Texto traz confusões conceituais e ataques “ad hominem”, ao gosto do ex-ministro demitido
Em geral, a gente tem mais o que fazer do que verificar o que diz o sub do sub do governo. Mas o artigo que o secretário adjunto de Clima do Ministério do Meio Ambiente, Marcelo Donnini Freire, publicou em seu perfil no Linkedin sobre a atualização da NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) brasileira é um chamado irresistível. Ele promete uma “visão realmente técnica, séria e pautada na ciência” a respeito da meta climática do Brasil. Hm.
A equipe do Fakebook.eco dissecou o texto do subsecretário e encontrou o mesmo tipo de argumentação esgrimido por outros personagens do governo Bolsonaro, como o ex-ministro do Meio Ambiente: uma mistura de paranoia e mistificação, parafraseando Monteiro Lobato. Leia abaixo o artigo, comentado ponto a ponto.
“Recentemente a UNFCCC publicou sem qualquer questionamento a NDC brasileira que reflete o aumento de ambição em relação à anterior.”
É um truísmo dizer que a UNFCCC não fez questionamentos em relação à NDC brasileira. O órgão de clima da ONU recepciona e publica em seu registro das NDCs as metas de todos os países, da mais ambiciosa (Marrocos) à mais ofensiva (Rússia), sem questionar ou apontar o dedo para nenhuma – afinal, as contribuições são nacionalmente determinadas. O Acordo de Paris prevê que as avaliações da UNFCCC sobre a suficiência ou não das NDCs sejam feitas no agregado, justamente para não expor país nenhum.
A afirmação de que a NDC “reflete aumento de ambição em relação à anterior” é verdadeira, mas apenas se comparada à primeira atualização da NDC, apresentada em 2020 pelo próprio governo de Jair Bolsonaro. O que o secretário adjunto não disse foi que a nova meta ainda é menos ambiciosa do que a submetida originalmente pelo Brasil em 2015, quando o Acordo de Paris foi adotado. Portanto, o país segue violando o tratado do clima, segundo o qual novas NDCs não podem recuar na ambição.
“O Governo Federal aumentou de 43% para 50% a meta de 2030 e acrescentou a neutralidade climática em 2050, conforme compromisso assumido em Glasgow. Utilizou como base a 4° comunicação nacional, a melhor ciência disponível e atual na data, conforme as orientações do Acordo do Clima.”
Acrescentar o compromisso de neutralidade em 2050 à NDC é melhor que apenas fiar-se numa declaração de Jair Bolsonaro, como era o caso até agora. Mas a NDC não é o lugar de fazer promessas para 2050. Como dita o parágrafo 35 da decisão 1/CP.21, que adotou o Acordo de Paris, cada nação foi convidada a apresentar até 2020 uma estratégia de longo prazo, com planos de desenvolvimento de baixo carbono para o meio do século. O plano de longo prazo não se confunde com a NDC e a fixação de uma meta para 2050 na NDC, a rigor, não tem valor algum para julgar a ambição da NDC, que é um compromisso para 2030. Até a presente data, o Brasil não comunicou à UNFCCC sua estratégia de longo prazo.
“Constatei que aqui internamente temos alguns “especialistas” em clima, que dizem defender a ciência e serem ambientalistas, falando mal do país e alardeando uma suposta pedalada climática na nova NDC. Tal postura apenas testemunha o quanto tais “especialistas” são na verdade militantes partidários que colocam seus interesses pessoais e polarizados na frente dos interesses maiores da Nação, do meio ambiente, da ciência e da coerência metodológica. É apenas um atestado público de ausência de independência e seriedade técnica e que é utilizado reiteradamente para tentar lesar a imagem do País, induzindo ao erro o leitor leigo ou pouco familiarizado com o tema.”
Aqui o subsecretário comete a conhecida falácia do ataque ad hominem, um clássico da erística bolsonarista. Essa tática retórica consiste em desqualificar a pessoa do oponente em vez de seu argumento, chamando-o de “bobo”, “feio” ou, o preferido do ex-ministro Ricardo Salles, “militante partidário”.
“Consideremos agora também alguns aspectos:
– Nossa NDC é estabelecida em termos percentuais em relação ao ano base de 2005;
– É do tipo Economy Wide (para o conjunto da economia);
– Estabelece claramente um aumento de ambição de 43% para 50% de redução em 2030;
– Estabelece objetivo de neutralidade em 2050;”
Donnini Freire mais uma vez mistura banana (NDC) com laranja (neutralidade em 2050). E mais uma vez distorce o argumento da ambição: a “pedalada de carbono” apontada por ambientalistas, acadêmicos e pelo próprio Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente se refere à mudança de linha de base feita entre a NDC original, em 2015, e a sua primeira atualização, em 2020 – e não à mudança realizada entre esta e a segunda atualização, neste ano.
“– Qualquer pessoa que tenha conhecimento básico sobre um processo de elaboração de um inventário de emissões de GEE, sabe que é um processo de busca contínua por melhorias e que a orientação metodológica é para que cada novo inventário sempre busque incorporar os avanços possíveis de melhorias de dados, precisão e atualização científica. Desta maneira, usualmente cada novo inventário apresenta resultados diferentes e mais evoluídos do que suas versões anteriores;
– Atualmente o Brasil tem no seu quarto inventário nacional a melhor versão atual disponível baseada na ciência;”
É verdade que os inventários de gases de efeito estufa são aprimorados constantemente (ainda bem) e que o Quarto Inventário é melhor que o Terceiro Inventário, no qual é baseada a atualização de 2020 da NDC, na qual o Brasil “pedalou” em 400 milhões de toneladas de CO2 – ou seja, deu a si mesmo o direito de emitir 400 milhões de toneladas a mais e seguir cumprindo a meta.
Faltou Donnini Freire explicar por que, então, a atualização de 2020 usa explicitamente como referência o Terceiro Inventário, quando o quarto já estava disponível e era de conhecimento de todos os especialistas do governo. E faltou explicar também por que em nenhuma das atualizações foi feito o ajuste percentual da meta diante de mudanças na linha de base: afinal, se o número do ano-base da meta (2005) pode – e deve – ser atualizado de acordo com a melhor ciência disponível, não deveria haver nenhuma dificuldade em ajustar também o percentual de corte de forma a refletir a mudança de inventário. Desde 2016 a sociedade civil vinha alertando para esse risco – não dá para alegar surpresa.
“– Cenários de projeção de emissões devem ser traçados assumindo o mesmo corte temporal da amostra, inclusive da linha de base. Misturar cortes temporais para distorcer números é um estratégia (sic) bastante desonesta”.
A gente não entendeu o que o secretário adjunto quis dizer aqui. Não estamos seguros de que ele mesmo tenha entendido.
“Considerando tudo isso, fica evidente o quanto nossa NDC é ambiciosa, respeita a ciência e preza pela coerência metodológica. Não à toa é apontada, em relatório da Bloomberg, como a NDC mais ambiciosa entre os países em desenvolvimento do G20.”
O relatório publicado em abril de 2021 pela Bloomberg New Economy Finance (BNEF) de fato afirma que a NDC do Brasil é a mais ambiciosa dentre os países em desenvolvimento do G20 quando considerada a redução absoluta. Só que é preciso tomar essa afirmação com alguns grãos de sal, porque:
1 – Esse já era o caso em 2015, quando a NDC foi adotada. O Brasil tem essa vantagem simplesmente porque é o único grande país em desenvolvimento que tem uma meta de redução absoluta para toda a economia; os outros grandes emissores do ex-Terceiro Mundo, como Índia e China, têm metas relativas, de redução de carbono por unidade de PIB, por exemplo.
2 – A própria BNEF propõe quatro critérios para analisar as NDCs. A redução absoluta é um. Outro deles, que o relatório considera “uma avaliação mais acurada da ambição de uma NDC”, é o chamado “gap to BAU“, ou seja, a comparação entre a NDC e nenhuma política de redução. Isso dá uma medida do esforço necessário para atingir a meta. Quando visto sob esse critério, o Brasil despenca de terceiro país mais ambicioso do G20 para 13º. O país poderia aumentar suas emissões em 14% até 2030 em relação a 2018 e mesmo assim cumprir a meta.
3 – A BNEF não é a única organização que analisa a ambição das NDCs. O consórcio Climate Action Tracker, que reúne alguns dos maiores especialistas do mundo em contabilidade de carbono, faz isso todo ano desde 2015. Segundo o CAT, a NDC atualizada do Brasil é “altamente insuficiente” para cumprir as metas de Paris, tendo regredido em relação à NDC de 2015, que era apenas “insuficiente”. A falta de informações na submissão brasileira à UNFCCC impediu que o consórcio fizesse uma análise completa da NDC.
“Finalizo convidando todos a chegarem a suas próprias conclusões, acessarem o vigente inventário nacional e aplicarem uma simples regra de três.”
A conta realmente é simples: ao aplicar a nova meta de 50% de redução com base na Quarta Comunicação Nacional, o Brasil deverá chegar em 2030 emitindo 1.281 MtCO2e. Ou seja, 73 MtCO2e a mais do que o prometido em 2015 (1.208 MtCO2e). Apesar de ter reduzido a “pedalada” em 80% (de 400 Mt para 73 Mt), o Brasil segue pedalando no clima, com uma meta pior do que a feita há sete anos, em violação direta do Acordo de Paris.
Fonte: O Eco
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