Selo concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Regional gera questionamentos sobre falhas de gestão socioambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte
Em que medida, prêmios e reconhecimentos conseguem, de fato, mensurar a sustentabilidade empresarial? Como separar comprometimento real de greenwashing, terminologia crítica que se refere à chamada “maquiagem verde”? Esses têm sido questionamentos levantados por lideranças atuantes na região cortada pelo Rio Xingu, no Pará, ao tomarem conhecimento de que a empresa Norte Energia foi contemplada, há um mês, com o Selo Aliança pelas Águas Brasileiras, concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). Para fontes consultadas pela reportagem, há um distanciamento entre discurso e prática corporativa em torno da controversa Usina Hidrelétrica de Belo Monte, empreendimento gerido pela concessionária, cujos altos impactos socioambientais são alvos de 25 Ações Civis Públicas pelo Ministério Público Federal (MPF) do Pará e ganharam repercussão nacional e internacional.
A concessionária não respondeu às três solicitações de informações enviadas pela reportagem de ((o))eco, por intermédio de sua assessoria de imprensa, mas divulgou no seu website a notícia de recebimento da premiação no dia 7 de março. Na cerimônia de reconhecimento, segundo consta nesse canal de comunicação corporativa, a secretária de Fomento e Parceria com o Setor Privado do MDR, Veronica Sánchez da Cruz Rios afirmou: “O projeto da Norte Energia foi um dos que nos inspirou a criar o selo, em reconhecimento a projetos já existentes e executados por empresas, companhias, entidades e organizações brasileiras”.
Ainda segundo o website, “a empresa foi contemplada por conta das ações de reflorestamento que desenvolve na Amazônia, alinhadas ao compromisso da geradora de energia renovável de proteção da bacia hidrográfica do Rio Xingu, no Pará”. De acordo com a divulgação, dentre os 12 projetos selecionados pelo MDR, o da concessionária de Belo Monte foi o de valor mais alto, com investimentos de R$ 250 milhões. As iniciativas contempladas foram selecionadas por um Comitê Gestor, formado por representantes do próprio MDR e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
Em resposta ao pedido de um posicionamento do MDR sobre os questionamentos de lideranças e ativistas atuantes na região do Rio Xingu, envolvendo os problemas socioambientais relacionados à Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a assessoria de imprensa informou que “quaisquer dúvidas sobre licenciamento ambiental ou possíveis ações judiciais que as empresas agraciadas com o Selo estejam respondendo devem ser diretamente direcionadas às entidades”. Foi destacado ainda que “a pasta reconhece e valida projetos de revitalização de bacias que estejam dentro dos termos do edital proposto”. A solicitação de informação sobre quais são os componentes da comissão de avaliação não foi respondida.
Cacique destaca a falta de apoio em Terra Indígena impactada pela usina
“Esse empreendimento chegou na região impactando o rio e a terra onde nós vivemos. Enquanto eles ganham prêmios aí fora, sendo elogiados, nós não temos nada de atividade produtiva e de geração de renda, dentro da aldeia, desde que começou Belo Monte”, afirma o Cacique Mobu Odo Arara, da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, localizada entre os Rios Xingu e Iriri, em partes dos municípios de Altamira, Placas e Uruará, no oeste do Pará. Além de ser um dos territórios impactados pela usina hidrelétrica, essa é uma das TIs mais desmatadas do Brasil, nos últimos anos.
Mobu Odo Arara afirma que a Norte Energia precisa ouvir a opinião do povo indígena sobre os problemas e possíveis soluções para o andamento do Plano Básico Ambiental (PBA), componente indígena atrelado ao processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica. Ele destaca que essa iniciativa é conduzida por empresas contratadas que são trocadas a cada dois anos, período que avalia como insuficiente para promover qualquer avanço socioeconômico na Terra Indígena Cachoeira Seca.
Para amenizar os impactos socioambientais causados pelo empreendimento, o cacique considera que os próprios indígenas devem assumir a gestão das ações a serem custeadas pela empresa concessionária. Para isso, relata que foi desenvolvido um planejamento próprio, a partir dos valores e demandas do seu povo. “Escrevemos um plano do jeito que nós queremos. A Norte Energia não está atendendo a gente. Eles fazem do jeito deles. Não do jeito do índio”, observa.
Segundo o cacique, nesse processo, o desejo do povo Arara da TI Cachoeira Seca é de trabalhar com a sua própria associação. “A gente tem técnico, indigenista e equipe da Associação Kowit para apoiar o povo Arara em toda burocracia do branco. Nós estamos preparados para fazer o PBA. Nós não precisamos de opinião da Norte Energia. Ela é empreendedora e não deve ter autonomia para gerenciar os recursos. Nós podemos gerenciar os recursos pelo menos para amenizar os impactos causados. Esse impacto não tem pagamento”, reitera.
Antropólogo cobra resultados mensuráveis
“A gente entende que a instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte jamais vai atrapalhar um ou outro ponto. É uma consequência generalizada que se desenvolve em cascata, rebaixando a qualidade de vida de todos da região”, analisa o antropólogo Daniel Faggiano, diretor do Instituto Maíra e indigenista da Associação Kowit. “Os caçadores têm mais dificuldade para ter caça, os peixes já não estão com a mesma abundância nos rios e isso é imediatamente visível”, acrescenta.
Segundo o antropólogo, a concessionária não está respeitando as condicionantes firmadas para a construção e instalação de Belo Monte. “Uma dessas condicionantes era a construção de bases de vigilância e a retirada de mais de 1.200 famílias da Terra Indígena Cachoeira Seca. Isso nunca foi feito. Cada dia que passa aumenta a pressão”, afirma.
Surpreso ao tomar conhecimento da premiação conquistada pela Norte Energia por ações de sustentabilidade na bacia hidrográfica do Xingu, Faggiano enfatizou a necessidade de transparência na divulgação de ações com esse viés na região pela empresa. “Onde estão as métricas, atingidas ou não? Cadê a avaliação de execução de PBAs dos últimos anos? questiona . Em seguida acrescenta: “Eu nunca vi. Eu sei que se gastou milhões, mas eu não vejo nenhum resultado.”
Sobre o uso banalizado da terminologia sustentabilidade como bandeira pelo mundo corporativo, o antropólogo apresenta outras análises críticas: “Enquanto os resultados não forem apresentados, que ela [empresa Norte Energia] tenha vergonha de sair falando que é sustentável. É um absurdo que a palavra sustentabilidade tenha virado uma folha seca no ar. Uma palavra sem ação é como uma flor sem perfume. Isso é Belo Monte. Ela não tem ação, não tem métrica, não tem resultado”.
Diante das inúmeras pressões enfrentadas na TI Cachoeira Seca, Faggiano conta que a Associação Kowit e o Instituto Maíra lançaram, em 2021, a campanha “Povo Arara: Guardiões do Iriri”, como forma de denunciar violações de direitos e riscos socioambientais em curso, além de suas graves consequências, sobretudo, para o equilíbrio climático. Um vídeo oficial no YouTube apresenta um histórico dos problemas existentes nesse território indígena.
“Belo Monte é um crime contra a humanidade”, afirma ambientalista
Atenta observadora das transformações socioambientais ocorridas na região afetada pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a ativista Antônia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, reafirma o posicionamento crítico sobre o empreendimento que considera responsável pelo cenário de insegurança hídrica e alimentar no seu entorno. Nesta entrevista a ((o))eco, ela relata como o represamento do Rio Xingu para a geração energética alterou profundamente os modos de vida de povos ribeirinhos, indígenas, pescadores e outras comunidades tradicionais. Além de afirmar desconhecer ações de sustentabilidade da Norte Energia que justificassem uma premiação, a ambientalista aponta, ainda, inúmeros problemas enfrentados tanto por famílias que já foram reassentadas e pagam o preço de viver em uma cidade inflacionada e marcada por altos índices de violência como Altamira – município polo da região onde a usina foi instalada – como pelas que ainda aguardam a conclusão desse processo conturbado. “Belo Monte é um crime contra a humanidade”, sentencia, ao analisar alguns dos principais impactos causados e condicionantes socioambientais não cumpridas pela empresa. Em 2011, quando houve o leilão do empreendimento, um vídeo do Movimento, em parceria com organizações internacionais, antecipava prováveis impactos que se concretizaram uma década depois, dentre os quais, alguns são destacados pela entrevistada.
((o))eco – Como você avalia o recebimento do Selo Aliança pelas Águas pela Norte Energia?
Antônia Melo – Nós não conhecemos nenhum projeto de recursos hídricos que essa empresa esteja desenvolvendo aqui na região da Volta Grande do Xingu ou em toda a área desse empreendimento. O projeto que tem é chamado Hidrograma de Consenso [foi alvo de ação judicial] para que a empresa garantisse água em 130 quilômetros da Volta Grande do Xingu, onde, no verão, as comunidades de pescadores, ribeirinhos e indígenas já não estão dando conta de navegar no rio porque não tem água.
Quais têm sido as consequências da falta d´água nessa região?
Os peixes desapareceram e não existe mais segurança alimentar para essas comunidades. Praticamente no verão o [volume do] rio baixa bastante e os peixes não têm o que comer, porque as frutas que caem das árvores na beira do rio ficam longe, ficam no seco. Então os poucos peixes que têm são magros e doentes. É uma tragédia. É uma desgraça o que está acontecendo. Há seis anos na Volta Grande do Xingu não tem mais piracema. Os peixes não se reproduzem mais. Assim, além da insegurança alimentar ser muito grande para centenas de famílias nesses 130 quilômetros, há também a insegurança hídrica. A água é suja e dá doença na pele das pessoas. Que prêmio é esse? É um prêmio de engodo, de mentira? Não adianta. Quem vem aqui vê a verdade e a realidade.
Quais são os principais problemas enfrentados pelas comunidades locais?
Os problemas que esse empreendimento deixou são inúmeros. A gente nem tem como contar os principais. São impactos devoradores da vida aquática, humana e ambiental. Temos enchentes acima do lago e, por três anos consecutivos, mais de 200 famílias têm as suas terras, as suas ilhas, as suas rocinhas e seus barracos alagados. Elas perdem tudo. A Norte Energia diz que essas famílias não estão em área impactada. Mas isso é um impacto que não tinha antes de Belo Monte. E com Belo Monte essas famílias não podem mais viver em paz.
Há outros problemas que não existiam antes?
Antes não se tinha banzeiro [movimento de ondas nas águas represadas do Rio Xingu]. Agora tem muito banzeiro nessa área do lago. Barquinhos de madeira não servem mais. Têm que ser voadeiras com motores possantes. Grande parte das famílias não consegue ter esses equipamentos que eram uma obrigação emergencial que a Norte Energia deveria passar para essas famílias que estão em um pedaço de terra próximo do rio, onde a água sobe e desce. É um sofrimento para essas famílias que estão perto do lado de Belo Monte.
E como estão vivendo as famílias ribeirinhas reassentadas?
Centenas de famílias ribeirinhas foram tiradas de suas culturas e seus modos de vida e jogadas na cidade de qualquer jeito. Estão aqui pela cidade passando fome, pagando energia cara, umas pagando aluguel, outras doentes. São impactos terríveis na vida dessas famílias que têm que ser reassentadas pela Norte Energia em território próximo do rio. Há mais de três anos que ela vem empurrando e ainda não conseguiu reassentar praticamente nem a metade das 300 famílias. Alguns mais idosos já morreram. Podemos imaginar o tamanho do impacto na vida das pessoas que antes tinham um rio farto de peixe, não viviam pedindo nada para ninguém e hoje a maioria praticamente tem que sobreviver de cesta básica?
Quais são os outros dilemas enfrentados por essas famílias?
Não há trabalho e o empobrecimento é total. Esses são os impactos mais terríveis que os ribeirinhos, os indígenas e outras comunidades tradicionais estão enfrentando. Cultura e modos de vida foram dilacerados. Não é à toa que uma das ações do MPF contra a empresa e o governo é uma ação de etnocídio. [Em 2020, a Justiça Federal de Altamira reconheceu a interferência do projeto nos modos de vida da população impactada pela usina e pediu inúmeras providências].
Quais são as principais repercussões sociais dessa problemática?
Se não tem trabalho e o rio não tem mais peixe, pode-se imaginar o que foi na pandemia e ainda está sendo. Há muita violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes. Houve um aumento da criminalidade e do uso de drogas. O lazer, no rio bom de tomar banho e sadio foi tirado. Além do lazer foi tirada também a esperança, principalmente, para a juventude. A situação muito grave que se teve durante as obras continua e esses impactos terríveis afetam tanto a vida da população da cidade como da zona rural. Outros impactos da grilagem e da invasão de terras indígenas também continuam.
Quais são as principais condicionantes socioambientais não cumpridas?
Isso é uma grande confusão. São muitas condicionantes não cumpridas. A condicionante da pesca até hoje não foi resolvida. Os pescadores sofrem muito e nada foi feito para minimizar o sofrimento. O saneamento foi prometido para 100% da cidade e dos ribeirinhos que foram arrancados de seus territórios. E ainda somos condenados, no Estado do Pará, a pagar a energia mais cara do país. Tudo isso é um transtorno. Belo Monte é um crime contra a humanidade.
Diante desse panorama, quais são as maiores preocupações?
Além da questão da insegurança alimentar que afeta mais as mulheres e crianças, há a insegurança hídrica. Nos reassentamentos coletivos, nos vários bairros que foram criados [em Altamira], não há água de boa qualidade e saneamento. O aumento populacional também é um grande impacto. Essa energia não tem nada de limpa e nem tampouco de renovável porque o rio está quase morrendo. Qual é a sustentabilidade desse projeto? Essa é uma grande mentira. Há insegurança de vida. Não se sabe o que vai acontecer dia após dia.
Fonte: O Eco
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