Depois de Belém: por que o Brasil não pode recuar do Mapa do Caminho para o fim dos fósseis

“O Mapa do Caminho que o Brasil prometeu ao mundo em Belém não é mais um documento técnico. É um teste de caráter nacional. Ou ele se torna o eixo de um novo pacto federativo – que concilie desenvolvimento, justiça social e proteção da Amazônia – ou será lembrado como uma boa ideia abandonada na primeira curva.”

Voltei de Belém com duas sensações que convivem em tensão permanente: orgulho e urgência. Orgulho porque, na COP30, o Brasil ousou colocar na mesa o que o mundo vinha adiando – um Mapa do Caminho para superar a dependência de combustíveis fósseis. Urgência porque sei, como engenheiro e como empresário, que cada ano de indecisão tem custo alto em vidas, empregos e oportunidades desperdiçadas.

O fato de o “Mapa do Caminho” não ter entrado no texto final da COP não invalida a sua força. Ao contrário: quando o presidente Lula assina o despacho que cria um grupo de trabalho interministerial e dá 60 dias para que se apresentem diretrizes concretas para esse Mapa e para um Fundo de Transição Energética, o Brasil assume que a responsabilidade agora é nossa.

Ou transformamos a ideia em política de Estado ou veremos outros países ocuparem o espaço que abrimos e não soubemos sustentar.

O Brasil entre a liderança climática e o atraso fóssil

Na diplomacia, o Brasil saiu de Belém como articulador de um bloco de cerca de 80 países que defendem uma trajetória organizada para encerrar gradualmente o uso dos fósseis. Na prática, porém, seguimos discutindo novas fronteiras exploratórias, inclusive na Amazônia, enquanto comunidades inteiras continuam dependendo de geradores a diesel para ter algumas horas de luz por dia.

Essa contradição cobra um preço. Não há liderança climática sólida convivendo por muito tempo com uma agenda doméstica que, na prática, aposta na longevidade do petróleo. A criação do grupo de trabalho do “Mapa do Caminho” é um passo na direção certa, mas só terá sentido se vier acompanhada de escolhas difíceis: rever subsídios, redesenhar a matriz e colocar a transição justa no centro do planejamento econômico.

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Imagem gerada por IA

O sinal positivo das baterias

É nesse contexto que eu saúdo, com entusiasmo, o primeiro leilão de sistemas de armazenamento em baterias programado pelo Ministério de Minas e Energia. Pela primeira vez, o Estado brasileiro admite que armazenamento é peça estrutural do sistema elétrico e cria um mecanismo específico para contratar essa tecnologia.

Como especialista em transição energética, vejo no chamado “leilão das baterias” uma prova inequívoca de que a mudança deixou de ser apenas discurso. Sem armazenamento, a combinação de solar, eólica e hidrelétricas encontra rapidamente seus limites físicos. Com baterias, ganhamos flexibilidade, segurança e capacidade de integrar mais renováveis à rede, com menor risco de apagões e menor dependência de térmicas fósseis.

O leilão não resolve tudo, mas muda o patamar do debate. Ele mostra que o Brasil pode usar sua inteligência regulatória para puxar a fronteira tecnológica, em vez de esperar que a inovação venha de fora empurrada pelo mercado.

Princípios para um verdadeiro Mapa do Caminho

Se o grupo de trabalho criado após a COP quiser honrar o protagonismo assumido em Belém, precisará, a meu ver, partir de três princípios simples:

1. Coerência climática

O Mapa do Caminho precisa ser compatível com a trajetória de 1,5°C. Isso significa metas para eliminar, e não apenas “reduzir”, o uso de combustíveis fósseis em prazos definidos. Não dá para falar em fim dos fósseis e, ao mesmo tempo, planejar a abertura de novas fronteiras de produção por décadas sem contrapartidas claras.

2. Transição justa e territorializada

A transição não pode ser um projeto de planilha. Precisa considerar trabalhadores da cadeia fóssil, municípios dependentes de royalties, periferias urbanas e a Amazônia profunda, onde o diesel ainda é sinônimo de luz, água bombeada e geladeira funcionando. Se essas regiões não forem as primeiras beneficiadas pela energia limpa, o discurso perderá legitimidade.

3. Governo aberto e sociedade dentro da sala

Não basta juntar ministérios. É necessário abrir espaço institucional para ciência, povos indígenas, comunidades tradicionais, setor empresarial e juventudes. A governança do Mapa do Caminho deve ser transparente, com calendário, atas e documentos públicos, além de consulta aberta à sociedade antes da versão final.

O que deve estar escrito nesse mapa

Um mapa sério não é uma carta de intenções; é roteiro. Ele precisa dizer:
• quando o Brasil pretende aposentar definitivamente o carvão e o óleo combustível na geração elétrica;
• qual será o cronograma de substituição do diesel nos sistemas isolados, começando pela Amazônia;
• que metas teremos para a eletrificação da mobilidade urbana, combinando ônibus elétricos, biocombustíveis avançados e logística de baixa emissão;
• como vamos reduzir, ano a ano, os subsídios aos fósseis e redirecionar esses recursos para transporte público, renováveis e inovação.

O “leilão das baterias”, mais uma vez, é um excelente exemplo de como transformar ambição em instrumento concreto. Ele mostra que é possível ajustar regras, precificar serviço de capacidade, atrair investimento privado e, ao mesmo tempo, construir um setor elétrico mais resiliente e limpo.

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Painéis solares gerando e armazenando energia em baterias de lítio de UCB Power – foto: Divulgação

Responsabilidade compartilhada

Como CEO da UCBPower, eu não falo de fora da arena. Minha empresa vive dos desafios reais da transição: integrar baterias a redes frágeis, levar soluções híbridas para regiões remotas, reduzir o custo da energia para quem sempre pagou mais caro por um serviço pior. Sei o tamanho dos obstáculos, mas também enxergo o potencial gigantesco de um país que é potência hídrica, solar, eólica e de biomassa ao mesmo tempo.

O Mapa do Caminho que o Brasil prometeu ao mundo em Belém não é mais um documento técnico. É um teste de caráter nacional. Ou ele se torna o eixo de um novo pacto federativo – que concilie desenvolvimento, justiça social e proteção da Amazônia – ou será lembrado como uma boa ideia abandonada na primeira curva.

Eu prefiro acreditar que estamos prontos para a primeira opção. E, quando vejo o anúncio do leilão de baterias, vejo também um recado silencioso, mas importante: a transição começou. Cabe a nós acelerá-la, com rigor, transparência e compromisso com as próximas gerações.

Ronaldo Gerdes
Ronaldo Gerdes
Ronaldo Gerdes é CEO da UCB Power e Conselheiro do Centro da Indústria do Estado do Amazonas

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