Julgamento no Supremo Tribunal Federal foi adiado mais uma vez e será retomado na próxima quarta-feira. Indígenas seguem mobilizados em Brasília
Foi adiado mais uma vez o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre ação que trata do “marco temporal” nos processos de demarcação de terras indígenas no país. A votação, prevista para acontecer nesta quinta-feira (26), está remarcada para a próxima quarta-feira (1º/09), quando entrará como primeiro item da pauta.
Será uma sessão longa, que deve se estender para os dias subsequentes, já que, antes da manifestação dos ministros do Supremo, estão previstas 39 sustentações orais das partes.
A sessão desta quinta foi encerrada após a leitura do relatório do ministro Edson Fachin, que voltou a se posicionar contrário à tese do “marco temporal”.
A expectativa em torno deste que é considerado o julgamento mais importante para os povos indígenas em 30 anos reuniu mais de 6 mil representantes de 173 povos em Brasília. Inicialmente previsto para durar até o dia 28, o Acampamento “Luta Pela Vida” deve continuar para além desta data. Esta é a maior mobilização indígena desde 1988.
Marco temporal
De acordo com a tese do “marco temporal”, os povos indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, as populações indígenas precisariam comprovar que estavam em disputa judicial ou conflito pela área na mesma data.
“A tese é perversa porque desconsidera expulsões e outras violências sofridas por essas populações. Além disso, ignora o fato de que eram tuteladas pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente até 1988”, disse Sônia Guajarara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em artigo publicado recentemente.
A expulsão de populações indígenas de seus territórios é realidade para muitas etnias. Os Xavante de Marãiwatsédé, por exemplo, foram transferidos compulsoriamente de sua terra no período da Ditadura Militar. Na época em que a Constituição foi promulgada, eles ainda não haviam conseguido voltar para suas terras, direito que só foi conquistado depois de 40 anos de luta.
Para diferentes organizações, ligadas à causa indígena ou não, juristas, políticos, artistas e influenciadores, a tese do “marco temporal” fere os artigos 231 e 232 da Constituição e afronta tratados internacionais de direitos humanos e sobre os povos tradicionais. O termo tem sido referenciado com palavras como “etnocídio” e “ecocídio”.
“O argumento do marco temporal desconsidera remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas antes da Constituição. A história dos habitantes originários não começa em 1988”, defende a Operação Amazônia Nativa (OPAN), a primeira organização indigenista do Brasil.
A discussão sobre o Marco temporal começou em 2013 em Santa Catarina, quando o governo local entrou com um pedido de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, onde vive o povo Xokleng. Na época, a Fundação Nacional do Índio (Funai) entrou na Justiça e, de recurso em recurso, a disputa chegou ao STF.
O que o STF iria julgar hoje era o recurso da Funai sobre a decisão da Justiça catarinense, mas a decisão tem força de repercussão geral, ou seja, afetará os processos de demarcação de terras indígenas de todo país.
Terras indígenas X agronegócio
Dentre os defensores do “marco temporal”, estão ruralistas, garimpeiros e outros agentes interessados em terras indígenas. Em Mato Grosso, por exemplo, alguns ruralistas ingressaram como interessados na ação agora analisada pelo STF. Eles alegam que as demarcações comprometem a produção agropecuária e que, para atender a demanda por territórios, no limite, até o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, teria de ser devolvido aos povos originários.
Levantamento dos procedimentos demarcatórios já abertos e dados publicados no Diário Oficial da União, feito pela Apib, mostram, no entanto, que apenas 13,8% do território brasileiro é ocupado por TIs – a média mundial é 15%, segundo estudo publicado na revista Nature Sustainability em 2018.
Propriedades rurais somam três vezes mais, ou 41% do Brasil, segundo o IBGE, sendo que menos de 100 mil destas propriedades ocupam 21,5% do território nacional, de acordo com estudo publicado em 2019 na revista científica Land Use Policy. Ou seja, os maiores detentores de terras no Brasil são grandes latifundiários.
Mais de 98% da extensão das TIs fica na Amazônia Legal, muitas vezes em locais remotos e sem aptidão para agropecuária extensiva. Apenas 0,6% do resto do Brasil é ocupado por indígenas.
Ainda de acordo com a Apib, onde há mais conflitos com TIs, o percentual ocupado por elas é ínfimo. No Rio Grande do Sul, é de 0,4%, enquanto as propriedades rurais ocupam 77%, e assim por diante: na Bahia, 0,5% é ocupado por indígenas, enquanto 49% por propriedades rurais; Paraná (0,6% e 74%); Santa Catarina (0,8% e 67%), Mato Grosso do Sul (2,4% e 85%); Goiás (0,1% e 77%), Minas Gerais (0,2% e 65%) e São Paulo (0,3% e 66%).
Outros argumentos utilizados pelos ruralistas são o risco – infundado – de desapropriações, caso a tese seja derrubada, e a segurança jurídica que o estabelecimento de um marco de tempo traria para a legislação brasileira voltada para a demarcação de terras indígenas.
Juliana Batista, advogada no Instituto Socioambiental (ISA), se contrapõe a esse argumento. “A insegurança jurídica é gerada quando um setor econômico busca subterfúgios para não cumprir a Constituição, que determina que os direitos indígenas são originários. Temos 51 milhões de hectares de terras públicas não destinadas. Não falta terra”, disse.
Guardiões da floresta
Em março passado, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou relatório com evidências científicas sobre a importância das populações indígenas na proteção das florestas e na regulação do clima.
O documento trouxe uma revisão de mais de 300 estudos publicados nas últimas décadas sobre a governança florestal por povos indígenas e tribais, sendo que 73 deles eram dos últimos dois anos (2019 e 2020).
Segundo o documento, populações indígenas na América Latina e Caribe ocupam 404 milhões de hectares, sendo mais de 80% desta área coberta por florestas (330 milhões de ha). Destas, 173 milhões de hectares são de florestas intactas.
Do total desta área, 237 milhões de hectares (cerca de 60%) estão localizados na Bacia Amazônica e 269 milhões de hectares são formalmente reconhecidos pelos governos locais – restam 135 milhões de hectares a serem titulados.
As florestas em territórios indígenas que foram mapeadas armazenam cerca de 34 bilhões de toneladas métricas de carbono (MtC). Isto é quase 30% de todo carbono armazenado nas florestas da América Latina e 14% de todo carbono das regiões tropicais.
O documento da FAO também revelou que essas florestas não somente armazenam, mas também capturam carbono. Entre 2003 e 2016, o carbono capturado em territórios indígenas na Bacia Amazônica foi igual a 90% do total de carbono emitido nesses territórios devido ao desmatamento e degradação florestal. Isto é, as florestas em terras indígenas são consideradas praticamente carbono neutro.
Segundo a FAO, ainda que territórios indígenas cubram 28% da Bacia Amazônica, eles são responsáveis por apenas 2,6% das emissões (brutas) de carbono na região. Além disso, enquanto esses territórios perderam menos de 0,3% de carbono entre 2003 e 2016, áreas protegidas não indígenas perderam 0,6% e outras áreas que não eram indígenas nem protegidas perderam 3,6%.
Fonte: O Eco
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