“Perdurou, nesta fábrica deletéria de valores e justificativa do vale-tudo, um segmento que se acha no direito de habitar e se movimentar sempre acima do bem e do mal. Seus interesses pessoais ou políticos sempre acima do bem comum, do exercício da cidadania. Às favas o interesse maior da coletividade.“
Wilson Périco
__________________
Somos parte de uma geração em que, nos filmes de bang-bang, o mocinho sempre ganhava no final. Isso exemplifica a base de toda civilização judaico-cristã, segundo a qual o Bem se sobrepõe ao Mal, que sempre se destrói. Em tempos idos, também, assistíamos a um desenho em que o “rabo balançava o cachorro”: o Scooby-Doo – ou seja, a lógica da ocasião, do vale qualquer coisa. No desenho, vemos uma sátira do absurdo. Entretanto, haveremos de concordar que, sutilmente, este absurdo começa a penetrar no quadro de valores de famílias desconstruídas. Pode-se entender isso como a naturalização do que alertava Hobbes, o filósofo inglês que dizia: o homem é o lobo do homem. Essa inversão virou banal em muitos ambientes de relacionamento onde, para explicar o ilícito, argumenta-se de que o mundo é dos sabidões. Não daqueles que cumprem suas atribuições e responsabilidades dentro dos códigos sociais dos direitos e do respeito.
Há um outro filme em que dois cientistas viajavam pelo Túnel do Tempo, e mudavam o futuro, ou seja, nessa ficção, não se conseguia manter os referenciais do passado! Um absurdo isso, concordam? A rigor, esta série funcionou como um escape para desviar a atenção das mudanças que começavam a ganhar velocidade nos anos 60. Nada como o pão e circo com roupagem tecnológica para uma lavagem cerebral. Que tal?
Em outro filme, no cinema, um imperador, Calígula, Caius Cesar, cria as próprias leis e opera a seu bel prazer segundo seus códigos de justiça. Nomeia cônsul de Roma seu cavalo Incitatus, banaliza sua relação incestuosa com as próprias irmãs, prioriza os ilícitos, decide que criminosos devem ser soltos e inocentes aprisionados, num ambiente de muitas orgias, violência e refinada arbitrariedade. Em outras palavras, dava sentido a seus “excrementos” – perdão pelo termo – e impunha à sociedade o papel de depósito de imundícies do poder desvairado. L’etat c’est moi, O estado, i.e, o poder constituído, sou eu.
Perdurou nesta fábrica deletéria de valores e justificativa do vale-tudo, um segmento que se acha no direito de habitar e se movimentar sempre acima do bem e do mal. Seus interesses pessoais ou políticos sempre acima do bem comum, do exercício da cidadania. Às favas o interesse maior da coletividade. Literalmente “Quero que o povo se exploda”, como rezava o jargão da TV, um veículo frequentemente instrumentalizado pelo poder, seja ele qual for, para “naturalizar” a comunicação sutilmente violenta que põe os absurdos em voga como se fosse o mais normal da História.
Um fato curioso e bem comum é o horizonte curto desses personagens, as referências populares de tudo que não presta. São verdades de curta duração para não dinamitar a consciência do cidadão. A construção das “verdades” supõe sempre criar expectativa e tensão para se instalar. “Não perca o próximo capítulo” O seriado Corrida maluca, traduzia bem isso. Nos episódios vários personagens disputavam uma “corrida” e alguns deles faziam qualquer coisa para vencer. Lembra do Dick Vigarista? Ele não tinha limites, ética ou obstáculo para seu vale tudo, vencer ou vencer. Isso, hoje, nos parece banal e familiar. Portanto, o outro, ou a alteridade social, pouco importa, vale tudo, a despeito ou por desacato aos códigos de conduta e aos expedientes legais e constitucionais. Daqui a pouco, se permanecemos ou nos limitamos a reclamões assustados, veremos um trabalho cinquentenário transformado, em capítulos iminentes dos destroços e o que é mais triste, disfarçado pela fumaça da arbitrariedade opressiva. A hora é de reagir com vigilância, resistência e cumplicidade cívica em todos os níveis e direções. Ou não?
Comentários