“Em tempos de protagonismo do setor privado, as empresas da região, especialmente às que operam sob o guarda-chuva da Zona Franca de Manaus, podem decidir se querem continuar ocupando o papel de caricatura — o tal “ventilador no meio da selva” — ou se estão dispostas a assumir o lugar de atores e promotores de uma economia amazônica que, enfim, decide produzir riqueza a partir da floresta em pé e da inteligência das pessoas que a habitam”
Coluna Follow-Up
Às vésperas de mais um ano, os discursos sobre Amazônia costumam repetir a mesma ladainha: floresta em pé, riqueza da biodiversidade, potencial da bioeconomia. Tudo verdadeiro, mas tudo insuficiente se não responder à pergunta que ecoa nas periferias de Manaus e nas comunidades ribeirinhas: do que vive quem mora aqui?
A Conferência da Amazônia ajudou a recolocar essa pergunta no centro do palco. Ficou claro que o Brasil só terá política climática séria quando sustentar o mapa de uma economia robusta, estável, produtiva e sustentável.
A questão permanece para quem levou o debate a sério: o Brasil só vai enfrentar os desafios da mitigação, adaptação e transição energética quando sustentar o mapa do caminho de uma economia robusta, estável e calcada n a produtividade e sustentabilidade. E isso não é slogan de consultoria, é constatação de quem aqui produz e sabe que floresta não se defende com slide, mas com emprego, renda, folha de pagamento em dia e cadeias produtivas organizadas. Além da circulação transparente dos recursos da contrapartida fiscal amazônica.
Essa tal “economia robusta” – e o papel emergencial do setor privado – é justamente o ponto cego de grande parte do debate climático sobre a Amazônia. O mundo pede floresta em pé mas grande debate celebrado na Amazônia foi o primeiro grande experimento global realizado dentro da própria floresta e, por isso, empurrou essa pergunta – do que vive quem mora aqui? – do rodapé para o centro do palco.
Para as empresas que atuam na região e, em especial, para a economia da Zona Franca de Manaus, a conferência deixou de ser um espetáculo distante e passou a funcionar como espelho. A mensagem é simples e dura. Ou a Amazônia se reinventa como economia da solução climática ou continuará servindo apenas de cenário, enquanto outros decidem o futuro da floresta e da população que vive nela. Daí o desafio de interiorizar a economia.
Regeneração florestal que paga salário
A proposta defendida por Denis Minev em Belém oferece uma pista concreta de saída. Em vez de discutir a floresta apenas como risco, ele insiste em tratá-la como plataforma de regeneração produtiva. A lógica é cristalina. Recuperar áreas degradadas por meio de sistemas agroflorestais, combinar espécies como cacau, açaí, curauá, macaúba e outras tantas da sociobiodiversidade amazônica e transformar esse mosaico em faturamento, empregos qualificados e impostos.
Essa visão desloca a economia regenerativa do estágio de vitrine exótica e projetos piloto eternos e a coloca no patamar de macroeconomia. Agrofloresta deixa de ser “experimento simpático” para virar linha estratégica de negócio, com governança, empresa listada, métricas de carbono, rastreabilidade e interesse de investidores globais. É um salto que abre espaço para que a Amazônia não seja apenas o lugar que presta contas, mas também o lugar que distribui dividendos.
Nesse cenário, a Zona Franca de Manaus não aparece como observadora, e sim como infraestrutura-chave. O polo industrial pode funcionar como plataforma para processamento, beneficiamento e industrialização dessa produção agroflorestal em larga escala. Manaus vira o coração urbano e tecnológico de uma vasta rede de agroflorestas espalhadas pela região, articulando emprego industrial com renda florestal e conectando o interior às cadeias globais de valor. Em vez de ser acusada de “ilha artificial”, a ZFM passa a atuar como porto de saída de uma bioeconomia ancorada em regeneração com credibilidade.
Adaptação climática como mercado, não só como tragédia
Outro ponto enfatizado na leitura pós-COP é o fato de o planeta já ter ultrapassado a marca de 1,5 °C em relação ao parâmetro do Acordo de Paris. A partir daí, a pergunta muda. Deixa de ser “se” teremos de nos adaptar e passa a ser “como” vamos fazer isso e “quem” vai financiar a conta.
A adaptação deixa de ser apenas capítulo triste de relatórios de risco e começa a se revelar como um conjunto de novas economias. A agricultura regenerativa vai precisar de sementes mais resistentes ao estresse hídrico, as cidades exigirão edificações projetadas para eventos climáticos extremos, e a infraestrutura urbana terá de ser redesenhada para conviver com enchentes mais frequentes, ondas de calor mais longas e desequilíbrios que deixarão de ser episódicos para se tornarem rotina.
Ao mesmo tempo, o sistema financeiro terá de lidar com seguros, garantias e avaliações de risco num mundo em que o clima virou variável de negócios, não apenas de pesquisa acadêmica.
Para a Amazônia, isso soa como desafio e oportunidade. Em vez de se posicionar apenas como território vulnerável, a região pode se apresentar como fornecedora de soluções de adaptação tropical. Nesse tabuleiro, a ZFM tem condições de desenvolver e produzir equipamentos, sensores, sistemas digitais de monitoramento, tecnologias urbanas, plataformas de dados e serviços voltados à gestão de risco climático em ambientes florestais e em cidades amazônicas.
Adaptação deixa de ser sinônimo de catástrofe anunciada e passa a ser uma carteira estruturada de produtos, serviços e empregos.
Transição energética na Amazônia — do diesel ao laboratório vivo
Quando se fala em transição energética, muitos ainda imaginam usinas eólicas no semiárido ou grandes complexos solares no Centro-Oeste. Mas poucas regiões estão tão expostas ao custo de não mudar quanto a Amazônia abastecida a diesel. São milhares de comunidades reféns de geradores caros, barulhentos e poluentes, sistemas isolados com tarifas altíssimas, logística precária e um conjunto de empresas que pagam caro por uma energia que, além de suja, é insegura.
O debate energético da Amazônia escancarou esse paradoxo. De um lado, o mundo discute metas de redução de emissões. De outro, a região que simboliza a esperança climática global ainda depende de caminhões e balsas de combustível fóssil. Ao mesmo tempo, surgem sinais claros de que o financiamento internacional está migrando para projetos que combinem transição energética com justiça social, especialmente em territórios considerados estratégicos para o equilíbrio climático do planeta.
Nesse contexto, a região pode se oferecer como laboratório vivo da nova matriz energética. Micro e minirredes solares híbridas, armazenamento inteligente, sistemas de gestão digital de carga, soluções desenhadas para comunidades ribeirinhas e territórios de baixa densidade demográfica deixam de ser ensaios técnicos e passam a ser modelo exportável.
A ZFM, por sua vez, pode se reposicionar como cluster industrial dessas tecnologias, desenvolvendo equipamentos, softwares e serviços que respondam à realidade amazônica e que possam ser replicados em outros biomas tropicais.
Finanças, regulação e o novo idioma da competitividade
Enquanto a política se arrasta, a regulação financeira avança em silêncio. A exigência de relatórios de sustentabilidade alinhados a padrões internacionais e a cobrança por planos de transição concretos empurram as empresas para outro patamar. A partir do momento em que investidores passam a comparar riscos e oportunidades climáticas com a mesma seriedade com que comparam lucro e endividamento, clima e natureza deixam de ser tema lateral e passam a integrar o cálculo da competitividade.
A ZFM precisa ler esse movimento com atenção redobrada. Empresas que continuarem tratando sustentabilidade como departamento periférico tendem a perder espaço nas cadeias globais de valor, nas linhas de crédito e na preferência de consumidores e instituições. Em contrapartida, aquelas que integrarem regeneração, transição energética e adaptação em seu modelo de negócios poderão conversar de igual para igual com fundos de impacto, instrumentos financeiros verdes e mecanismos de financiamento misto, que buscam projetos com lastro real e governança confiável na Amazônia.
Isso abre, ainda, um campo novo de serviços a partir da própria região. Plataformas de mensuração de impacto, consultorias especializadas, certificações adaptadas à realidade amazônica, sistemas de rastreabilidade de cadeias bioeconômicas e produtos de seguros calibrados para risco climático em floresta e em cidades tropicais podem nascer, operar e escalar a partir da Amazônia. Em vez de importar critérios e ferramentas, a região pode oferecer ao mundo modelos testados no ambiente mais crítico de todos.
Produtividade e sustentabilidade caminham juntas ou não caminham
Há uma constatação incômoda por trás de tudo isso. O mundo da produtividade ainda olha com desconfiança para o discurso ambiental, e parte do mundo da sustentabilidade continua vendo produtividade como sinônimo de degradação. Na Amazônia, essa esquizofrenia é insustentável. Se a região permanecer presa entre um ambientalismo sem base produtiva e um produtivismo que ignora limites planetários, o resultado será um fracasso duplo: nem desenvolvimento digno, nem floresta em pé.
A COP da Amazônia sinaliza outra via possível. Quando a regeneração de áreas degradadas se transforma em negócio estruturado, quando a transição energética reduz custo e emissões ao mesmo tempo e quando as cidades são repensadas com infraestrutura verde, arborização massiva, saneamento adequado e mobilidade limpa, produtividade deixa de ser oposta à sustentabilidade e passa a ser instrumento a seu favor.
Nesse cenário, a pergunta central para a ZFM muda de tom. Em vez de “quanto custa manter esse modelo”, a questão passa a ser “quanto o modelo já entrega e pode entregar em soluções concretas para a crise climática e para a desigualdade que castiga a Amazônia”.
O recado que a COP da Amazônia deixa na porta da Zona Franca
A conferência realizada no coração da floresta entregou, mais do que diagnósticos, uma espécie de ultimato educado à economia amazônica. Sem uma base produtiva sólida, não haverá política climática que se sustente. Sem floresta em pé, não haverá economia regional que possa se apresentar ao mundo com alguma dignidade. Sem indústria comprometida com regeneração, transição energética e adaptação, não haverá pacto federativo capaz de conciliar o interesse nacional com o direito de quem vive na Amazônia.
Em tempos de protagonismo do setor privado, as empresas da região, especialmente às que operam sob o guarda-chuva da Zona Franca de Manaus, podem decidir se querem continuar ocupando o papel de caricatura — o tal “ventilador no meio da selva” — ou se estão dispostas a assumir o lugar de atores e promotores de uma economia amazônica que, enfim, decide produzir riqueza a partir da floresta em pé e da inteligência das pessoas que a habitam.
Follow-Up é publicada às quartas, quintas e sextas feiras no Jornal do Comércio do Amazonas sob a responsabilidade do CIEAM e coordenação editorial de Alfredo Lopes