Pescada Amazônica também já foi encontrada em diferentes pontos do estado. Extensão de possíveis impactos ambientais ainda não está clara. Mas estudiosos defendem que aquicultores se limitem a trabalhar com espécies nativas da região.
Marcos do Amaral Jorge – Jornal Unesp
Natural da Amazônia, o pirarucu é um dos maiores peixes de água doce do planeta, podendo ultrapassar os três metros de comprimento e pesar em torno de 200 quilos. Nos últimos anos, pescadores têm registrado a presença desse “gigante” com cada vez mais frequência no rio Grande, corpo d’água pertencente à bacia do alto rio Paraná que banha os estados de São Paulo e Minas Gerais.
A introdução de uma espécie não nativa e que se alimenta principalmente de outros animais aquáticos despertou preocupação de pesquisadores da Unesp sobre os impactos nas relações ecológicas e na população local de peixes, estimulando a criação de projetos de pesquisa que investiguem as consequências da presença deste predador amazônico em águas da região Sudeste.
Os pesquisadores relatam que até o momento o pirarucu foi encontrado apenas em um trecho do rio Grande. Mais precisamente, entre as barragens da usina hidrelétrica de Marimbondo e da usina hidrelétrica de Água Vermelha, um segmento de aproximadamente 120 quilômetros em que o rio Grande divide os territórios mineiro e paulista.
Livre-docente em ecologia aquática e professora do departamento de Zoologia e Botânica do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, câmpus de São José do Rio Preto, Lilian Casatti explica que as duas barragens, construídas nos anos 1970 para a produção de eletricidade, causam a diminuição da correnteza original do rio. Forma-se assim um ecossistema muito parecido com o habitat natural do pirarucu na Amazônia, onde costuma ser encontrado em lagos de água mais parada.
Lilian Casatti é uma das autoras da primeira comunicação científica que registrou a presença do pirarucu na região, em 2015. O artigo foi publicado na revista Checklist, reconhecida por divulgar registros inéditos e comunicações curtas sobre biodiversidade. No texto, a docente do câmpus da Unesp em São José do Rio Preto observou a carcaça de um pirarucu de aproximadamente 1,20 m nas margens da represa de Água Vermelha, mas não conseguiu identificar a causa da morte ou o conteúdo do seu estômago devido ao avançado estágio de decomposição do peixe.
Peixes de grande porte como o pirarucu são bastante valorizados pelos produtores na aquicultura, e muitas vezes são produzidos fora da sua bacia hidrográfica original. A fuga desses animais dos tanques de produção é a principal causa de introdução de espécies não nativas nos rios. Escapes acidentais como o ocorrido no rio Grande já resultaram na introdução do pirarucu em sistemas aquáticos nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil. No caso abordado pela professora da Unesp, o artigo menciona relatos de pescadores da região de que o rompimento de um tanque em um município próximo ao rio Grande após uma forte chuva teria causado a introdução do pirarucu.
Espécie invasora? Pirarucu
Casatti explica que, uma vez que a presença do pirarucu nas águas do rio Grande já foi estabelecida, o fundamental neste momento é medir o real impacto da espécie no novo habitat. “Hoje, no rio Grande, o pirarucu é classificado como um peixe não nativo. Para que passe a ser considerado espécie invasora precisamos pesquisar e provar que a sua presença causa dano a alguma espécie ou processo ecológico”, diz. “Estamos falando de um trecho já bastante alterado do rio Grande em que existem barragens, processos de assoreamento, perda de habitat, resíduos de agrotóxicos e presença de diversas espécies não nativas”, argumenta.
Em 2018, um levantamento conduzido pelo aluno Yoshiaki Nogueira Miyazaki, do curso de Ciências Biológicas, durante estágio obrigatório, analisou o conteúdo do estômago de 12 pirarucus, em uma parceria com a Colônia de Pescadores Z-27 do município de Icém. Apesar da amostra pequena, o trabalho observou que camarões (das espécies Macrobrachium amazonicum e M. jelskii) e os peixes lambari e tilápia foram os itens mais importantes na dieta dos peixes amazônicos.
Destes animais, apenas o lambari é uma espécie nativa. Casatti faz questão de frisar que o fato de o pirarucu aparentemente estar se alimentando de espécies que também não são nativas não deve ser visto como uma licença para sua introdução. “Quando um peixe não nativo é introduzido, não vem sozinho. Chega com ele um pool de parasitas que estão presentes nesse organismo e também podem causar impactos que devem ser medidos. Por isso é importante o desenvolvimento de pesquisas sobre o tema”, aponta.
E as pesquisas estão a caminho. Lidiane Franceschini, do câmpus da Unesp em Ilha Solteira, é responsável por um projeto que irá investigar os efeitos da chegada do pirarucu ao rio Grande. “Tendo em vista que o conhecimento sobre os efeitos da invasão do pirarucu na bacia receptora ainda é incipiente, informações sobre aspectos biológicos da espécie e fatores que possam influenciar o sucesso do seu estabelecimento na nova área são essenciais para subsidiar medidas de manejo local da espécie”, explica a pesquisadora. Entre as informações sobre as quais ela pretende se debruçar estão a dieta e organismos parasitas presentes no pirarucu, o perfil reprodutivo no novo habitat e o rastreamento da origem amazônica a partir de análises moleculares.
O trabalho, que terá a colaboração da Universidade Estadual de Londrina (UEL), da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Universidade de Valência, na Espanha, acaba de ser aprovado para financiamento pela Fapesp. Franceschini explica que o pirarucu é uma espécie predadora de perfil carnívoro generalista ou onívoro, que costuma ocupar o topo da cadeia alimentar. Na ausência de predadores naturais ou espécies concorrentes, como pode ser o caso do rio Grande, o pirarucu pode causar extinção local de espécies de peixes e invertebrados e competir por recursos ambientais com outras espécies, além de introduzir novos parasitas nas espécies nativas. “Ainda, a depender das espécies predadas, a presença do pirarucu pode causar a diminuição de espécies importantes para a pesca regional”, afirma.
Pescada amazônica teve sucesso na adaptação
A situação não seria inédita. Desde o ano de 2020, o doutorando Aymar Orlandi Neto vem avaliando os impactos causados pela introdução da pescada-amazônica, também conhecida como corvina de rio (Plagioscion squamosissimus) no reservatório do rio Jaguari. A partir do projeto, também apoiado pela Fapesp, já foi possível constatar o sucesso na adaptação, tornando-se o predador mais abundante e ao qual é atribuída a redução da riqueza e da diversidade de espécies nativas no local. Franceschini explica que impactos semelhantes também já foram registrados na literatura científica em relação a introdução de tucunarés (Cichla ocellaris).
Uma vez introduzidos no ambiente aquático, reverter essa situação é quase impossível, apontam as especialistas. “Atualmente, a principal medida de contenção dessas espécies introduzidas é a liberação da pesca esportiva e artesanal profissional durante todo o ano, medida essa insuficiente para conter tais invasões biológicas”, lamenta Franceschini,.
Diante da dificuldade de reverter a introdução, Cassatti chama a atenção para que autoridades, moradores e pescadores se esforcem para que o pirarucu não escape novamente para outros corpos aquáticos da região. Próximo a este trecho do rio Grande, explica a professora do câmpus de São José do Rio Preto, está localizado o rio Turvo, um dos poucos do estado de São Paulo que ainda não tem em seu percurso barramentos para represar a água. “O pouco que ainda existe de peixes nativos nesta bacia está sobrevivendo por conta da ausência dessas barragens e pela existência de lagoas marginais no rio Turvo que servem como verdadeiros berçários para essas espécies nativas”, destaca.
A professora defende também que os aquicultores cultivem apenas espécies de peixes nativas da região onde estão localizados os tanques para criação, de forma a evitar escapes e novas introduções indesejadas de espécies. “O Brasil é um dos países mais diversos do planeta e abrigamos mais de cinco mil espécies de peixes. Não há necessidade de criarmos espécies que não são nativas da própria bacia em que está localizada a produção”, destaca.
Texto publicado originalmente em Jornal da Unesp
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