Para o ex-ministro da Agricultura, a preservação da Amazônia depende da criação de alternativas sustentáveis de produção, que possam gerar renda para os habitantes da região
Entrevista com
Alysson Paolinelli, ex-ministro da Agricultura e ex-secretário da Agricultura de Minas Gerais.
O agrônomo Alysson Paolinelli, de 85 anos, ocupa um lugar especial na história do agronegócio do País. Como ministro da Agricultura no governo Geisel (1974-1979), Paolinelli promoveu a modernização da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criando as bases que a transformaram num polo de inovação tecnológica respeitado internacionalmente, e impulsionou a ocupação econômica do cerrado, que viabilizou o grande salto registrado na produção rural brasileira nas últimas décadas.
Entusiasta do uso da ciência para o aumento da produtividade no campo de forma sustentável, ele diz que a ativista sueca Greta Thunberg “está mal informada” e que muitas das críticas feitas ao Brasil, em razão do desmatamento da Amazônia, são “fake news”. “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente”, afirma. “90% da nossa Amazônia ainda estão preservados.”
Nesta entrevista ao Estadão, Paolinelli fala também que, para preservar a a Amazônia, é preciso empregar a biotecnologia, promover o manejo da floresta, da agricultura e da pecuária e desenvolver projetos sustentáveis de piscicultura e de produção de açaí, dendê e castanha. O tema, que concentra hoje boa parte de sua atenção, será debatido nos dias 1 e 2 de dezembro, em Porto Velho (RO), com transmissão ao vivo pelo YouTube, num evento chamado Wake Up Call Amazônia, Já, promovido pelo Instituto Fórum do Futuro, organização que ele fundou em 2013 e da qual é o presidente.
Segundo Paolinelli, porém, sem gerar renda para os 25 milhões de habitantes que vivem na Amazônia, o desmatamento não vai parar. “Enquanto a árvore valer mais deitada do que em pé, não há polícia, não há exército que controle o desmatamento”, diz. “Os países ricos ainda não se deram conta de que existe uma área tropical no globo que é faminta, miserável.”
Recentemente, na COP-26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021), em Glasgow (Escócia), o Brasil ficou na posição de vilão do meio ambiente, por causa do aumento do desmatamento, especialmente na Amazônia, para uso da terra na produção agropecuária. Como o sr. vê essa questão?
Isso não é novidade. O Brasil está como vilão há muito tempo. Para mim, essa visão tem um fundo ideológico. Não tenha dúvida disso. As viúvas do Muro de Berlim não morreram. Há também uma guerra econômica em andamento e nós estamos no meio dela. No Brasil, houve uma revolução na produção de alimentos nas últimas décadas, que trouxe uma estabilidade e uma garantia para o abastecimento alimentar mundial que não existiam antes. Mas o mundo livre não aceita que países como o Brasil ganhem destaque no mercado internacional. Acham que nós temos de ser subalternos. De outro lado, há um reconhecimento do que o Brasil fez. Hoje, a ONU, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e mesmo grandes bancos e organizações internacionais consideram que essa revolução que fizemos na área tropical é importante. Só que o grupo de Glasgow não quer reconhecer isso. Deixa a gente de lado.
Que revolução é essa a que o sr. se refere?
Nós conseguimos gerar uma tecnologia tropical, para produzir de forma altamente sustentável e competitiva, que ultrapassou a capacidade de produção dos nossos grandes mentores no abastecimento. Entre 1975 e 2020, a nossa produção de grãos, que era de 38 milhões de toneladas, cresceu quase sete vezes, para 260 milhões de toneladas, enquanto a área plantada apenas dobrou. Isso permitiu que o Brasil, que pagava o alimento mais caro do mundo nas décadas de 1960 e 1970, pagasse o mais barato do mundo em 2000, com uma queda de 70% nos preços, em termos reais. Há trabalhos sérios do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ligado ao Ministério da Economia) e de alguns economistas que mostram isso.
Hoje, o Brasil fornece produtos de melhor qualidade, mais baratos e principalmente com maior constância de oferta no mercado global. Não há mais espaço para produção de alimentos no mundo. Quem diz isso são os próprios Estados Unidos e a Europa. A Ásia não tem nem área agricultável nem água. Quem tem somos nós. Lá, eles só produzem uma safra por ano. Nós estamos produzindo três. Aqui, usamos o solo nos 12 meses do ano. O Brasil hoje é o grande sustentáculo do abastecimento mundial. A China sabe que depende do Brasil. Então, você vai ver que essas ondas existentes por aí vão se dissipar com a escassez de alimentos que está havendo no mundo. Nós estamos com a faca e o queijo na mão.
O problema é que há uma percepção de que o crescimento da produção de alimentos no País se deu e está se dando em detrimento do meio ambiente, em particular na Amazônia, onde o desmatamento está batendo recordes. Como o sr. analisa isso?
É evidente que a Amazônia está sendo desmatada. Não vamos dizer que o desmatamento é zero. Não é. Hoje, temos tecnologia para saber se um pau caiu ou não. Mas 90% da nossa Amazônia ainda estão preservados. Os outros 10% me preocupam. No cerrado, também houve desmatamento, mas ainda temos 54% do cerrado preservados. Não acabamos com o cerrado como eles acabaram com a vegetação lá fora. Os biomas deles estão destroçados. Nós queremos preservar o nosso aqui. Agora, não será só proibindo o desmatamento que vamos resolver o problema da Amazônia. Enquanto a árvore valer mais deitada do que em pé, não há polícia, não há exército que controle o desmatamento. Pode botar um soldado armado no pé de cada árvore. Na hora que ele for fazer sua necessidade física, vão derrubar essa árvore.
Há um fato inexorável, que é a motivação de todo o nosso esforço: nós temos na Amazônia mais de 25 milhões de pessoas famintas, com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo do País, fazendo extrativismo. Elas precisam de renda. Em 2017, no Censo Agrícola, o IBGE mostrou que essa grande revolução na produção foi feita por apenas 842 mil propriedades. Deixamos de lado 4,5 milhões de propriedades que ainda estão fazendo extrativismo, agricultura de subsistência, não tem acesso à tecnologia, não tem condição de produtividade, não participam do mercado. Ganham, em média, dois terços do salário mínimo por mês. Esse é um problema brasileiro e acredito que temos todos os recursos disponíveis para corrigir essa deformação. Os países ricos ainda não se deram conta de que existe uma área tropical no globo que é faminta, miserável. É um verdadeiro atentado, um jogo cruel, o que estão fazendo. Os ricos estão com a barriga cheia, engordando demais, e nós estamos aqui, famintos.
A questão é que há todo um movimento internacional, que tem muita força política, pressionando o Brasil a tomar medidas efetivas de combate ao desmatamento. A ativista sueca Greta Thunberg, que se tornou um símbolo desse movimento, defende até uma revisão da forma como os alimentos são produzidos hoje. Como o sr. avalia a posição da Greta Thunberg e do grupo que a apoia?
Ela é uma liderança que eu reconheço. Só acho que está mal informada. Eu propus a ela num vídeo vir conhecer isso aqui para parar de falar essas besteiras que está falando. Ela não quis vir. Respondeu que não queria ouvir blábláblá, como falou em Glasgow. Eu proponho ao grupo dela que venha discutir aqui, na base da ciência, da tecnologia, do conhecimento, se estamos ou não no caminho certo. Estou tentando agora fazer o convite oficialmente. Eles vão se assustar com os resultados que alcançamos. Eles não conhecem. Têm de conhecer. Acho que não estou pedindo muito, não. Eu gostaria de atingir a juventude que ela lidera, para que não se engane com as fake news relativas a essa tremenda destruição de recursos naturais que acusam o Brasil de fazer. Isso é mentira. O Brasil é país o que mais preserva o meio ambiente. Nós somos o maior repertório de recursos naturais que o mundo tem.
A União Europeia está estudando uma proposta para proibir a importação de mercadorias produzidas em terras desmatadas na Amazônia. O que o sr. pensa sobre isso?
Eles querem proibir a importação dos nossos produtos porque já desmataram tudo. Não têm como proibir a compra do que eles mesmos produzem. Eu entendo assim. Quem está preservando os biomas ainda é o Brasil. Eles não têm a menor ideia de qual era o bioma original deles. Como é que vêm falar atropeladamente sobre um país que hoje é o grande repertório de toda a biologia, de toda a biotecnologia que o mundo tem? Isso, sim, pode preocupar.
Os grandes fundos de pensão internacionais também estão restringindo seus investimentos em empresas ou projetos ligados a áreas de devastação. Isso não pode prejudicar o investimento externo no agronegócio e na agroindústria brasileiros?
Eu gostaria que eles analisassem bem onde está realmente o problema. Porque o Brasil ainda é o único país que pode se jactar de ser ecologicamente equilibrado. Temos uma agricultura que é altamente sustentável. O que está havendo aí é uma deturpação. É essa informação deturpada que está influenciando a cabeça dos tomadores de decisão. Nós perdemos essa batalha. Os populistas ganharam e distorceram tudo ou, pior, destroçaram tudo. Isso tem de mudar. O mercado é que vai fazer isso mudar.
O governo tem sido acusado de ser leniente com o desmatamento e com a ocupação ilegal de terras. Como o sr. avalia a atuação do governo?
Eu não vou discutir o governo, porque na realidade isso não é de agora. Como já disse, existe há muito tempo. Não estou nem do lado do governo nem contra o governo. Eu sou pela ciência. Sou um professor aposentado e tenho entusiasmo pelo que podemos fazer aqui. Acho que esse debate que você está querendo promover não é favorável ao Brasil nem nunca foi. Eu passei pelo governo e fiz um grande esforço para tentar desviar dessa euforia de que a Amazônia desmatada resolve.
Não resolve. Nós ainda não conhecemos aquele bioma 40 anos depois de eu sair do governo. O que eu quero é que a ciência amplie os conhecimentos que ela já desenvolveu. Nós estamos encontrando alguns nichos de evolução científica que começam a dar renda e apresentar soluções. Vamos nos agarrar a isso e tentar através da ciência mobilizar a área amazônica. Eu sei que governo hoje não tem dinheiro. Nós não temos dinheiro para pesquisa. A pesquisa está em dificuldades. Quem está fazendo o investimento agora é a iniciativa privada.
Mas nós não podemos negar a realidade. Estou colocando um quadro que está aí, baseado nos dados de organizações que acompanham o desmatamento na Amazônia.
O governo está sendo massacrado por fazer bem ou fazer mal. Não é assim. A maior crítica não vem lá de fora, não. É daqui mesmo. Internamente, nós temos uma briga sobre essa questão que só está prejudicando o País. Se hoje o Brasil está em dificuldades financeiras e teve de reduzir seus investimentos em áreas estratégicas, a iniciativa privada está cobrindo isso, até na infraestrutura logística. Vai cobrir na ciência também. Nós já fizemos isso no passado e deu certo.
Treinamos 1.530 técnicos lá fora. Eles foram conhecer a ciência no mais alto grau, para desenvolver tecnologia e inovação no bioma tropical brasileiro. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ganhou nova forma de gestão pública, com autonomia administrativa, técnica e financeira. Ela chamou as universidades, a iniciativa privada, que foi uma grande parceira, as estaduais de pesquisa, que se ampliaram, e o Brasil conseguiu com grande velocidade promover a enorme mudança na qual eles não querem acreditar. Eu acredito na ciência. Não sou cientista, mas admiro os cientistas.
Na prática, como a ciência vai contribuir para resolver esse problema da devastação, das queimadas, e viabilizar uma produção mais sustentável?
O caminho é a biotecnologia. Nós temos de achar pela ciência uma forma de tirar a rentabilidade da terra sem degradar o bioma. Nós vamos trabalhar na agricultura e na agroindústria, que representam mais de 50% do PIB nacional, para modificar tremendamente a posição e a competitividade brasileiras. Nós vamos ser ainda mais competitivos do que já somos. Em Rondônia, já existem várias iniciativas neste sentido. No Nordeste, vamos fazer a mesma coisa. Nós estamos nos baseando naquela pequena proporção, em torno de 18%, de agricultores que foram capazes de assimilar tecnologia, ter boa gestão, entrar no mercado, ser competitivos e ter renda. Vai ser base para o desenvolvimento de seus vizinhos e até empregados. Gostaria que a ciência fosse estimulada, para que encontre uma forma de dar renda àquelas 25 milhões de pessoas que vivem na Amazônia.
Todos nós temos de reconhecer, independentemente de ser do partido a, b ou c, que a solução dos nossos problemas está na ciência. No momento em que a ciência botar a árvore em pé valendo mais do que a deitada – e ela é capaz de fazer isso –, não tenha dúvida: pode tirar a polícia da floresta, porque o desmatamento vai diminuir naturalmente. A ciência pode reverter isso e lá fora eles não estão querendo escutar muito a ciência tropical. Acredito que a ciência brasileira hoje tem base para desenvolver uma valoração daqueles recursos biológicos da Amazônia e transformá-los em bases de uma nova civilização. É isso que estamos buscando insistentemente, tentando convencer aquelas 842 mil propriedades que deram certo de que precisam ter o cuidado de desenvolver a tecnologia no mais alto nível – e elas estão desenvolvendo.
Ainda não entendi na prática o que vai manter a árvore em pé. Como é que a gente mantém a árvore de pé?
Você tem várias formas. A primeira é uma utilização sustentável da árvore. Você tira uma árvore e planta outra. Isso já está acontecendo na Amazônia. Hoje, já temos técnicas de manejo sustentado em florestas com belíssimos resultados. Você corta a árvore que lhe interessa e dá dinheiro, planta duas ou três no lugar dela e faz o manejo. Tem projetos assim no Pará, em Rondônia, em vários locais do Brasil, que já começam a mostrar resultados. A integração entre a lavoura, a pecuária e a floresta (ILPF), considerada a tecnologia mais evoluída existente hoje, com a recomposição dos microssistemas que foram destruídos e o cruzamento do pasto com a lavoura, está recuperando uma parte das áreas degradadas da Amazônia. Isso está multiplicando por cinco a atual população bovina com resultados fabulosos. Estou acompanhando mais de 100 projetos desta natureza e estou encantado com os resultados. É a Amazônia produzindo grãos, floresta e carne ou leite. Há vários exemplos também de piscicultura e produção sustentável de açaí, café, dendê e castanha, que dialogam com a preservação da floresta. Isso para mim é uma tecnologia que vai dar sustentabilidade à Amazônia e ao povo amazônico, que não pode ser jogado fora ganhando dois terços do salário mínimo. Quero ver o que vão dizer sobre a Amazônia depois disso.
Você tem de arrumar uma forma de gerar renda na região para permitir que, pelo menos, o trópico úmido não seja mexido. O trópico úmido não serve para plantar, não serve para boi. Chove demais. Fica às vezes coberto com água seis meses por ano. Então, essa área não pode ser mexida. A organização do produtor é outro problema que nós temos. As cooperativas no Brasil deram certo até o sul de Minas. Para cima, não. Por que as cooperativas do sul estão conseguindo entrar na casa do consumidor europeu, asiático, e atendendo a demanda dele? Porque os produtores são organizados. Têm lideres e competências. E ainda não tem isso na Amazônia e no Nordeste, e precisaria ter.
Sem dúvida nenhuma. O mundo pode ter a sustentabilidade na sua produção e garantir a segurança alimentar com essa tecnologia tropical. Quem vai plantar, quem vai usar os recursos naturais, tem que fazer isso com sustentabilidade. Essa tecnologia desenvolvida aqui no Brasil, de integração lavoura, pecuária e floresta, está sendo reconhecida como o maior avanço que já houve na produção de alimentos, mas a ciência tropical não esteve em Glasgow. Com ela, você reduz a terra que está trabalhando e produz no mesmo lugar muito mais grãos e muito mais bois. O Durval (Dourado Neto), diretor da Esalc (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP), diz que, com essa ferramenta, a gente pode mais do que dobrar a produção de alimentos no Brasil usando 180 milhões de hectares de pecuária de baixa produtividade. É uma mágica científica que triplica a sustentabilidade e mais do que duplica a produção. Eu vivo isso. Adotei o ILPF como produtor (boi, soja, milho e sorgo) e estou satisfeito com os resultados. Se não fosse isso, eu teria quebrado, porque minha propriedade está localizada numa região seca em Minas (no município de Baldim).
O sr. vê o Brasil superando essas dificuldades em relação à sua imagem lá fora e consolidando a sua posição de provedor de alimentos para o mundo?
Eu vejo, pela nossa juventude. Na Europa, o gestor da produção já está com mais de 70 anos. Nos Estados Unidos, tem entre 60 e 70. No Brasil, está com 48. Isso para mim é uma grande arma que nós temos. Eu tentei fazer um estudo disso, conversei com muito aluno, filho de agricultor no exterior. Sabe o que eles falam? “Como é que eu vou voltar para a minha fazenda se eu vejo na economia que meu pai, para ficar lá, tem de ser subsidiado? Até quando a sociedade vai concordar em subsidiar meu pai?”. Aqui no Brasil é diverso. O rapaz vai fazer um curso na universidade e a economia está mostrando o contrário. Seu pai está sendo espoliado, é o que paga mais imposto, não tem segurança, e está sustentando o Brasil. Ele vê que, se for para essa atividade, com mentalidade nova, vai ter de lutar mais que o pai para a implementação de novas políticas públicas e para que o Brasil continue a ser o que é.
Excepcional. Essa moça, vou te contar, tira pirulito da boca de menino sem ele chorar. Eu falo isso para ela. É a mato-grossense mais mineira que eu já vi. Ela fala, “mas eu estudei em Viçosa e casei com um mineiro”. Eu digo “então está explicado”. Ela tem uma capacidade de mobilização que eu nunca vi. Tem competência, conhece o problema agrícola e é produtora rural. É engenheira agrônoma, bem formada, tem uma grande habilidade política. Você já viu algum político brigar com a ministra? Ela é hábil demais.
Está. E está trabalhando muito bem nisso.
Fonte: Estadão
Autorizado pelo entrevistado
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