O Brasil quer dinheiro verde com as mãos sujas de petróleo?

“A vitrine climática em que o Brasil quer se colocar exige mais do que palavras. Exige escolhas fundamentais e coragem moral. E exige, sobretudo, que as mãos que pedem dinheiro verde não estejam manchadas de petróleo.”

O embaraço dessa questão nos obriga a mirar diretamente para o centro da contradição brasileira na agenda ambiental global: como esperar credibilidade e financiamento climático se insistimos em expandir a exploração de petróleo na região mais sensível do planeta? A pergunta, incômoda e direta, não pode mais ser adiada.

Na última COP29, realizada em Baku, os países desenvolvidos anunciaram um novo compromisso: US$ 300 bilhões anuais até 2035 para apoiar a transição ecológica nos países em desenvolvimento. O valor, que supera o antigo patamar de US$ 100 bilhões anuais acordado em 2009, parece, à primeira vista, expressivo. Mas está longe de responder à urgência climática.

Grupos como o G77 e a Aliança dos Pequenos Estados Insulares pleitearam um repasse superior a US$ 1,3 trilhão por ano, e instituições como a ONU e a Universidade de Oxford apontam que a necessidade real supera os US$ 6,5 trilhões anuais. A própria declaração final da COP29 reconhece isso, apontando para um “roteiro de Baku a Belém”, transferindo à COP30, no Brasil, a missão de redefinir as metas com mais ambição. Até lá, os fundos são poucos, os compromissos são frouxos, e a floresta continua esperando.

Dinheiro verde para quê, e para quem?

O novo fundo de Baku nasce com uma fragilidade estrutural: não garante que o financiamento virá sem contrapartidas financeiras. Permite repasses por mecanismos de dívida, instrumentos de mercado e recursos privados. Não é, portanto, um gesto de reparação climática — é um negócio financeiro disfarçado de justiça ambiental.

Neste cenário, o Brasil ocupa uma posição paradoxal. Lidera com méritos uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. Sedia, com justiça, a COP30 em Belém, no coração da Amazônia. Defende com eloquência os direitos dos países em desenvolvimento na governança climática. E ao mesmo tempo, insiste em abrir uma nova fronteira petroleira na Foz do Amazonas, no bioma mais emblemático da conservação planetária.

É possível liderar a transição energética com um pé no pré-sal e outro na Margem Equatorial? Quem investirá com confiança na floresta, enquanto se perfura o fundo do mundo?

dinheiro verde

A Zona Franca de Manaus como referencial, não exceção

Como mostramos no ensaio sobre ZFM+ESG, a Zona Franca de Manaus representa um caso real e concreto de equilíbrio entre desenvolvimento e conservação. O modelo ZFM evitou o desmatamento descontrolado ao concentrar atividades produtivas, urbanas e logísticas em uma única capital, mantendo 97% da cobertura vegetal do estado do Amazonas.

É também a única zona industrial no mundo que pode, com legitimidade, reivindicar o selo ESG no coração da floresta tropical. Esse modelo não é o passado. É a linha de base para a nova economia da floresta em pé: bioeconomia, fármacos naturais, inovação tecnológica e produtos com valor agregado vindos da biodiversidade.

Se o Brasil quer justificar os incentivos da ZFM, precisa reconhecê-la como vitrine da industrialização sustentável e protegê-la nas reformas econômicas, inclusive na Reforma Tributária. Caso contrário, perde não só um instrumento econômico, mas um argumento moral.

Entre a foz do petróleo e a foz da história

O ensaio inicial desta trilogia alertava para o ponto de não retorno na exploração da Foz do Amazonas. Não apenas ambiental, mas civilizatório. Continuar apostando em petróleo, em plena era do colapso climático, é como cavar com as próprias mãos a cratera do descrédito.

Agora, diante do novo mapa do financiamento climático traçado em Baku, o Brasil tem uma escolha a fazer: será síntese das contradições globais ou símbolo da reconciliação entre justiça climática e soberania verde?

⸻ A floresta e o futuro entre o caos e a coerência

Esse debate sobre coerência climática e financiamento não é apenas ético — é geopolítico e econômico. O mundo atravessa uma transição turbulenta, marcada por sinais de desorganização sistêmica. A ameaça confirmada no retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, com seu negacionismo climático, prontidão em romper novamente com o Acordo de Paris, tarifaços ambientais unilaterais e retórica de “America First”, já gera pânico nos mercados e previsões sombrias para o comércio global.

Especialistas alertam para o novo protecionismo que veio travestido de política ambiental. Cadeias produtivas poderão ser reconfiguradas por critérios verdes, e países que flertarem com contradições — como defender o clima enquanto expandem petróleo — poderão ser excluídos do jogo.

O Brasil, portanto, precisa mais do que nunca de coesão estratégica e integridade ambiental. A floresta em pé não pode ser moeda de troca na diplomacia climática. Nem o petróleo um fardo escondido por trás do discurso da transição.

A vitrine climática em que o Brasil quer se colocar exige mais do que palavras. Exige escolhas fundamentais e coragem moral. E exige, sobretudo, que as mãos que pedem financiamento verde não estejam manchadas de petróleo.

Regia Moreira Leite 3
Alfredo Lopes
Alfredo Lopes
Alfredo é consultor ambiental, filósofo, escritor e editor-geral do portal BrasilAmazôniaAgora

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