Com apoio técnico do Observatório do Clima (OC), quatro partidos de oposição pedem ao Supremo Tribunal Federal (STF) que determine em caráter liminar a suspensão imediata do uso dos recursos não reembolsáveis do Fundo Clima no projeto Lixão Zero de Rondônia.
A petição foi protocolada ontem, dia 5, por Rede, PSB, PT e PSOL na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708, ajuizada pelos mesmos quatro partidos em 5 de junho no STF. A ação requer do Supremo que determine ao ministro Ricardo Salles a reativação efetiva do Fundo Clima.
Se a petição for acatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF nº 708, o financiamento só poderá ser retomado se todas as irregularidades existentes e indicadas no Lixão Zero forem totalmente sanadas. Entre as irregularidades identificadas pelo OC e os quatro partidos, o documento destaca a falta de análise técnica, a ausência de publicação de edital público para a seleção dos projetos e o descumprimento da Lei Federal n.º 4.320/1964, que regula os orçamentos públicos, e do Decreto n.º 93.872/1986, que regulamenta a unificação dos recursos do Tesouro Nacional.
O documento fundamentou seu pedido ao ministro Barroso com informações de três reportagens publicadas em dezembro por ((o))eco sobre o uso suspeito da parcela não reembolsável do orçamento de 2020 do Fundo Clima pelo MMA. As reportagens apontaram ao menos 16 procedimentos suspeitos na operação montada pela pasta para viabilizar o projeto Lixão Zero, encabeçado inicialmente pelo governo de Rondônia. As reportagens foram publicadas nos dias 9, 21 e 23.
Para os quatro partidos, “o Ministério do Meio Ambiente agiu descaradamente para retirar do Fundo todo o valor previsto para 2020 na linha de recursos não reembolsáveis e transferi-lo para projeto de discutível relevância se considerada a política climática (prevendo até mesmo a compra de caminhão de lixo) e de interesse exclusivo de um governador aliado do chefe do Poder Executivo Federal”.
No dia 9 de dezembro, ((o))eco publicou sua primeira reportagem a respeito do uso suspeito do Fundo Clima para financiar o projeto Lixão Zero. Pouco mais de duas horas após a publicação, o secretário estadual do Desenvolvimento Ambiental, Marcílio Leite Lopes, protocolou carta na Plataforma +Brasil às 22h02 sugerindo a André França, secretário de Qualidade Ambiental do MMA, trocar o governo rondoniense pelo Consórcio Intermunicipal da Região Centro Leste do Estado de Rondônia (Cimcero) como executor do Lixão Zero.
A entidade foi presidida até recentemente pela prefeita de São Francisco do Guaporé (RO), Gislaine Clemente (MDB), conhecida como Lebrinha, presa em 25 de setembro na operação Reciclagem, deflagrada pelo Ministério Público de Rondônia e pela Polícia Federal.
A petição observa que ocorreu uma “substituição apressada do próprio proponente do projeto” em quadro no mínimo preocupante, visto que “a presidente da entidade foi presa no final de setembro por envolvimento em um suposto esquema de corrupção em contratos com coleta e destinação de lixo em Rondônia”.
Por fim, a petição acusa o MMA de tentar novamente driblar a ADPF nº 708, uma vez que “buscou, ao apagar das luzes do tumultuado ano de 2020, financiar um projeto que em nada se relaciona com as principais diretrizes da Lei Federal que disciplina a Política Nacional sobre o Clima no país, alicerce do Fundo Clima (…)”. Cita trecho de manifestação apresentada pelo Observatório do Clima em petição protocolada em 9 de novembro passado nos autos da ADPF nº 708 que aponta contribuição de apenas 4% do setor de resíduos nas emissões totais de gases de efeito estufa do Brasil. O OC baseou-se nos dados de 2019 do Sistema de Estimativas de. Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (Seeg).
Para se antecipar a eventual cobrança do governo a respeito de uma suposta negligência quanto ao grave problema dos lixões a céu aberto no país, a petição protocolada pelo OC diz o seguinte: “Não se nega a relevância dos problemas enfrentados no país no campo do saneamento básico, incluindo todos os temas abrangidos pela Lei nº 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, nem dos assuntos relacionados à importante Lei Federal nº 12.305/2010, que trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos.”
Prossegue o documento: “O que vale ponderar é que, após a completa e total paralisação do Fundo Clima pela atual gestão do Meio Ambiente, quando se anuncia algum movimento no sentido de disponibilizar os recursos previstos em Lei – por força desta ADPF, ao que tudo indica –, a mesma gestão agora intenciona destinar esses recursos da Política Nacional sobre Mudança do Clima para um setor que responde por menos de 5% das emissões brasileiras!”
Manifestações sobre a petição
A reportagem pediu ao OC e a representantes da Rede, PSB, PT e PSOL que comentassem o uso suspeito do Fundo Clima pelo MMA e a petição protocolada ontem no STF nos autos da ADPF nº 708. OC, PT e PSOL atenderam à solicitação da reportagem, que, porém, não havia recebido até o fechamento deste texto as manifestações do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, e do deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ), líder de seu partido na Câmara dos Deputados.
O espaço também continua disponível para o MMA apresentar esclarecimentos a respeito dos procedimentos suspeitos revelados por ((o))eco em dezembro e posicionamento ante a ADPF nº 708 e a petição protocolada ontem no STF.
“O Observatório do Clima espera que o direcionamento do total dos recursos não reembolsáveis de 2020 para um único projeto receba a atenção dos órgãos de controle e do Judiciário”, diz Marcio Astrini, secretário executivo do OC. “Depois de paralisar o Fundo Clima por mais de ano e meio, o que parece é que o governo aplicou o dinheiro segundo critérios exclusivamente políticos e de maneira duvidosa”, afirma.
“O desvio de função do Fundo Clima é mais uma ação do governo Bolsonaro de desmonte de políticas públicas e instituições que zelam pelo cumprimento dos compromissos do Brasil com as metas climáticas”, comenta o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), secretário nacional de meio ambiente e desenvolvimento do PT. Para ele, o fundo está sendo utilizado para atender a aliados políticos. Isto é “escandaloso”, na opinião do deputado, “e, no mínimo, merece uma investigação por improbidade administrativa de Ricardo Salles”.
Segundo Tatto, o governo Bolsonaro utiliza-se de argumentos negacionistas e repletos de delírios ideológicos para minimizar a importância das metas climáticas. “Como é obrigado a usar os recursos, faz politicagem rasteira, tornando o Estado um balcão de negócios. Mais do que nunca é preciso pressionar pelo afastamento de Ricardo Salles e criar constrangimento internacional para que o presidente da República não nomeie outro igual a ele para o MMA.”
“Já são, lamentavelmente, inúmeras as iniciativas e denúncias, como as ações do partido na Justiça Federal contra a contaminação de óleo no litoral brasileiro, as ações no STF sobre o Fundo Clima e o Fundo Amazônia e iniciativas perante a Procuradoria- Geral da República sobre a reunião do gabinete presidencial realizada em 22 de abril de 2020 (a tal da “passar a boiada”)”, observa André Maimoni, advogado do PSOL e um dos que assinam a ADPF nº 708 e a petição que pede a suspensão do contrato de financiamento do projeto Lixão Zero de Rondônia . Segundo Maimoni, o PSOL tem denunciado e lutado, tanto no Judiciário como no Congresso Nacional, para anular atos lesivos ao meio ambiente praticados pelo Ministério do Meio Ambiente.
A investigação
Numa apuração iniciada no início de dezembro de 2020, ((o))eco já identificou 16 procedimentos suspeitos no processo de análise e aprovação do repasse dos recursos não reembolsáveis do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMC) e do Fundo Clima para o projeto Lixão Zero, do governo de Rondônia. Veja box no fim deste texto com a relação dos 16 procedimentos suspeitos.
Na primeira reportagem, publicada em 9 de dezembro, o site mostrou que todo o orçamento de 2020 do Fundo Clima, R$ 6,2 milhões, foi direcionado para uma única iniciativa – o Lixão Zero, que visa encerrar 11 lixões, beneficiando 15 cidades em Rondônia, estado administrado pelo governador Mauro Mendes (PSL), coronel da PM e um dos mais fiéis aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Na segunda, publicada em 21 de dezembro, ((o))eco revelou que o MMA omitiu do comitê gestor do Fundo Clima que o governo de Rondônia estava impedido de receber recursos federais por causa de pendências financeiras com a União. A matéria informou, ainda, que o MMA aceitou a recomendação do governo de Rondônia para que fosse substituído pelo consórcio Cimcero como novo executor do projeto. A troca foi proposta à pasta de Meio Ambiente às 22h02 do dia 9 de dezembro, pouco mais de duas horas depois que ((o))eco publicou sua primeira reportagem sobre o assunto.
Publicada em 23 de dezembro, a terceira reportagem relatou que o MMA estava promovendo operação relâmpago para viabilizar até o fim de dezembro o uso integral do orçamento não reembolsável do Fundo Clima de 2020 no projeto Lixão Zero de Rondônia. Tendo o controle do comitê gestor do Fundo Clima, o MMA conseguiu a aprovação do Cimcero como novo executor do projeto na reunião extraordinária do órgão ocorrida em 22 de dezembro, uma semana após a troca ter sido efetuada pela pasta. O contrato entre a Caixa, responsável pelo repasse do dinheiro, e o Cimcero foi assinado no dia 28 de dezembro.
Os 16 enroscos que o MMA não esclarece
O processo de análise e aprovação do projeto Lixão Zero no comitê gestor do Fundo Clima apresenta inúmeros procedimentos suspeitos não esclarecidos pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) que não respondeu a nenhum dos e-mails enviados à sua assessoria de comunicação (Ascom) desde o início de dezembro. Respostas às questões feitas foram cobradas por telefone da Ascom ao menos uma meia dúzia de vezes. Segue a relação atualizada dos procedimentos nebulosos do MMA identificados por ((o))eco na tramitação do projeto Lixão Zero no MMA:
- MMA não realizou chamada pública para o envio de projetos destinados à análise e eventual aprovação pelo comitê gestor do Fundo Clima em 2020.
- Nota técnica inicial do MMA, favorável ao projeto Lixão Zero de Rondônia, foi produzida em tempo recorde – menos de cinco horas em 23 de junho último.
- MMA ignorou ausência no projeto de estudos de viabilidade técnica e econômica e sobre emissões de gases de efeito estufa.
- Pauta e ata da reunião de 15 de julho deste ano do conselho deliberativo do FNMA não foram divulgadas no portal do MMA.
- Documentos do projeto também não foram publicados no site do MMA.
- O plano original de alocação de recursos para o projeto de Rondônia não previa o repasse de dinheiro do Fundo Clima, conforme atesta a ata da reunião do FNMA realizada em 15 de julho, obtida por ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
- Parecer do MMA de 18 de agosto confirmou a aprovação da proposta pelo conselho do FNMA e a encaminhou à Caixa, agente financeiro responsável pelos repasses ao governo de Rondônia. O documento não diz que metade do custo total do Lixão Zero dependia da autorização do comitê gestor do Fundo Clima para o MMA aplicar no projeto o valor integral disponível em 2020 para a linha não reembolsável do Fundo Clima.
- O MMA tinha conhecimento das pendências fiscais de Rondônia que impediam o estado de receber recursos federais por meio de convênios, mas a informação foi omitida dos integrantes do comitê gestor do Fundo Clima na reunião de 22 de outubro, que aprovou a aplicação no projeto do orçamento total da linha não reembolsável do instrumento em 2020.
- Três notas de empenho foram geradas em 2020, somando R$ 8,9 milhões, mas o plano de trabalho da proposta prevê desembolso de apenas R$ 400 mil este ano.
- Documentos técnicos do projeto são assinados somente por ocupantes de cargos comissionados, sem assinaturas de analistas ambientais de carreira e não comissionados, normalmente responsáveis pela produção desses documentos.
- Duas notas de empenho foram emitidas em 15 de dezembro pelo MMA, assegurando a destinação de 70% do valor total do projeto para consórcio Cimcero, sem autorização dos colegiados do FNMA e do comitê gestor do Fundo Clima. Como o plano de trabalho do projeto permanece o mesmo, 97% dos desembolsos serão efetuados somente em 2021 e 2022.
- O orçamento integral do Fundo Clima para 2020 foi incluído em uma das notas de empenho emitidas em favor do Cimcero. Ou seja, o orçamento ficou reservado para o Cimcero, antes que o colegiado do fundo deliberasse sobre a troca de proponente, o que impossibilitou o uso do dinheiro em projetos com maior relevância para a política de combate às mudanças climáticas.
- O proponente do projeto foi substituído no dia 15 de dezembro pelo Cimcero sem que houvesse análise de sua capacidade técnica e econômica para executá-lo e anuência dos colegiados do FNMA e do Fundo Clima.
- Parecer do MMA favorável à troca do proponente comunica que os colegiados do FNMC e do Fundo Clima deveriam ratificar a substituição. A reportagem ficou sabendo por vias informais da reunião do comitê gestor do Fundo Clima, agendada para esta terça-feira, 22 de dezembro, às 10h30. Não há, contudo, informação no portal do MMA sobre a provável reunião extraordinária do conselho deliberativo do FNMA.
- A troca do executor do projeto Lixão Zero foi aprovado pelo colegiado do Fundo Clima, que desconsiderou os pedidos dos representantes do FBMC, da CNC e da CNT para que a decisão fosse tomada depois que houvesse mais informações, inclusive financeiras, sobre o Cimcero, que teve sua presidente presa em setembro numa operação do MP-RO e da PF contra um suposto esquema de corrupção envolvendo serviços de lixo em quatro cidades de Rondônia.
- Caixa teve um dia útil para analisar o projeto Lixão Zero e volumosa documentação do Cimcero a tempo de deferir ou não o apoio do Fundo Clima ao projeto. O contrato foi assinado no dia 28 de dezembro.
Fonte: O Eco
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