A lentidão na implementação do Código Florestal representa o desperdício de uma valiosa oportunidade de transformar o uso da terra no Brasil
O Código Florestal Brasileiro (Lei Federal no 12.651, de 2012) é um dos instrumentos de política pública ambiental mais relevantes da atualidade. A Lei foi adotada após um longo e intenso processo político, onde os resultados obtidos são fruto do entendimento possível entre os diversos setores envolvidos.
No entanto, ao completarmos uma década da promulgação do Código Florestal, sua efetiva implementação segue em compasso de espera. Em que pese diversos estados terem elaborado seus Programas de Regularização Ambiental (PRAs) e termos cerca de 6,5 milhões de imóveis rurais (mais de 98% dos imóveis rurais do país) registrados no Cadastro Ambiental Rural, os principais dispositivos previstos na Lei de Proteção da Vegetação Nativa – nome oficial do Código Florestal – permanecem no papel.
A efetiva implementação desta lei resultaria em uma melhoria significativa da governança relacionada ao uso do solo e em substanciais contribuições para a conservação da biodiversidade e para o armazenamento de carbono, colocando o setor produtivo agropecuário brasileiro na vanguarda da sustentabilidade mundial. Se integralmente implementado, o Código Florestal tem o potencial de conservar mais de 150 milhões de hectares de vegetação nativa no Brasil, responsáveis por armazenar cerca de 100 GtCO2.
A implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) ampliou a transparência e o potencial de aplicação da lei pelas agências governamentais. Entretanto, a utilização desta ferramenta tecnológica como instrumento eficiente de comando e controle em questões relacionadas ao uso do solo permanece muito aquém do seu pleno potencial, condicionada pelas pressões políticas e pelos interesses imediatistas de alguns segmentos do agro. Ao mesmo tempo, mecanismos inovadores de compensação ambiental, como as Cotas de Reserva Ambiental (CRAs)[1] e a consolidação de áreas em unidades de conservação, têm o potencial de tornar o cumprimento da lei mais fácil e menos oneroso, enquanto criariam as condições de remuneração para a manutenção de vegetação nativa e fomentariam mercados ambientais. Mas, o fato é que mesmo os incentivos positivos para a conservação, que poderiam assegurar a valorização dos remanescentes de vegetação nativa, seguem sem implementação efetiva ou em escala.
O caso das CRAs é o melhor exemplo. Foi necessário esperar seis anos até que este mecanismo, previsto na lei de 2012, fosse regulamentado pelo Decreto Federal 9640, de dezembro de 2018. Transcorridos mais de três anos, sequer o módulo de requerimento para a emissão das CRAs foi disponibilizado no SISCAR, o sistema federal online pelo qual os mecanismos de cadastro e compensações deve operar.
A lentidão na implementação do Código Florestal representa o desperdício de uma valiosa oportunidade de transformar o uso da terra no Brasil. Adicionalmente, tendo em vista a enorme relevância desta lei para as medidas de combate às mudanças climáticas, sua não aplicação descredibiliza o país e compromete o cumprimento das metas nacionais assumidas no âmbito do Acordo de Paris.
A efetiva implementação do Código Florestal pode servir de base para um grande plano de desenvolvimento social e econômico do meio rural, transformando o paradigma de desenvolvimento sustentável e de baixo carbono. Vemos nessa oportunidade o potencial de se estabelecer uma nova vertente de desenvolvimento baseado na agroindústria, setor florestal e prestação de serviços, revitalizando a economia rural em nível nacional, criando empregos, e uma nova indústria de serviços ambientais – provendo um modelo de ‘green new deal’ brasileiro.
A implementação do Código carece de um esforço nacional para engajamento de diferentes atores, setores, ferramentas e instrumentos, que possibilitem suplantar os vários desafios identificados. Sem um esforço bem coordenado, com ações complementares e integradas, em nível nacional, é difícil imaginar que o código venha a ser cumprido em sua integridade, desperdiçando uma oportunidade e resultando em uma diluição de seu potencial benefício ambiental.
Onde estamos?
O primeiro passo para a implementação do Código, o registro das propriedades rurais no CAR, já foi regulamentado pelo Governo Federal, que criou o Sistema Nacional de CAR (SICAR). Nestes 10 anos que se passaram desde a edição do Código, o SICAR foi posto em funcionamento em todo o território nacional e a adesão ao sistema é maciça. Segundo o boletim mais recente do Serviço Florestal Brasileiro (fevereiro de 2022), há 6.503.840 imóveis registrados no CAR, somando 618.821.449 hectares de área cadastrada. Destes, 52% declararam passivos ambientais e solicitaram adesão ao PRA. Por outro lado, até o momento somente 18.771 imóveis cadastrados (menos de 0,3% do total) tiveram sua análise e validação concluídas.
O segundo passo lógico, no processo de cumprimento do Código, seria que proprietários rurais com passivos ambientais – déficit de cobertura florestal nas áreas de preservação permanente (APPs) e de Reserva Legal (RL) – aderissem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) de seu estado. Para possibilitar a implementação deste aspecto da Lei, o Governo Federal regulamentou o PRA, no que lhe cabia. Mas, como previsto na lei, o equacionamento dos passivos e o reconhecimento dos ativos ambientais dos imóveis rurais são atribuições dos governos estaduais, por meio dos PRAs. Uma década após a promulgação da lei, três estados sequer elaboraram seus programas (Alagoas, Rio Grande do Norte e Sergipe) e somente seis estados estão efetivamente implementando o PRA na sua jurisdição (Acre, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Rondônia), embora nenhum deles em estágio avançado.
Enquanto observamos os avanços mencionados acima, faltam ainda algumas regulamentações específicas e essenciais para a efetiva implementação da Lei. Em particular, é imprescindível que as Cotas de Reserva Ambiental (CRAs) sejam implementadas, assim como de outros incentivos econômicos para a implantação do Código Florestal. Desde janeiro de 2021 o Brasil conta com uma Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, instituída pela Lei Federal 14.119/2021. Este marco legal dialoga diretamente com um dos dispositivos previstos no Art. 41 do Código Florestal, mas sua implementação prática ainda carece de regulamentação e de uma decisão política de alocação de recursos e investimentos públicos necessários para dar escala às poucas iniciativas em curso atualmente.
A implementação das CRAs permitiria reconhecer os esforços de quem decidiu proteger a vegetação nativa acima dos requisitos mínimos legalmente exigidos. A ausência deste reconhecimento, combinada com a impunidade crônica dos vizinhos que seguem desmatando suas áreas, constitui um dos maiores desincentivos para a proteção florestal no país. A não emissão de CRAs só interessa aos que insistem em apresentar propostas no Congresso Nacional visando alterar o Código Florestal, a maior parte visando justamente reduzir ou eliminar as exigências de Reserva Legal. A tramitação de tais propostas pode prosperar enquanto não houver quem de fato seja recompensado pela proteção do patrimônio natural.
A falta de fiscalização e de cobrança pela implementação do Código Florestal é outro fator que mantém a demanda potencial por compensações reprimida. Houvesse maior empenho e efetividade dos órgãos de comando e controle, maiores e melhores seriam as oportunidades para valorização de imóveis com excedentes, gerando um mercado de ativos ambientais relevante. Mesmo que análises demonstrem que a área total de excedentes, com potencial para compensações via CRAs ou servidões ambientais, pode chegar a cinco vezes o déficit estimado (caso da Amazônia), a pressão da fiscalização certamente teria um impacto positivo na demanda por regularização ambiental via compensação.
O que fazer?
Há um consenso quanto ao Brasil ser uma potência agroambiental que se destaca globalmente, seja pelas suas dimensões, seja pelo seu vasto patrimônio natural e também pela pujança e eficiência do seu agronegócio. No entanto, a conciliação entre essas duas faces da mesma moeda – natureza e produção agropecuária –, como elas poderiam se combinar e se complementar no tabuleiro das paisagens rurais brasileiras, ainda carece de um plano estratégico de abrangência nacional. Um plano que, a partir do reconhecimento das funções estratégicas que as florestas e os demais ecossistemas brasileiros têm para o desenvolvimento do país, aponte caminhos e diretrizes que permitam superar barreiras, otimizar esforços e investimentos e potencializar as oportunidades.
Olhando para o futuro, a implementação plena do Código Florestal necessita que sejam desenvolvidas ações para a implementação dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs) estaduais e dos instrumentos econômicos e operacionais que contribuirão com o cumprimento da Lei. Ações de treinamento, fortalecimento de capacidades, difusão de informação sólida sobre o Código Florestal e seus instrumentos, e extensão agroambiental, são algumas das estratégias que precisam ser desenhadas e implementadas.
Este é o propósito do Plano Nacional Estratégico para Implementação do Código Florestal (PlanaFlor), que está sendo elaborado sob a coordenação de um consórcio de instituições constituído por BVRio, Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Conservation Strategy Fund (CSF-Brasil). Parte da visão de que a efetiva implementação do Código Florestal tem o potencial de fomentar a produção rural integrada à proteção e recuperação da cobertura vegetal, gerando trabalho, renda e impactos positivos para o meio ambiente, para o clima, para a economia e para a sociedade.
Outra estratégia de ampla abrangência e impacto com a qual a BVRio também está colaborando está sendo implementada no âmbito do Observatório do Código Florestal (OCF). Até 2026, nove dentre as mais de 30 entidades membros do OCF disponibilizarão para os órgãos de controle, em particular, e para a sociedade, de maneira geral, novas ferramentas que permitirão ampliar a capacidade social de monitorar e cobrar a implementação da lei. Soluções como as plataformas ‘Raio-X do CAR’ e ‘Termômetro do CAR’ darão transparência e visibilidade ao status de implementação. As peculiaridades da implementação do Código Florestal nos territórios de povos e comunidades tradicionais – que permanece como um desafio, sujeito a várias incógnitas – conta com um olhar atento dos membros do OCF. Da mesma forma, o monitoramento do engajamento do setor privado, especialmente os grandes players comerciais do agronegócio e as instituições financeiras com carteiras rurais de grande relevância, também está sendo abordado. Sobre este último, o Portal de Monitoramento do Código Florestal, sob responsabilidade da BVRio, traz um painel de indicadores baseado nas informações aportadas pelas empresas, além de um dashboard sobre a situação dos PRAs nos estados.
É preciso inserir as florestas e demais formas de vegetação do Brasil no centro das estratégias de desenvolvimento do país, tendo o Código Florestal como principal eixo normativo, e seus dispositivos como propulsores de um modelo de desenvolvimento sustentável, inclusivo e duradouro.
Acreditamos que os esforços mencionados podem contribuir para que o Código Florestal realize seu potencial de ser um instrumento capaz de conduzir a produção rural brasileira rumo à sustentabilidade, permitindo ao Brasil atingir sua meta de redução de gases de efeito estufa assumida na Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, enquanto prepara o país para um salto qualitativo em termos de gestão territorial, economia rural e produção agropecuária sustentável.
Notas
[1] Cotas de Reserva Ambiental (CRAs) são instrumentos criados pelo Código Florestal brasileiro para possibilitar a monetização da vegetação nativa protegida acima do mínimo exigido pela lei, permitindo também a compensação da obrigação de Reserva Legal em imóveis com déficit de vegetação.[2] Por exemplo, ver ‘Instrumentos Econômicos de Apoio à Implementação do Código Florestal – Relato do workshop no âmbito do Observatório do Código Florestal’, promovido em novembro de 2014, pag. 17, IPAM, 2015.
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