“As Brincadeiras Africanas de Weza” foi produzido por doutoranda da USP, com o coletivo Luderê Afrolúdico
“É a possibilidade de vislumbrar, para pessoas negras, outros lugares, que se distanciam do estereótipo racista. É uma oportunidade de ter contato com a pluralidade de vivências e possibilidades de ser negro no Brasil”, reflete Sheila Perina de Souza, doutoranda da Faculdade de Educação (FE) da USP, sobre o livro infantil As Brincadeiras Africanas de Weza, desenvolvido por ela em parceria com o coletivo Luderê Afrolúdico, de São Paulo. Através do olhar da menina Weza, o livro busca oferecer uma narrativa que se contrapõe aos estereótipos sobre a África que são disponibilizados para as crianças desde muito cedo.
Publicado em 11 de junho pela Kitembo Edições Literárias do Futuro, o livro foi ilustrado por Whitney Machado e é contemplado pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. “Tínhamos uma preocupação muito grande em utilizar o dinheiro público com responsabilidade, de modo a devolver para a sociedade um produto que contribuísse para a luta antirracista e para a igualdade de gênero, que são os pilares que sustentam os ideais do coletivo Luderê Afrolúdico”, afirma Sheila.
Na narrativa, Weza conta o que conheceu ao viajar por quatro países africanos – Angola, Moçambique, África do Sul e República Democrática do Congo – com suas duas mães, Faira e Jussara. A garota compartilha com o leitor as brincadeiras que aprendeu por lá, além das tradições, línguas e histórias que conheceu.
A construção da personagem Weza foi bem trabalhada pelo coletivo. “Ela é uma menina alegre, doce e muito curiosa, daquelas crianças bem sabidas que gostam de explorar”, diz Sheila. “O perfil étnico-racial da personagem também foi pensado coletivamente com muito cuidado e em diálogo com a ilustradora Whitney Machado. Weza é uma menina negra, gorda e de cabelo curto. Temos sentido falta de personagens negras com pele escura nas narrativas infantis”, revela Sheila. O cabelo foi outro aspecto importante na construção da protagonista, tendo sido escolhido o cabelo crespo do tipo 4c para ela. “Observamos que, entre os cabelos crespos, recai uma discriminação maior sobre os cabelos mais crespos”, destaca a autora.
Dessa forma, o coletivo investiu na positivação da imagem de Weza, cuja aparência se assemelha à de muitas meninas brasileiras que não têm sua imagem retratada em narrativas literárias ou televisivas. “Acredito que é muito enriquecedor para as crianças de diferentes etnias e estratos sociais ter contato com narrativas apresentadas por uma menina negra, inteligente, curiosa e que adora viajar”, acrescenta Sheila.
Outro ponto de destaque é que as viagens da garota permitem que ela estabeleça uma forte relação ancestral com a África. “Seu nome, Weza, é proveniente da língua kimbundo de Angola e significa ‘aquela que veio/voltou’. Há essa marca de quem vai à África como um retorno, em referência aos seus ancestrais.”
Segundo Sheila, a ideia para o livro surgiu em decorrência da pandemia em 2020. No ano anterior, o coletivo havia sido contemplado com o Programa VAI, através do projeto Ludicidade e Africanidades: Espaço Afro Lúdico para Crianças, que visa à circulação de ocupações relacionadas ao brincar em espaços públicos. “Com a impossibilidade de continuar os trabalhos presencialmente, tivemos que repensar como chegaríamos até as crianças que estavam em suas casas, e muitas com limitações ou sem acesso à internet”, explica Sheila. “Percebemos que um livro, talvez, pudesse cumprir essa questão, e inclusive chegar a crianças em outros pontos do País.”
O objetivo do projeto é oferecer às crianças das regiões periféricas da cidade de São Paulo atividades dentro do espaço móvel de brincar com referências africanas e afro-brasileiras. A partir das artes integradas, como literatura, música e dança, há a realização de jogos, brincadeiras, oficinas, mediação de leitura e contação de histórias.
A verdadeira África
Para confrontar os estereótipos sobre o continente africano, o coletivo buscou mostrar as especificidades linguísticas e culturais de cada um dos quatro países que Weza visitou, para além das brincadeiras aprendidas. “Por exemplo, ao visitar a República Democrática do Congo, Weza, além de aprender a brincar de nzango, conhece a história do Reino do Congo, um dos reinos mais poderosos da África”, diz Sheila.
Com essas referências, a ideia é desmistificar a noção da África como espaço que tem sua história somente relacionada ao colonialismo, escravização ou guerras internas. “É importante disponibilizar às crianças a informação de que os afro-brasileiros não são descendentes de escravizados, mas descendentes de um povo com história, tecnologia e comércio avançado”, ressalta Sheila.
Ainda sobre os aspectos de representatividade da narrativa, Weza apresenta uma configuração de família diferente da tida como tradicional, com duas mães e um irmão mais novo. “Os afro-brasileiros são plurais, assim como o continente africano. O livro busca se desvincular das imagens estereotipadas que a sociedade brasileira insiste em imprimir sobre os africanos e seus descendentes”, complementa Sheila.
Para a autora, há cada dia mais narrativas infantis que englobam temáticas de gênero e antirracistas, por exemplo. Mas, apesar do avanço, “há ausência de incentivo para que essas literaturas cheguem a públicos mais amplos, inclusive às escolas, que são muitas vezes as instituições disseminadoras de imagens enviesadas sobre a África e seus descendentes”. Sheila ressalta que, mesmo com a Lei 10.639 – posteriormente modificada pela Lei 11.645, que estabelece a obrigatoriedade da cultura africana, afro-brasileira e indígena no currículo escolar —, ainda é um desafio “a presença da literatura sobre o continente africano narrada por africanos ou por afrodescendentes”. Para ela, é urgente a valorização dessas produções.
A pesquisa do “pretoguês”
Em seu mestrado na Faculdade de Educação da USP, Sheila investigou imagens das línguas bantu no discurso dos professores e alunos moçambicanos. Atualmente, no doutorado, volta-se para a pesquisa do “pretoguês”. “Como diria Lélia Gonzalez – intelectual pioneira nos estudos sobre cultura negra no Brasil –, é o português influenciado pelas línguas africanas. Eu investigo as imagens dessa influência linguística nas escolas de Angola, Brasil e Moçambique”, explica.
O interesse pelas variantes do português influenciadas pelas línguas africanas aparece no livro As Brincadeiras Africanas de Weza, sobretudo nos diálogos. Sheila exemplifica com uma passagem em que Weza enriquece seu vocabulário usando o termo angolano “muito fixe”, para contar que gostou de uma brincadeira. Ao longo do livro há pequenos glossários com os significados dessas palavras.
Sheila também teve experiências com intercâmbios universitários que influenciaram suas pesquisas e também o desenvolvimento do livro. “O intercâmbio é uma maneira de aprender por meio de outras lentes. No meu caso, me fez me despir da lente eurocêntrica e ter contato com as possibilidades a partir das diferentes lentes africanas”, diz Sheila. “Toda a experiência de imersão em Angola e Moçambique, onde passei mais tempo, mas também na África do Sul e República Democrática do Congo, contribuiu para a construção do livro”, diz.
Em Angola, Sheila vivenciou sua primeira experiência na docência, dando aulas para crianças em fase de alfabetização, com as quais aprendeu brincadeiras locais. “Foi um período em que tive a sensação de que a minha ida a Angola era na verdade uma volta. Eu sentia que tinha voltado para casa”, finaliza Sheila.
O livro As Brincadeiras Africanas de Weza pode ser adquirido através deste link ou pelo Instagram do coletivo Luderê Afrolúdico. O coletivo também tem uma porcentagem de livros que está encaminhando, gratuitamente, a bibliotecas públicas interessadas.
Fonte: Jornal da USP
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