Comentário do arcebispo de La Plata, Dom Víctor Manuel Fernández, sobre o cumprimento da Lei segundo as tradições judaica e cristã.
Víctor Manuel Fernández
Quando São Paulo fala da justificação pela fé, na realidade ele está retomando profundas convicções de algumas tradições judaicas. Porque caso se afirmasse que a própria justificação é obtida pelo cumprimento da Lei com as próprias forças, sem ajuda divina, se estaria caindo na pior das idolatrias, que consiste em adorar a si mesmo, as próprias forças e as próprias obras, ao invés de adorando o único Deus.
É imprescindível recordar alguns textos do Antigo Testamento e muitos textos hebraicos extra-bíblicos já mostravam uma religiosidade da confiança no amor de Deus e convidavam ao cumprimento da lei ativado nas profundezas do coração pela ação divina (cf. Jer 31, 3,33-34; Ez 11, 19-20; 36, 25-27; Os 11, 1-9, etc.) (1). A “emunà“, atitude de profunda confiança em Yahweh, que ativa o cumprimento autêntico da Lei, “está no cerne da exigência de toda a Torá” (2).
Um eco recente dessa antiga crença judaica, que renuncia à autossuficiência diante de Deus, pode ser encontrado na seguinte frase do Rabino Israel Baal Shem Tov (início do século XIX): “Temo muito mais minhas boas ações que me produzem o prazer do que aquelas más que me causam horror” (3).
As tradições judaicas também reconhecem que para cumprir totalmente a Lei é necessária uma mudança que começa pelos corações. Cristãos e judeus não dizem que o que vale é o cumprimento exterior de certos costumes sem o impulso interno de Deus. A teologia judaica na realidade coincide com a doutrina cristã sobre este ponto, sobretudo se se parte da leitura de Jeremias e Ezequiel, onde aparece a necessidade de uma purificação e de uma transformação do coração. Como não ver em Rom 2, 28-29 uma continuação e um aprofundamento de Jr 4, 4; 9, 24-25)? Judeus e cristãos reconhecem que somente a lei externa não nos pode mudar sem a obra purificadora e transformadora de Deus (Ez 36,25-27), que por nós já começou a tornar-se presente no seu Messias (Gl 2, 20-21).
Por outro lado, recordemos que, segundo a interpretação muito profunda de Santo Agostinho e Santo Tomás sobre a teologia paulina da nova lei, a esterilidade de uma lei externa sem a ajuda divina não é somente uma característica da Lei judaica, mas também dos preceitos que o próprio Jesus nos deixou: “também a letra do Evangelho mataria se não tivesse a graça interior da fé, que cura” (4).
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Notas:
(1) O texto de Ab 2,4, que expressa esta atitude fundamental, é de fato citado por São Paulo quando fala da justificação pela fé em Gal 3, 11 e em Rom 1,17.
(2) Cf. C. Kessler, Le plus grand commandement de la Loi (cit) 97. É preciso dizer aqui que as afirmações de Paulo sobre uma “caducidade” da Lei deveriam ser inseridas no contexto da “doutrina rabínica do éons”, segundo o qual, no final dos tempos, o instinto do mal será erradicado dos corações humanos e a lei externa não será mais necessária. Paulo, com efeito, acreditava estar vivendo nos últimos tempos e esperava um retorno iminente do Messias: “Paulo era um fariseu convicto de viver em um tempo messiânico”. H.J. Schoeps, Pau1. The theology of the Apostle in the light of Jewish religious story, Philadelphia, 1961, p. 113. Por isso, em 1 Timóteo, quando a expectativa de uma vinda iminente era muito mitigada, a lei adquiriu maior importância (cf. 8-9).
(3) Citado por E. Wiesel, Celebración jasídica, Salamanca, 2003, p. 58; Celebração hassídica, Milão, 1987.
(4) Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, questão 106, artigo 2.
Fonte: VaticanNews
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