Num momento onde a ideologia do liberalismo econômico é mais forte do que nunca no dito e no não-dito das pessoas, é fácil assumir-se liberal na economia. Difícil é respeitar as instituições. Difícil é respeitar o rito do processo legal, e os direitos humanos.
Por Igor Lopes
___________________
Este é um artigo de opinião do autor. Não traduzindo, necessariamente, a posição do portal BrasilAmazôniaAgora
As eleições de 2018 se tornaram uma das mais atípicas na história da democracia brasileira. Um candidato da velha política, usando um jargão arcaico e expedientes digitais de impacto, conseguiu emplacar-se como um outsider representante do “novo”: misturando tudo isso, conseguiu ser eleito.
Este fato deve dar o tom do debate em torno da democracia brasileira, do desenho do nosso sistema político presidencialista, mas sem deixar pra lá a busca de identificar quais são os maiores e verdadeiros problemas do Brasil.
O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, numa entrevista recente, especulou que este fato se explica em boa medida com a despolitização do debate no Brasil, e que isso favoreceu a ascensão da extrema-direita, rematando com a eleição de Jair Bolsonaro (em qualquer postura sóbria: o pior governo da história da nova república, para dizer o mínimo). Faltou dizer, porém, quem foi o principal responsável por este acontecimento da despolitização, certo?
Para além do uso político e eleitoreiro do “combate à corrupção”, precisamos entender que é impossível analisar a realidade dessa prática apenas com a ótica moral da “sem vergonhice” e da “roubalheira”. Corrupção, no nível que conseguimos atingir, não se faz tão cotidiana por decisões individuais de políticos, de esquerda ou de direita, mais ou menos mal intencionados, egoístas ou justificados. Querer abordar o fenômeno da grande corrupção sem considerar a real política e a disputa por orçamento entre os poderes da república é ter compromisso com um moralismo difuso em detrimento do espírito iluminista que considera ser possível compreender a realidade – e a partir disso mudá-la – usando a razão e a ciência como instrumento.
O debate da corrupção até aqui tem tratado o tema não apenas como um gravíssimo problema da república. E sim como o grande e principal problema a se corrigir. Foi isso que algumas pesquisas revelaram em meados de 2018, e foi sobretudo isso que motivou o compreensível antipetismo, decisivo para eleição do apedeuta da República.
O exercício da política na democracia tem pouca aderência com a busca socrática pelo melhor argumento. A corrida pelo poder é permeada e bem ilustrada, quase sempre, por afetos. Isto é, o político bom é aquele que consegue em grande medida gerar e arrastar afetos poderosos. Destacam-se dois: o medo e a esperança.
Em certos momentos, nada mais poderoso do que convencer pessoas de que a esperança por um futuro melhor passa pelas mãos de um determinado sujeito – e apenas dele.
Em outros contextos, que podem se embaralhar e conviver a todo momento, nada mais importante para manter-se forte do que mobilizar pessoas com o convencimento de que tal candidato em questão pode até ser ruim, mas o outro que busca o lugar dele – que está à espreita, e que pode surgir a qualquer momento – é na verdade muito pior.
Afinal, quem não teria medo da corrupção “voltar”, como se ela tivesse ido embora? Quem em sã consciência não teria medo do Brasil se tornar uma Cuba ou uma Venezuela? Quem não quer um futuro sem corrupção?? Quem não quer um país próspero onde a vida dos filhos seja melhor que dos pais, e a dos netos melhor que a dos avós?
Bem, o ponto é que essas questões são inteiramente falsas. Não há debate entre elas, há apenas unanimidade. Todo mundo quer um mundo melhor. A questão real é quando alguém faz essas unanimidades parecerem divergências, colocando o outro lado como aquele que está a atrapalhar o futuro promissor que agora (quase todos) queremos.
Essa é a semente da enorme distopia que vivemos. A era onde as democracias liberais estão entrando em cheque como mecanismo de “outsiders” conquistarem e manterem o poder.
Bem, democracia liberal é o nome desse sistema que o Ocidente convencionou chamar como norte institucional dos países. Que tem como principal base: o liberalismo político.
Sem a intenção de definir tais conceitos, nem a de debater se esse é ou não o melhor sistema político possível, é preciso dizer que qualquer um que se diga liberal e que não tenha compromisso com o liberalismo político, isto é, com as as instituições da República, é um charlatão. Um reacionário.
Num momento onde a ideologia do liberalismo econômico é mais forte do que nunca no dito e no não-dito das pessoas, é fácil assumir-se liberal na economia. Difícil é respeitar as instituições. Difícil é respeitar o rito do processo legal, e os direitos humanos.
Em debate ruim atrás de debate ruim, a direita brasileira expressa o que tem a oferecer (não que a esquerda faça melhor). É um problema tenebroso, de fato, que nosso presidente seja tão incapaz e tão pouco brilhante, mas o problema da direita não se encerra nele: o principal candidato da direita que tenta disputar a terceira via e rivalizar agora com Bolsonaro para a disputa das eleições presidenciais de 2022, Sérgio Moro, é farinha do mesmo saco.
Ou melhor: do mesmo grão! Possui apenas uma embalagem um pouco mais arrumada. Seu juridiquês de segundo ano de graduação o transforma em Immanuel Kant perto do atual presidente, é verdade. Não abrir a boca para soltar atrocidades que estão fora da soma dos comportamentos aceitáveis em qualquer civilização digna, traz a sensação de distância para com o outro candidato forte da direita. Ele possui um ar mais ponderado, menos radical. Um ar.
Ainda estamos em 2021, é muito cedo e nunca foi a intenção aqui fazer qualquer tipo de previsão como se constasse no almoxarifado uma bola de cristal. Tudo pode acontecer até a eleição, algum candidato pode ser preso sem provas por um juiz declarado suspeito e incompetente; alguém tomar uma facada; ou uma parcela da população entrar num delírio coletivo na onda de quem tem a certeza de que com certo candidato eleito todos os problemas se resolverão e o paraíso se instalará em nosso território.
Deus não faz política. Esta é de nossa responsabilidade enquanto cidadãos. Não existe milagre aqui. Nem messias. Não existe salvador da pátria. Na democracia existem instituições. Quem faz parte do espectro democrático de verdade tem o dever de conservá-las. Quer mantê-las de pé. E compreende qual sua necessidade – embora possam e devem ser sempre aprimoradas.
Que Bolsonaro não faz parte do espectro democrático, e que está do lado da barbárie frente à civilização, não é novidade pra ninguém com o mínimo de bom-senso. Mas quem defende uma medida completamente insana, bárbara, antidemocrática, genocida e fascistóide como o Excludente de Ilicitude, também não faz.
É fácil colocar o nome num projeto de “10 medidas contra a corrupção”, afinal, todo mundo é contra a corrupção. O problema é quando neste pacote se propõe o fim do Habeas Corpus. É doce para qualquer povo desesperado com o problema da segurança pública ouvir que existe um “pacote anticrime”, o problema é quando este desrespeita valores sagrados da democracia como os direitos humanos – e que se diz sagrado também, pelo menos em discurso, para o pensamento liberal.
Aliás, qualquer liberal de verdade jamais poderia ter se vinculado ao governo Bolsonaro. Nenhum juiz de verdade poderia ter combinado com a parte de acusação de que maneira iriam investigar para condenar um réu. Ninguém com o mínimo senso de ética poderia retirar da disputa eleitoral um candidato e seis meses depois assumir um cargo no mandato do concorrente.
O ponto aqui não é criticar o liberalismo nem a direita propriamente dita. Estes itens integram o estofo da democracia. A crítica se dirige ao pavoroso momento do debate público onde alguém de extrema-direita, como o sempre político Sérgio Moro, seja considerado como alguém de centro!
O combate à corrupção é um dever que o Estado brasileiro precisa ser capaz de cumprir, mas através de suas instituições. Acreditar que existe um único candidato capaz de fazê-lo é equivocado por princípio. Acreditar que este problema deva ser prioridade em qualquer governo é desconsiderar o que significa de fato governar o Brasil atualmente. Ainda mais quando este candidato se utiliza de maneiras nada republicanas para se colocar como tal o salvador da pátria. Sim, Moro sempre foi um político. Moro sempre quis poder. Isso está claro desde seus primeiros passos relevantes na magistratura. A Lava Jato se utilizou de uma demanda nobre para criar um projeto de poder.
Se fosse esse o problema apenas, já seria ruim. Porque não estaríamos mais debatendo projeto de país, mas criando um difuso senso de moralidade como único parâmetro necessário para eleger um presidente. Mas não se pode cometer crimes para combater o crime. Passar por cima de instituições para condenar qualquer pessoa não pode fazer parte do jogo democrático – e de fato não faz! E isso ainda será verdade para os julgamentos que Bolsonaro possa enfrentar, ou qualquer outra pessoa, por mais perigosa que seja.
Por fim, se ilude quem acredita que há futuro com democracia de verdade elegendo um fascistóide com roupagem de moderado. O que faz a moderação são suas ideias e atitudes. E as ideias e atitudes de Moro o afastam do centro, da democracia, do republicanismo e até do liberalismo.
Comentários