Não se trata apenas de preservar um modelo econômico, mas de garantir a soberania nacional e o equilíbrio ambiental em um momento crítico para o planeta. A pergunta, portanto, não é apenas “que portaria é essa ?”, mas “que país queremos construir?”. A resposta a essa pergunta definirá o destino não apenas da ZFM, mas de toda a Amazônia e de seu papel no Brasil e no mundo.
Por Alfredo Lopes e André Costa
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Coluna Follow-Up
A história da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) carrega as marcas de uma interlocução fragmentada, frequentemente prejudicada por decisões centralizadoras e desconectadas das realidades locais. O episódio recente envolvendo a Portaria nº 395/2024 do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, reacende antigas preocupações sobre o futuro da SUFRAMA e, consequentemente, do maior programa brasileiro de redução das desigualdades regionais. Afinal, o que se esconde por trás dessa medida aparentemente técnica? E por que, repetidas vezes, assistimos ao esvaziamento silencioso das conquistas de um modelo econômico que é constitucionalmente protegido?
Historicamente, a comunicação entre a SUFRAMA e Brasília sempre foi marcada por desencontros. Era comum que, após exaustivas negociações, as decisões tomadas fossem desmentidas no Diário Oficial no dia seguinte. Essa dinâmica não é casual: reflete pressões, muitas vezes vindas da Receita Federal, para minar o programa de maior êxito na integração da Amazônia ao restante do Brasil. O DGT (Demonstrativo de Gastos Tributários), divulgado anualmente, reforça essa narrativa, apresentando os incentivos da ZFM como uma das maiores “renúncias fiscais” do país. Contudo, essa visão estritamente fiscalista ignora as dificuldades estruturais e geográficas que isolam o Amazonas do restante do Brasil.
A Constituição Federal, no artigo 3º, atribui ao Estado brasileiro o dever de promover o desenvolvimento equilibrado entre as regiões. Contudo, esse compromisso tem sido sistematicamente contrariada por interesses que, desde os tempos coloniais, priorizam o Brasil latifúndio e o extrativismo predatório. A economia da ZFM – que gera 500 mil empregos e ajuda a proteger a floresta – é uma resposta à perspectiva de um Brasil que reduz a Amazônia a um almoxarifado de mão única e adota a abordagem destrutiva.
No caso do Amazonas, a ausência de infraestrutura básica é um problema crônico. Nos dois últimos anos, a vazante extrema de nossos rios deixou boa parte da região isolada.
E a BR-319, rodovia que deveria conectar a região ao restante do Brasil, que seria a alternativa parcial dos transportes, permanece intransitável na maior parte do ano devido à falta de manutenção. Essa situação não apenas limita o escoamento da produção industrial de Manaus, mas também restringe o acesso da população a bens e serviços básicos. Trata-se de uma contradição: enquanto a Receita Federal aumenta sua pressão sobre as empresas da ZFM com obrigações como a Dirbi (Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades), ignora-se a ausência de investimentos que tornem viável uma integração econômica e social efetiva.
O viés fiscalista da Receita Federal
A pressão exercida pela Receita Federal sobre a ZFM tem raízes em um raciocínio exclusivamente fiscalista. O DGT estima “gastos tributários” sem considerar os efeitos econômicos positivos dos incentivos fiscais. Segundo essa lógica, os R$ 32 bilhões estimados como renúncia fiscal para 2024 representam um custo, não um investimento. No entanto, os dados regionais mostram o contrário. O Amazonas, apesar de sua infraestrutura precária, é a maior arrecadadora de tributos federais na região Norte Nordeste, com uma carga tributária sobre o PIB (18%) superior à média nacional (15%). Além disso, a arrecadação per capita do estado é a maior do Norte-Nordeste.
Ignorar essas contribuições equivale a desconsiderar o papel estratégico da SUFRAMA na integração da Amazônia ao restante do Brasil. Esse modelo não apenas gera empregos e riqueza nos estados da Amazônia, mas também movimenta cadeias produtivas em outras regiões, promovendo um desenvolvimento mais equilibrado. Em vez de reconhecer esses méritos, a Receita insiste em abordar a questão com um viés de maximização da arrecadação de curto prazo, desconsiderando os impactos de longo prazo na economia e na preservação ambiental.
Infraestrutura e soberania nacional
A exclusão da SUFRAMA do núcleo central de assessoramento do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) é mais um exemplo de como o governo federal negligencia a região. Ao invés de investir na infraestrutura de transportes e na diversificação econômica, perpetuam-se instrumentos burocráticos como os Processos Produtivos Básicos (PPBs). Esses mecanismos, controlados por técnicos do Sudeste, limitam a autonomia econômica do Polo Industrial de Manaus e reforçam um modelo centralizador que ignora as urgências regionais.
O superintendente da SUFRAMA, Bosco Saraiva, buscou atenuar os impactos da portaria, alegando tratar-se de uma resposta às avaliações de rotina do Tribunal de Contas da União (TCU). No entanto, é importante lembrar que o próprio TCU, em 2016, reconheceu a necessidade de fortalecer a autonomia da SUFRAMA. A recomendação de coordenar de forma integrada a presença federal no Amazonas nunca saiu do papel.
A efetividade ignorada
Enquanto a Receita Federal insiste em apontar a SUFRAMA como fonte de gastos fiscais, é essencial lembrar que a redução de alíquotas e os incentivos tributários não são privilégios, mas políticas públicas que promovem crescimento sustentável. Arthur Laffer, economista renomado, já demonstrou que a redução de tributos pode levar a aumentos de arrecadação no longo prazo. No caso da ZFM, o modelo atrai investimentos e fortalece a base tributária da região, beneficiando diretamente os cofres públicos. O Amazonas é o maior contribuinte da Receita no Norte-Nordeste do país.
A pergunta que ecoa é: por que, mais de meio século após sua criação, a Zona Franca de Manaus ainda enfrenta tantas resistências? Por que insistimos em abordar a Amazônia com o imediatismo bandeirante, ignorando sua complexidade e potencial estratégico? A portaria de Geraldo Alckmin camufla um estigma secular em relação ao Norte e não pode ser vista isoladamente; ela se soma a uma longa trajetória de negligência e hostilidade velada. Seu caráter tecnocrático mascara intenções que remetem a um Brasil que insiste em desconhecer as regiões que não se enquadram em sua lógica centralizadora.
O futuro da SUFRAMA e da própria Amazônia, depende de uma interlocução mais qualificada e de um compromisso real com o desenvolvimento sustentável. Não se trata apenas de preservar um modelo econômico, mas de garantir a soberania nacional e o equilíbrio ambiental em um momento crítico para o planeta. A pergunta, portanto, não é apenas “que portaria é essa?”, mas “que país queremos construir?”. A resposta a essa pergunta definirá o destino não apenas da SUFRAMA, mas de toda a Amazônia e de seu papel no Brasil e no mundo.
Alfredo é filósofo, foi professor na Pontifícia Universidade Católica em São Paulo 1979 – 1996, é consultor do Centro da Indústria do Estado do Amazonas, ensaísta e co-fundador do portal Brasil Amazônia Agora
André Ricardo Costa é Doutor em Administração pela FEA/USP e professor da Ufam