Às vésperas de publicar seu livro sobre o alarmante problema do Feminicídio, a advogada Cynthia Mendonça diz em entrevista ao portal BrasilAmazoniaAgora que, “o número de feminicídios em 2020, certamente, é maior do que os indicadores revelam pois muitos casos são subnotificados em face de diferença nos protocolos para construção de indicadores ou inexistência de registros estatísticos oficiais, e outros nem chegam ao conhecimento da autoridade policial, ficando à margem de cifras ocultas.”. Para ela, é indispensável para as redes de apoio às mulheres a consolidação dos indicadores para subsidiar a análise dos fatores de causa e proposição de solução através de políticas públicas eficazes.
Confira o depoimento.
BrasilAmazôniaAgora: No ano passado, aparentemente em virtude do isolamento, os registros de feminicídio apontaram 1.350 casos. Como você interpreta este dado?
Cynthia Mendonça – O isolamento social causado pela pandemia do Covid fez com que muitos casais convivessem diuturnamente dentro de suas casas. O estresse gerado pelas restrições sanitárias, além dos aborrecimentos domésticos, potencializou estopins mais comuns da violência doméstica que são o álcool, as drogas, o ciúme, o desemprego, dentre outros. Muitos desses casais já vivem dentro de um ciclo de violência que culmina muitas vezes com o feminicídio. Os números refletem a vulnerabilidade das mulheres diante de seus agressores. Além disso, “o número de feminicídios em 2020, certamente, é maior do que os indicadores revelam pois muitos casos são subnotificados em face de diferença nos protocolos para construção de indicadores ou inexistência de registros estatísticos oficiais, e outros nem chegam ao conhecimento da autoridade policial, ficando à margem de cifras ocultas.”.
BAA: Segundo o Fórum de Segurança publica, ocorreu um feminicídio a cada seis horas e meia. Isso é uma questão jurídica, sociológica, educacional ou apenas um reflexo da violência reinante?
Cynthia Mendonça – A violência contra a mulher é um fator multicausal do qual o feminicídio é um dos seus reflexos. A violência contra a mulher é algo arraigado ao longo dos séculos por conta de uma sociedade machista, patriarcal, da qual a estrutura lógica, cultural e religiosa estabelecia que a mulher era um ser incapaz, cuja atribuições restringiam-se aos afazeres domésticos, maternos e obrigações conjugais. Essa concepção nos dias atuais, infelizmente, ainda não mudou muito pois ao mesmo tempo em que há um movimento para repelir o machismo estrutural, existe uma sociedade que considera atitudes machistas como “normais” e ainda fomenta a manutenção da mulher em uma posição de subordinação, isto é, ao mesmo tempo em que veicula uma campanha de combate à importunação sexual, veicula também uma campanha de cerveja em que uma mulher parece quase nua ao redor de muitos homens, ao mesmo tempo em que parte da sociedade diz não à violência contra as mulheres, essa mesma sociedade canta em alto e bom tom músicas que incitam a misoginia etc. Ademais, outro aspecto importante desse arquétipo machista que vigora até os dias atuais é a convicção de poder de muitos homens sobre as mulheres ao ponto de se sentirem donos, proprietários de seus corpos e de suas vidas. Esse convencimento faz com que muitos homens se sintam autorizados a ferir e a matar uma mulher, pelo simples fato da mulher querer ou fazer algo diferente do que eles querem (como desejar trabalhar fora de casa, desejar o divórcio, desejar usar uma roupa “decotada”, opinar sobre determinado assunto diante de amigos ou familiares, ou simplesmente usar um batom na boca), fazendo uso da força física e de todas as violências existentes para que seus “objetos” se mantenham submissas, subjugadas, dependentes e presas em um relacionamento tóxico.
BAA : Algumas estatísticas são curiosas, para dizer o mínimo. Houve um acréscimo de 0,7% comparado ao total de 2019. E 3, a cada quatro vítimas, tinham entre 19 e 44 anos. E maioria (61,8%) era negra. Que providências se impõem?
Cynthia Mendonça – O perfil das vítimas de feminicídios oficialmente registradas reflete um contexto em tempo e lugar específico. De modo geral, a vítima pode ser branca, negra, parda, amarela, rica ou pobre, deficiente ou não, hétero ou lésbica, letrada ou não; empregadas ou desempregadas etc. Vimos no RJ uma juíza morta pelo marido na frente das 3 filhas, concomitantemente ocorreu o mesmo com outras mulheres em outras cidades do país. É evidente que as mulheres num contexto de dependência financeira, de pouca escolaridade e em meio à pobreza ficam mais vulneráveis, mas toda mulher vítima de violência precisa de um suporte psicológico para internalizar que sofre um relacionamento tóxico. Depois um suporte jurídico para conhecer seus direitos e posteriormente um suporte para empoderamento financeiro e acolhimento dela e de seus filhos.
BAA: A impunidade, alcoolismo, o machismo, a crise econômica e o atraso cultural podem ser as principais causas?
Cynthia Mendonça – Essa violência, cuja razão é justificada por muitos homens como algo que saiu de seu controle por conta de ciúmes, bebidas ou rogas, está entre as maiores causas de assassinatos de mulheres. No entanto, a violência não advém de estopins que, na verdade, são meios para concretizar a violência contra a mulher, cujo fenômeno é histórico e social, construído e solidificado ao longo do tempo pela crença de posse chancelada pelo machismo originado do patriarcado.
BAA: Como OAB e a magistratura podem contribuir com o enfrentamento deste problema?
Cynthia Mendonça – A contribuição da OAB, por intermédio de suas comissões e advogadas, faz-se por meio das ações de conscientização, de propagação dos direitos que têm essas vítimas e do trabalho articulado com a rede de apoio e enfrentamento à violência contra a mulher, que na cidade de Manaus foi denominada REDE ROSA. A Justiça, em minha opinião, precisa discutir questões como o tratamento em audiências cujos casos envolvam questões de gênero, como a violência contra a mulher, com o fito de evitar situações como o da jovem Mariana Ferrer, por exemplo. Outras ações acerca da visão da mulher vítima de violência doméstica junto à Justiça perpassa por outros temas que necessitam um outro estudo mais aprofundado. São mulheres que apresentam total desconhecimento do procedimento nas audiências, mulheres que se sentem constrangidas no momento do pregão, mulheres que ficam intimidadas no trato com as autoridades, dentre outras situações sensíveis. De modo geral, é indispensável a consolidação e divulgação de estatísticas de feminicídio totalmente integrado com a rede de apoio e enfrentamento à violência contra a mulher, para subsidiar a análise dos fatores de causa e proposição de solução através de políticas públicas eficazes.
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