionantes – da Licença Prévia e do Grupo de Trabalho interministerial – faz exatamente o movimento inverso da velha lógica de “abre estrada e depois corre atrás do prejuízo”. Elas dizem, em síntese:
- A rodovia só avança com:
- pórticos de fiscalização em operação;
- unidades da PRF e PF estruturadas;
- monitoramento via Censipam (desmatamento, queimadas, pistas ilegais, garimpo);
- Mosaico de Unidades de Conservação e gestão ativa das UCs estaduais e federais;
- diagnóstico socioambiental participativo com povos indígenas, comunidades tradicionais e proprietários rurais;
- programas específicos de desenvolvimento local, como o caso da comunidade de Realidade;
- participação direta de pelo menos 11 ministérios e nove entidades, em regime de cooperação.
Ou seja: a BR-319 passa a ser concebida não como um corte bruto na floresta, mas como eixo de reorganização da presença do Estado, da regularização fundiária, da proteção de povos e territórios, e da transição para atividades econômicas sustentáveis.
Quando esse desenho está pronto, acordado e formalizado, insistir em manter a rodovia congelada significa, na prática, optar por deixar a ilegalidade reinar sozinha.
O novo patamar de governança que já está no papel
É importante nomear o que há de inovador nessas condicionantes – especialmente para um país que sempre tratou a Amazônia com improviso logístico e negligência institucional.
- Governança integrada e intergovernamental.
As condicionantes exigem a criação de uma unidade gestora intergovernamental, com cooperação formal entre:- Ministério dos Transportes e DNIT; Ministério do Meio Ambiente e Ibama; ICMBio na criação e gestão da nova Unidade de Conservação; Funai e Ministério dos Povos Indígenas na escuta qualificada dos povos indígenas e na definição de salvaguardas; MDA, Incra e órgãos estaduais de meio ambiente na regularização fundiária e na gestão de UCs; MJ, PRF, PF, Ministério da Defesa e Exército na segurança pública, combate a ilícitos e presença territorial permanente.
Trata-se de uma governança em rede, que aproxima o que sempre esteve fragmentado: transporte, proteção ambiental, proteção de povos tradicionais, segurança, ordenamento territorial, desenvolvimento econômico. - Presença permanente do Estado, não apenas “operação pontual”
As exigências vão além de operações episódicas:- instalação de três Unidades Operacionais da PRF (Careiro, Manicoré, Humaitá);criação da Delegacia da PRF em Humaitá, para gerir o corredor rodoviário; incremento de efetivo policial e uso de estações de rádio base para comunicação em área remota; monitoramento sistemático pelo Censipam, com dados de desmatamento, clima, queimadas e ilícitos ambientais à disposição da fiscalização.
Em vez de rodovia “solta”, temos um esqueleto de Estado presente, armado de dados e tecnologia. - Centralidade de povos indígenas e comunidades tradicionais
As condicionantes não tratam as populações locais como detalhe de EIA/Rima:- preveem diagnóstico socioambiental participativo;exigem a aquisição de área para usufruto exclusivo dos povos Mura e Munduruku;determinam a capacitação de agentes ambientais indígenas e o fortalecimento da vigilância territorial;envolvem MPI, Funai, MIR e MDA na definição da metodologia de escuta e participação.
Isso desloca a lógica de “impactado-resignado” para a de protagonista do território. - Desenvolvimento sustentável como condicionante, não como retórica.
O Ministério dos Transportes é chamado a:- modelar a operação, manutenção e gestão da via com foco em economia sustentável, participação social e preservação ambiental; apoiar programas de diversificação produtiva em comunidades como Realidade, vinculando a rodovia à qualificação de cadeias econômicas sustentáveis.
Em outras palavras, a estrada só faz sentido se vier acoplada a um projeto de bioeconomia, inclusão produtiva e desenvolvimento local.
Esse conjunto, somado à exigência de alinhamento com o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e metas de redução de emissões de GEE, configura exatamente o que o país deveria perseguir em toda infraestrutura na região: rodovia como plataforma de governança climática, social e produtiva, e não como atalho para a grilagem.
Quando a omissão vira crime de futuro
Se antes era possível dizer que a prudência mandava “esperar” por melhores salvaguardas, hoje a situação se inverteu. O que está em curso é outra coisa: a postergação indefinida de decisões que já têm base técnica, jurídica e institucional para avançar.
Essa omissão é insustentável por pelo menos três razões.
1. Ambiental
Mantida a situação atual, o que temos é:
- uma rodovia em estado precário;
- tráfego mesmo assim, à margem de qualquer controle sistemático;
- desmatamento, queimadas, exploração ilegal e grilagem avançando sem presença efetiva do Estado.
Ao não implementar os pórticos de fiscalização, a governança fundiária, o mosaico de UCs e o monitoramento integrado, o país deixa de usar instrumentos já concebidos para reduzir o desmatamento e combater ilícitos.
É um paradoxo: em nome da proteção ambiental, mantém-se um cenário que favorece justamente os agentes da destruição.
2. Social
A população do Amazonas paga o preço mais alto dessa paralisia:
- viagens longas, caras e inseguras;
- dificuldade de acesso a serviços públicos, mercados e oportunidades;
- isolamento de municípios que poderiam ser hubs de uma vocação econômica sustentável.
Negar a restauração da BR-319 dentro de um modelo robusto de governança é, em última instância, negar direitos básicos de mobilidade, integração e cidadania a quem vive na Amazônia. É tratar a floresta como barreira, não como patrimônio compartilhado.
3. Econômica
A indefinição condena o estado a:
- uma logística dependente de poucos modais, cara e de alta pegada de carbono;
- uma integração frágil com cadeias produtivas nacionais e internacionais;
- uma transição energética mais lenta, porque a infraestrutura que poderia apoiar a bioeconomia, a indústria limpa e a logística verde permanece no papel.
Uma BR-319 governada, com presença de Estado, fiscalização e desenvolvimento local, é condição para que o Amazonas participe de forma soberana da economia da descarbonização. Manter tudo paralisado é apostar na periferização permanente da região.
O que falta não é documento. É decisão.
O conjunto de condicionantes reunido pelo Ministério dos Transportes e pelos demais órgãos não é perfeito, mas representa um salto qualitativo inegável na forma como o Brasil enxerga a relação entre infraestrutura e Amazônia.
A partir desse novo patamar, a discussão pública precisa mudar de eixo:
- Já não se trata de perguntar “Estrada ou floresta?”
- A pergunta agora é: “O Estado brasileiro está disposto a ocupar o território com legalidade, ciência, tecnologia e respeito às populações locais – ou continuará terceirizando o comando da Amazônia para o crime, a grilagem e a omissão?”
O que está posto nas condicionantes é uma espécie de pacto:
“Você só pode restaurar a BR-319 se, ao mesmo tempo, restaurar a capacidade do Estado de cuidar da floresta e de sua gente.”
Se o país aceitar esse desafio, a BR-319 pode se tornar um laboratório de governança climática e social para o século XXI: uma rodovia vigiada por satélites, protegida por UCs, guardada pela fiscalização, estruturada pela regularização fundiária e animada por economias sustentáveis.
Se continuar negando a si mesmo aquilo que já desenhou em norma, relatório e condicionante, o Brasil estará confessando outra coisa: que ainda não decidiu levar a sério nem a Amazônia, nem a própria República.
O tempo da dúvida técnica passou.
Agora, a omissão é que se tornou ambientalmente, socialmente e politicamente insustentável.
Follow Up é publicada no Jornal do Comércio do Amazonas às quartas, quintas e sextas feiras sob a responsabilidade do CIEAM e coordenação editorial de Alfredo Lopes, responsável pelo portal BrasilAmazôniaAgora