Luz que liberta: a transição energética como ato de justiça na Amazônia

Na vastidão verde que é a Amazônia, há trechos onde a noite não termina. A escuridão não é apenas ausência de luz, mas presença brutal de abandono. No estado do Amazonas, a promessa da energia elétrica universal — consagrada como um direito básico — permanece incompleta: cerca de 30% das comunidades vivem sob o que se poderia chamar de “pobreza energética”, onde a luz chega para quase todos, mas não por inteiro, e não de forma confiável. O que se ilumina aqui é o contraste entre o discurso desenvolvimentista e a realidade do esquecimento.

Pobreza energética não significa apenas viver sem eletricidade. Significa viver à margem da cidadania. Significa não ter um refrigerador para conservar alimentos, não poder estudar à noite, não usar um ventilador em dias de calor extremo. Significa depender de um gerador a diesel — caro, poluente, barulhento e instável — que, ao enguiçar, desliga não apenas os aparelhos, mas o direito à saúde, à educação e ao sono tranquilo. É tão vital a segurança energética que até um aparelho de apneia pode se tornar símbolo de uma batalha civilizatória.

transição energética
O que significa a pobreza energética?

A energia, neste contexto, é mais do que infraestrutura: é condição de vida. É soberania individual e coletiva. Sua ausência não só acentua desigualdades, como perpetua o ciclo da dependência de combustíveis fósseis — cuja presença na Amazônia é ainda mais contraditória, dado o protagonismo ambiental que a região deveria ocupar. A permanência de contratos de fornecimento fóssil, que parecem eternos, é a expressão burocrática de uma violência estrutural.

Falar em transição energética na Amazônia não é mais apenas uma questão climática. É questão de vida ou morte, literalmente. Quando comunidades inteiras ficam reféns da falência de um gerador, ou da falta de combustível, ou da presença de facções ligadas ao garimpo, à grilagem e ao narcotráfico — todos movidos por energia suja —, estamos diante de uma urgência humanitária.

Programa Energias da Amazonia promove transicao energetica e descarbonizacao em Sistemas Isolados.jpg

A transição energética precisa ser pensada como um projeto de reconstrução do país desde suas bordas, onde mora a floresta e onde vive um povo esquecido. Trata-se de substituir geradores a diesel por sistemas solares híbridos, de conectar a energia limpa com políticas públicas de saúde, educação, produção local e conectividade. Não é só sobre trocar uma fonte por outra, mas sobre mudar o próprio modelo de desenvolvimento.

Há tecnologia suficiente para realizar essa virada. Há soluções inovadoras em curso — sistemas solares off-grid, baterias de longa duração, redes inteligentes adaptadas à realidade amazônica. Falta, no entanto, decisão política, prioridade orçamentária e compromisso social. Inovação, neste cenário, é mais do que técnica: é um ato de justiça. É dar voz às comunidades, incluí-las na cadeia produtiva da energia, fortalecer suas formas autônomas de organização e sua relação ancestral com o território.

A Amazônia é hoje o ponto crítico de um dilema global: ou iluminamos suas comunidades com justiça energética e dignidade, ou apagamos, com nossa negligência, qualquer pretensão de sermos uma nação sustentável. A transição energética, por aqui, precisa ser feita com pressa e com propósito — não por capricho tecnológico, mas por compromisso com a vida.

Se queremos que a floresta fique em pé, é preciso que os povos que nela vivem possam dormir com dignidade, sonhar com autonomia e acordar com esperança. Isso começa com um gesto simples e poderoso: acender a luz

Alfredo Lopes
Alfredo Lopes
Alfredo é consultor ambiental, filósofo, escritor e editor-geral do portal BrasilAmazôniaAgora

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