“Não há futuro para Manaus sem um reencontro com suas origens mais profundas. E esse reencontro não virá por decreto nem por obras faraônicas. Virá pelo gesto decidido de priorizar a vida, a memória e a dignidade — onde tudo começou. A cidade do futuro só se erguerá sobre os escombros do presente se soubermos ouvir o que ainda resiste: o clamor do povo e o chamado da nossa história”
No coração da antiga civilização tropical que se erguia em Manaus, o que resta hoje na Praça dos Remédios é o retrato da indiferença. A cidade que já foi vanguarda do Brasil moderno convive agora com o silêncio omisso dos poderes públicos diante de uma tragédia anunciada. Mas onde falta governo, brota humanidade: é a Arquidiocese de Manaus quem tem feito, com escassos recursos e muita fé, aquilo que seria obrigação do Estado — acolher, cuidar, dar dignidade aos que perderam tudo, menos a esperança.
Compaixão cristã em ação
Com o trabalho corajoso e silencioso de padres, freiras, agentes pastorais e voluntários, a Igreja Católica, tem estendido a mão aos moradores de rua e dependentes químicos que ocupam a região central da cidade. São gestos simples e revolucionários: um prato de comida, uma escuta atenta, um cobertor, um olhar. Em meio aos escombros do que já foi símbolo de fartura, resiste a compaixão cristã.
Omissão e cumplicidade
Mas até quando essa rede solidária sustentará sozinha a dignidade de tantos? Enquanto isso, Estado, Município e União permanecem ausentes, sem um plano coordenado de recuperação social, urbana e histórica. A omissão se converte em cumplicidade. O orçamento público ignora as emergências humanas em pleno centro da capital. E a ausência de uma articulação integrada entre as esferas de governo condena Manaus à repetição do fracasso de outras metrópoles.
Perder a Praça dos Remédios é perder a bússola da nossa própria humanidade
Essa desintegração institucional é ainda mais chocante quando confrontada com a memória daquele território. Foi ali, na sombra da jaqueira da antiga Faculdade de Direito — hoje em ruínas — que Samuel Benchimol nos ensinava que identidade é destino. Se não soubermos quem somos, para onde iremos? Sem raiz, não há rumo. Sem memória, não há utopia possível. Perder a Praça dos Remédios é perder a bússola da nossa própria humanidade. Ali também era a igreja matriz, sustentada por famílias portuguesas que habitavam seu entorno.
A nova Cracolândia manauara não pode ser normalizada
Ela é uma violação à nossa história e um ultraje à nossa responsabilidade coletiva. Não se trata de interditar a região como se fosse uma ferida a esconder, mas de encará-la com coragem e compromisso. O combate à miséria e à dependência química precisa ser feito com inteligência, compaixão e estratégia, unindo esforços da sociedade civil, dos governos e das instituições religiosas e acadêmicas.

Avançar com coragem: o que precisa ser feito agora
Além das recomendações já apresentadas no primeiro artigo, é hora de avançar com uma estratégia mais ambiciosa:
• Reconhecimento oficial da crise como emergência urbana e humanitária, com decreto municipal e adesão a programas federais de enfrentamento ao uso abusivo de drogas e vulnerabilidade social;
• Criação de um “Território de Cuidado e Reconciliação” na região central, articulando cultura, memória, saúde mental, economia solidária e ocupação produtiva;
• Institucionalização da parceria com a Arquidiocese, reconhecendo e fortalecendo sua atuação com recursos e políticas públicas de apoio direto;
• Mobilização das universidades, especialmente a UEA e o UFAM, para contribuírem com pesquisas, estágios, projetos de extensão e inovação social;
• Consolidação de um Fórum Permanente pela Dignidade no Centro Histórico, unindo empresários, urbanistas, juristas, educadores, artistas e líderes comunitários.
Manaus precisa se reencontrar
E esse reencontro não virá por decreto nem por obras faraônicas. Virá pelo gesto decidido de priorizar a vida, a memória e a dignidade — onde tudo começou. A cidade do futuro só se erguerá sobre os escombros do presente se soubermos ouvir o que ainda resiste: o clamor do povo e o chamado da nossa história.


