O Jaraqui Graúdo e a utopia que já começou

“O Jaraqui Graúdo, portanto, é menos um ponto de chegada e mais uma confirmação de rota. Ele nos diz, em voz alta: continuem. Continuem cruzando fronteiras, aproximando academia e empresas, integrando ciência, economia e sustentabilidade. Continuem escutando a floresta, as águas e as pessoas, com a autoridade de quem aqui respira, atua e constrói. Continuem acreditando que a universidade amazônica não é chamada a reproduzir modelos, mas a inventar caminhos.”

Há nomes de prêmios que são, por si só, uma declaração de princípios. Jaraqui Graúdo é um deles. No cotidiano amazônico, o jaraqui é alimento, cultura, metáfora de povo — “quem come jaraqui não sai mais daqui”, repete o ditado. No ecossistema de inovação, o Jaraqui Graúdo é o reconhecimento público àqueles que ousam construir, desde a Amazônia, soluções tecnológicas capazes de dialogar com o mundo. Ver a Universidade do Estado do Amazonas ser distinguida com esse prêmio, ao final do meu último ano à frente da Agência de Inovação, tem para mim o sentido de um canto derradeiro — não de encerramento, mas de síntese.

Este prêmio coroa uma trajetória ,e a liderança inconteste de André Zogahib, nosso reitor, que nunca aceitou os muros da universidade como fronteira definitiva. Desde o início, nossa convicção foi simples e radical: a universidade amazônica não pode ser um castelo de saber acumulado, ela precisa ser uma ponte viva entre conhecimento, economia, tecnologia e sustentabilidade. O Mapa do Caminho da Inovação da UEA, que sistematizamos como registro e projeto, nasceu exatamente dessa inquietação: cartografar as rotas possíveis para que ideias que brotam nas salas de aula, nos laboratórios e nos interiores do Amazonas encontrem empresas, governos, comunidades e o mundo real da produção e das demandas sociais.

Estudo da GHM Solutions e do Instituto de Energia e Ambiente da USP mostra que automação e eficiência em edifícios podem economizar, por ano, o equivalente à produção de Itaipu e milhares de quilômetros de linhas de transmissão. Mas essa revolução começa em casa, com decisões de consumo, automação simples e pressão cidadã por prédios mais inteligentes

Ao longo dessa jornada, buscamos exemplos nos quatro cantos do planeta — universidades empreendedoras, agências de inovação, parques tecnológicos, mecanismos sofisticados de transferência de tecnologia, fundos de investimento, boas práticas de governança e de aproximação com a sociedade. Mas, em todas essas viagens e diálogos, uma certeza se tornava cada vez mais nítida: a nossa maior “tecnologia” continua sendo a Amazônia em si — sua floresta, seus rios, seus povos, sua inteligência milenar.

Por isso, toda a estratégia de inovação que defendemos na UEA esteve ancorada em uma hipótese de trabalho que é também uma profissão de fé: a antecipação da utopia amazônica está mais próxima do que imaginamos. Ela não virá, um dia, como evento súbito; ela já começou a se realizar na medida em que somos capazes de decifrar — com humildade e rigor — o enigma amazônico. Esse enigma não é um código fechado, reservado a iniciados. Ele é um convite permanente a olhar a floresta, os rios, os animais e, sobretudo, as populações da região como partes indissociáveis de um universo integrado e integral.

Na prática, isso significa entender que não há exterioridade quando falamos da Amazônia. Não somos observadores apartados, nem gestores neutros, nem cientistas pairando acima do território. Somos um elemento a mais dessa constelação de vida. A inovação que buscamos não é apenas a dos algoritmos, dos sensores, das patentes; é, antes, a inovação no modo de perceber o mundo. A floresta não é cenário: é sujeito, é sistema inteligente, é laboratório vivo. Os povos originários e as comunidades tradicionais não são “beneficiários” passivos: são coautores de qualquer projeto sério de futuro.

Quando afirmo que não há alteridade nesse contexto, quero dizer que o outro não está fora de nós. A Amazônia nos constitui. Cada protocolo de pesquisa, cada experiência em bioeconomia, cada solução tecnológica para energias limpas, cada startup surgida nos corredores da UEA só fará pleno sentido se souber reconhecer esse pertencimento. Somos parte de um todo em estado constante de integração e de sinapses vitais, um grande cérebro verde-azulado onde água, carbono, saber tradicional, ciência e tecnologia dialogam o tempo inteiro.

É sob essa lente que eu interpreto a distinção do Prêmio Jaraqui Graúdo concedido à UEA. Ele não é apenas um troféu em uma data festiva do ecossistema de startups e inovação de Manaus. Ele é um gesto simbólico poderoso: o ecossistema de tecnologia e empreendedorismo digital da região reconhecendo que a universidade pública amazônica decidiu, de fato, entrar em campo. Decidiu empreender, aproximar-se, aprender com o mercado, propor soluções, apoiar talentos, arriscar-se a errar e recomeçar.

Sim, esse prêmio nos orgulha. Ele nos envaidece, no melhor sentido da palavra, porque sinaliza que a UEA está sendo percebida como instituição inovadora, como parceira real dos agentes que movimentam a nova economia da região. Mas, ao mesmo tempo, ele nos coloca exatamente no mesmo patamar de todos os demais participantes. O Jaraqui Graúdo não celebra hierarquias; celebra um ecossistema em construção. Somos um elo entre muitos. Uma universidade entre startups, coletivos, empresas, hubs, comunidades de desenvolvedores e sonhadores que insistem em provar, todos os dias, que a Amazônia não é periferia de nada — é centro.

Na multiplicidade de intuições e iniciativas que a premiação homenageia, a UEA ocupa um lugar muito específico: o de quem assume a responsabilidade de formar gente, gerar conhecimento, inspirar novos mapas mentais e criar, de dentro da Amazônia, respostas para os desafios da própria Amazônia. Se o Jaraqui Graúdo nos distingue, é porque essa responsabilidade começou a ganhar forma concreta em projetos, parcerias, protótipos, programas de pré-aceleração, redes de colaboração, conexões com universidades e centros de pesquisa de outros países.

Ao receber esse prêmio, minha leitura pessoal e institucional é a de que estamos, sim, antecipando uma utopia que já começou. Não se trata de um “futuro longínquo”, mas de um presente em construção, no qual cada avanço tecnológico que preserva a floresta, cada solução de bioeconomia que gera renda sem devastar, cada plataforma digital que aproxima estudantes de comunidades ribeirinhas, cada aplicação de inteligência artificial voltada ao monitoramento ambiental, tudo isso são pequenos fragmentos dessa utopia em movimento.

O Jaraqui Graúdo, portanto, é menos um ponto de chegada e mais uma confirmação de rota. Ele nos diz, em voz alta: continuem. Continuem cruzando fronteiras, aproximando academia e empresas, integrando ciência, economia e sustentabilidade. Continuem escutando a floresta, as águas e as pessoas, com a autoridade de quem aqui respira, atua e constrói. Continuem acreditando que a universidade amazônica não é chamada a reproduzir modelos, mas a inventar caminhos.

Se este é, para mim, um canto derradeiro de gestão, ele é também uma passagem de bastão. O mapa do caminho da inovação da UEA está longe de estar concluído; ele é, por definição, um mapa em constante atualização. O que o Jaraqui Graúdo confirma é que esse mapa não é imaginário. Ele está sendo traçado com passos concretos, riscos assumidos, parcerias firmadas e, sobretudo, com a consciência de que decifrar o enigma amazônico é uma tarefa coletiva.

Ao agradecer por este prêmio, agradeço em nome de todos os que acreditam que a Amazônia não é apenas um tema: é um método. Um método de ver, pensar, inovar e cuidar. E, se a utopia é, por definição, o lugar que ainda não existe, talvez o nosso maior ato de inovação seja justamente este: perceber que, aqui, entre rios e florestas, entre laboratórios e comunidades, entre códigos e saberes ancestrais, esta utopia já começou a se tornar realidade.

Antônio Mesquita
Antônio Mesquita
Antônio Mesquita é Diretor Executivo da Agência de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual (AGIN) da Universidade do Estado do Amazonas-UEA.

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