Proposta traz princípios norteadores e cardápio de estratégias para uso e conservação do mar. Atualmente, a gestão do bioma acontece de forma fragmentada
Em outubro deste ano, a Agência Nacional do Petróleo (ANP), órgão do governo que regula a exploração do combustível fóssil no Brasil, realizou a 17ª Rodada de Licitações de blocos para exploração. O total ofertado compreendia 53,93 mil km², área equivalente a cinco vezes o tamanho da cidade de Manaus, a segunda maior capital brasileira em extensão. Muitas dessas áreas ofertadas pela ANP se sobrepunham a ambientes marinhos sensíveis, mas as questões ambientais do leilão foram deixadas para serem resolvidas no futuro.
“As rodadas de petróleo deveriam estar sendo vistas de forma integrada, mas ninguém mais do governo se manifestou. Os Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia somente emitiram um parecer dizendo que as questões ambientais seriam tratadas depois. Mas precisamos de novos poços de petróleo, ainda mais olhando para frente, em um futuro de descarbonização? Para quê esses blocos exploratórios em áreas sensíveis?”, questiona a pesquisadora Ana Paula Prates, doutora em Ecologia Marinha e professora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ).
O leilão da ANP é somente um exemplo de como a gestão dos ambientes costeiro-marinhos do Brasil é hoje feita no país: de forma descentralizada e sem diálogo com a sociedade e com os demais órgãos envolvidos na governança deste imenso bioma sob nossa jurisdição.
“Se temos no país uma lei voltada para o mar, essas perguntas teriam que ser respondidas na etapa inicial do processo. Teríamos um olhar mais integrado com os demais setores”, complementa a pesquisadora do JBRJ.
Nesta matéria da série de reportagens sobre a Lei do Mar, ((o))eco se debruça sobre o desorganizado sistema de gestão do sistema costeiro-marinho do Brasil e sobre a importância de um marco regulatório para o mar dentro desse contexto.
Gestão fragmentada
O Brasil possui uma das maiores áreas costeiro-marinhas do mundo: são cerca de 10 mil km² de costa e outros 3,5 km² de espaço marítimo sob jurisdição brasileira. Somente a área marítima é maior do que toda extensão da Índia.
Este imenso mar, no entanto, é regido por diferentes leis e instrumentos de gestão, em diferentes órgãos governamentais, que não necessariamente conversam entre si, como exemplificado pelo leilão da ANP. Não existe um marco regulatório para o mar brasileiro.
As questões relacionadas à pesca, artesanal e industrial, são regidas principalmente pela Lei da Pesca (Lei Federal nº 11.959/2009); a navegação, pela Política Marítima Nacional (Decreto nº 1.265/1994); a extração de óleo e gás pela Política Energética Nacional (Lei Federal 9.478/1997); as áreas protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei do SNUC – nº 9.985/2000) e pelo Plano Nacional de Áreas Prioritárias (Decreto nº 5.758/2006); o turismo náutico pela Política Nacional de Turismo (Lei Federal nº 11.771/2008); e assim por diante.
Também entram no pacote as demais leis e normas infralegais (portarias, decretos, resoluções, normativas) que versam sobre aspectos específicos de cada uma das atividades, como as que determinam o período de defeso para captura de determinadas espécies ou as que definem regras para embarcações de esporte e recreação, por exemplo.
Cada uma dessas normas é colocada em prática e fiscalizada por diferentes órgãos dentro do Governo Federal, entre ministérios, secretarias, diretorias e colegiados. Ministério do Meio Ambiente, Ministério de Minas e Energia, Ministério da Agricultura, Ministério da Infraestrutura, Ministério do Turismo, Ministério de Ciência e Tecnologia, e a Marinha do Brasil. Todos têm a sua parcela de responsabilidade nesta gestão fragmentada.
Segundo a pesquisadora Leandra Gonçalves, professora no Instituto do Mar na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e membro da Liga das Mulheres Pelos Oceanos, essa fragmentação de leis, instrumentos e instâncias de decisões relativas ao bioma marinho é um claro reflexo do cenário de não-governança do bioma.
“São várias políticas, várias temáticas, tudo separado, governado por diferentes Ministérios, os Ministérios não falam entre si. Isto é, um cenário desgovernado”, diz.
Atualmente, existem centenas de normas que regem o ambiente costeiro-marinho no Brasil, nas várias instâncias de decisão. Segundo levantamento realizado por ((o))eco, somente no âmbito federal, são ao menos 34 instrumentos legais, entre leis e normas infralegais, que incidem direta ou indiretamente no bioma. Isso sem falar nas leis e planos estaduais das 17 unidades da federação que têm acesso ao mar, e nas normas municipais das 442 cidades costeiras do país.
“O mar é um cachorro que tem muitos donos e que acaba morrendo de fome”, sintetiza o deputado Rodrigo Agostinho (PSB/SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara Federal. O parlamentar acompanha a formulação da Lei do Mar desde o início de sua tramitação.
Mar como bioma integrado
Desde 2013, pesquisadores, parlamentares, comunidades tradicionais, órgãos governamentais e setor privado discutem um projeto de lei que busca criar um marco regulatório para o mar e, assim, resolver este cenário de “não-governança”. Trata-se do Projeto de Lei 6.969, que institui a Política Nacional para a Conservação e o Uso Sustentável do Bioma Marinho Brasileiro (PNCMar), conhecida como “Lei do Mar”.
Ao estabelecer princípios, limites, conceitos e mecanismos integrados de gestão (Leia a primeira matéria da série – Brasil entra da Década do Oceano sem uma lei para bioma marinho-costeiro), a Lei do Mar não só garantiria o diálogo entre as normas e atividades já realizadas no ambiente marinho, como é o caso dos blocos de extração de petróleo, citado no início da matéria, mas também serviria de orientação para as futuras leis relacionadas ao bioma.
O Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, conhecido como BR do Mar (Projeto de Lei Federal nº 4.199/2020), é um exemplo: o projeto de Lei propõe uma transferência do transporte hoje realizado em terra para o meio náutico e marítimo, mas não trata de questões ambientais, como os impactos que novas rotas teriam sobre o ecossistema marinho.
“A Lei BR do Mar é, para mim, uma loucura. Ela não diz como e onde vamos criar novos portos, como será a feita a infraestrutura para aumentar esses novos tráfegos, onde eles serão permitidos ou se haverá rotas específicas em épocas de migração de certos animais, como as baleias. Tem que haver algum tipo de compatibilização com isso, mas não tem nada, o tema do meio ambiente não é tratado no projeto”, explica a pesquisadora Ana Paula Prates, do JBRJ. “Acredito que se a gente já tivesse uma Lei do Mar, esse tipo de questão seria resolvida”, complementa.
Garantia de participação
Além de funcionar como marco regulatório, a Lei do Mar traz outro aspecto importante que hoje não está incorporado no processo de gestão dos ambientes marinho-costeiros do Brasil: a garantia da participação social.
Atualmente, as tentativas existentes de Planejamento Espacial Marinho são feitas pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), formada por diferentes Ministérios e pela Marinha. A esta comissão, cabe realizar “o planejamento, a coordenação e a condução das atividades dos diferentes atores que possuem legítimos interesses ligados ao mar”, diz decreto federal de novembro de 2020.
Segundo Leandra Gonçalves, professora da UNIFESP, a centralização do planejamento dos usos de mais de 3,5 milhões de km² somente em instâncias governamentais é um retrocesso.
“Hoje o mundo discute governança e é quase um conceito consolidado a importância da participação social, da participação dos outros atores. E não estou falando só do pescador, mas também das empresas, das indústrias que operam no mar, da ciência”, diz. “A Lei do mar exige que seja conduzido um processo de Planejamento Espacial Marinho público, transparente, com participação social. Esse é um grande avanço: transparência”, explica Leandra.
Nas áreas mais longínquas do mar brasileiro, a gestão é ainda mais centralizada: nem os governos dos estados e municípios participam. Segundo Alexander Turra, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), as decisões mais participativas sobre os usos dos recursos do mar estão restritas à zona costeira, que inclui a faixa terrestre e uma faixa marinha que se estende até as 12 milhas marítimas, equivalente ao mar territorial.
Para além dessa faixa, a competência para a tomada de decisões é exclusiva da administração federal. Estados, municípios e demais usuários dos recursos do mar ficam de fora das discussões, explica o pesquisador, que também é coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
“Me parece extremamente importante que [as decisões sobre] o que fazer e como fazer nessa área sigam as mesmas lógicas que estão amparadas na Constituição Nacional e no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, considerando uma abordagem participativa, dialética, estruturante e integrada, de forma que a sociedade como um todo possa fazer escolhas com a compreensão clara dos prós e contras e dos determinados tipos de caminhos que possam ser entendidos como portadores de futuro”, diz Turra. “A participação é a essência da Lei do Mar”, complementa.
Essa participação é esperada e almejada por diferentes usuários dos recursos do mar, entre eles, os pescadores artesanais. No Brasil, segundo as últimas estimativas do Governo Federal, ao menos 1 milhão de pessoas estão ligadas diretamente à atividade. O número, no entanto, é subestimado: não existem dados atualizados sobre a pesca artesanal no Brasil. O último levantamento oficial foi realizado em 2016.
“Os pescadores artesanais têm sofrido com a chegada de muitos grupos e empreendimentos e não existe um processo mínimo de consulta e escuta dessas comunidades. O texto do PL 6.969/2013 traz elementos que certamente podem contribuir e influenciar para que sejam retomados não só os espaços de discussão com a sociedade civil, mas também com a pesquisa, com a ciência. Penso que o PL enfatiza e fortalece essa perspectiva de ter dados que possam subsidiar os processos de decisão”, defende Ormezita Barbosa, diretora-executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores.
Mar brasileiro na Década do Oceano
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou esta década em que vivemos como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, com o objetivo de destacar a urgência na proteção do maior bioma do mundo.
Nos próximos dez anos, a ONU espera que seus países membros se empenhem na geração e divulgação do conhecimento e da cultura oceânica e fortaleçam a gestão sustentável de seus sistemas costeiro-marinhos.
A Lei do Mar poderia ajudar o Brasil a atender o que a ONU propõe com a Década do Oceano, e a criar um futuro mais sustentável para seus mares e para sua população. Mas, para isso, ela precisa ser aprovada.
Fonte: O Eco
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