E entre uma festa e outra, da padroeira, Páscoa ou quaisquer desculpas ou formatos de sublimação, fui treinando o vatapá amazonense, fazendo de cobaias meus contemporâneos de clausura, sempre justificando a confraria com a profecia de Dona Amazonas: “meu filho, em SP você vai se deparar com um grande vazio, por isso, vatapá.”.
Alfredo Lopes
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Desembarquei em São Paulo aos 19 anos de idade, de mala e cuia em pleno 1972. Anos sombrios, inverno rigoroso e liberdades democráticas em estado de escassez. Fui à procura de qualificação acadêmica, filosófica e teológica para fins clericais. Na bagagem, muita saudade da família e das gororobas atávicas: tacacá, tapioca com castanha, bolo podre, pé-de-moleque, caldeirada de bodó, jaraqui com baião-de-dois, alguns dos itens que integram a representação afroindígena/nordestina de nossa orgia alimentar. Provavelmente por essa razão emergencial, aprendi rapidamente a cozinhar, ou seja, a improvisar soluções para a falta de habilidade e dos condimentos essenciais.
A munheca de Heráclito
Nunca anotei a tal receita, desde a primeira tradução, juntei memória e fotografia da emoção familiar para eternamente guardar. Por isso, se aqui me atrever a rascunhar, saibam todos que não convém levar ao pé da letra, nem da mesa, pois o passo-a-passo é cambaleante e jamais utiliza a mesma trama. Se no rio de Heráclito ninguém se banha duas vezes, o movimento da munheca na hora do mexe-mexe é a única e irrepetível fórmula de aferir os (des)acertos da fabricação. Pessoa que se oferece para ajudar – na tarefa de não parar de mexer para não desandar – preste bem atenção, é gente previamente credenciada a ganhar, se não me engano, a carteirinha de Cabano, herói da guerra da Amazônia, do Grão-Pará e Rio Negro, na primeira metade do Século XIX, quando o Brasil escravagista e latifundiário, quis aniquilar a Amazônia libertária e das pequenas propriedades comunais. Qualquer outra hora abro uma epígrafe para explicar.
“Importante dizer que o vatapá – pelo menos segundo meu pai – não autorizava ser mexido com qualquer “movimento da munheca”. Rezava a lenda, e a vastíssima coletânea de evidências científicas, que uma vez mexido no sentido horário, para sempre assim deveria ser! Ninguém poderia ter a audácia de experimentar saber o que aconteceria se mexesse o mesmo vatapá no sentido horário e anti-horário.”
Igor Lopes, filho de Alfredo
Ervas-do-Sertão
Com tempo, e à luz da paixão com que cozinhávamos em mutirão o dito-cujo, os argonautas dessa stultifera navis, ou seja, a nau dos insensatos, passaram a chamá-lo de vatapá alfredisíaco, certamente pela presença infalível de pimenta murupi com malagueta, misturada com mangarataia ralada, uma das 92 espécies de gengibre que aquecem a temperatura tropical. E foi na captura de portadores para o mercado negro de especiarias e mini-crustáceos salgados, o célebre tutóia, que fui descobrir as Casas do Norte da pauliceia, onde Deus e o Mundo Norte-Nordestinos estão representados por gastronomias alternativas.
Filho de bispo
Vivi anos felizes e abençoados no convívio do Instituto de Teologia de São Paulo, onde conheci Hilário Moser, hoje bispo emérito de Tubarão-SC, meu melhor diretor, mentor e amigo de longas prosas filoteológicas e existenciais. Hoje, assisto à Missa pelo Facebook deste padre que chamo de pai na fé, há quase meio século. Foi ali que comecei experimentar alquimias da Floresta no desvario paulistano. Tempos de oração, e de comunhão e degustação. E entre uma festa e outra, da padroeira, Páscoa ou quaisquer desculpas ou formatos de sublimação, fui treinando o vatapá amazonense, fazendo de cobaias meus contemporâneos de clausura, sempre justificando a confraria com a profecia de Dona Amazonas: “meu filho, em SP você vai se deparar com um grande vazio, por isso, vatapá.”.
“Durante toda minha infância repetimos em datas comemorativas aquela que era não apenas nossa receita favorita e um desafio culinário, mas sobretudo fruto de indignação de não ser a favorita também de todas as outras pessoas dotadas de paladar.”
Igor Lopes, filho de Alfredo
Liturgia da manguaça
Dependendo do domicílio que nos acolhia, iniciávamos, com Mário Sérgio Cortella e Cleide Rita, a liturgia com uma caipirinha: além do limão, mel, gelo picado e cachaça, mangarataia ralada, o lendário gengibre, que ajuda a manter o foco e estimula as combinações. Como se trata de uma produção coletiva é importante alegrar a moçada e excitar a sensação de pertencimento e protagonismo da celebração. A primeira vez que, instado a dar a receita, abri exceção para um clérigo salesiano, vindo de Salerno, que me pediu a lista de insumos de preparação. No meio da festa ele perguntou: “…quando devo aggiungere la bevanda?” Em que momento se adiciona a cachaça. Ao que esclareci: “vatapa inizia con una caipirinha altrimenti non fai un buon vatapá”: Vatapá tem que começar com uma caipirinha senão não se faz um bom vatapá.
Anote alguns ingredientes…
Eis a sugestão básica de ingredientes da façanha para 20 pessoas: 20 pães franceses amanhecidos, 5 cebolas médias, 6 tomates bem maduros, três pimentões pequenos; verde, amarelo e vermelho, 1 cabeça de alho, 1 maço de cheiro verde (coentro, salsinha e cebolinha), 2 unidades leite de coco de 400 ml, uma boa quantidade de azeite extra virgem e um vidrinho do de dendê, no final. Não esquecendo, claro, de uns 300g de camarão seco, pequeno, e salgado; além de uns 2 kgs de camarão rosa, ou qual você achar melhor.
Utopias e ideologias
Por absoluta incompatibilidade de utopias e ideologias com o manda chuva da organização clerical – os Salesianos – onde me inseri desde os 11 anos de idade, precisei deixar a Santa Madre e meus convivas na produção secreta do bendito manjar. Foi uma separação doida e doída, pois entrei de gaiato na catraia da política participando de reuniões clandestinas e precisava optar. Doída porque, entre aulas e orações, convivência fraterna e comportadas badernas, vivia o ambiente mais feliz na frenética fase juvenil, trabalhando na biblioteca, ajudando na jardinagem e mapeando na vizinhança na casa de que viúva, do Alto da Lapa, poderíamos cozinhar…
Criando o clima
1. O feitio do Vatapá supõe a combinação prévia de tarefas entre os convidados. Nunca existiu na minha vida um vatapá que não fosse na primeira do plural.
2. Malu começa picando o pão, colocando numa vasilha para amolecer com água e leite de coco, para preparar a massa a ser processado no liquidificador.
3. Arthur começa a cortar em cubinhos, cebola, tomate, pimentão e amassar com ajuda de Barbara e Igor todo o alho, reservando 5% do alho e cebola para o arroz, opcionalmente, com brócolis para quem gosta e para refogar o camarão.
4. Picar o cheiro verde é tarefa para Cristy Ellen. E como Lúcio Flavio faz questão, pode incluir pequena porção de tomilho e orégano (alguns preferem o alecrim), e 30 grs de gengibre ralado.
5. O camarão rosa deve ser temperado apenas com pimenta do reino, sal, azeite, raspas e suco de limão.
6. Se todos concordarem, duas pimentas podem ser refogadas juntas ao rito inicial. Caso contrário, vejam indicações no final.
Como sempre me proibi de deixar a peteca cair, fui trabalhar de revisor no Estadão, dar aulas em escolas particulares da Lapa, São Bernardo e Santo Amaro, até ser chamado para dar aulas de Filosofia e Teologia na PUC-SP. Um sonho e um tirocínio que superou todas as expectativas e provações. O chanceler da universidade era Paulo Evaristo Arns, o cardeal da resistência, com quem trabalhei por ter sido escolhido no Departamento de Ciências da Religião, onde dava aula de Filosofia e Teologia, como coordenador. Tinha apenas 26 anos e muitas obviedades da existência para descobrir ou entender e vacilos que deveria conter…
A preparação propriamente dita:
7. Numa panela de 10 litros, fundo anti-aderente, refogue com bom azeite os ingredientes começando pela cebola. Espere ela murchar e começar a dourar para colocar o alho. Dourada a cebola, ponha os camarões, que foram previamente dessalgados, através de duas fervuras. Aos poucos, acrescente pimentões e tomates picados. Registre com fotos as cores da delícia iminente.
8. Nesse instante, a massa (pão picado, leite de coco e água) já deve estar processada, aguardando misturar-se com o refogado dos ingredientes. Com fogo médio, depois que começa a refoga, conte 30 min e acrescente a massa. E aí, começa a dança circular uniforme do mexe-mexe do panelão, o decisivo adensamento em mutirão, do qual só devem participar pessoas de “bem com a vida, sobretudo quando repartidas”.
9. Com boa música que não atrapalhe a confraria e as estórias mescladas com fantasias, gastronomias, xaxados, Noel Rosa, blues, calypso e velhas toadas, “…nesse vai e vem a vida se dá bem e a gente se embaralha…”, parodiando Moraes Moreira, surgem lembranças de ocasião: algumas gotas de limão, se o camarão ficar com aroma acentuado, os galhos de alecrim ou tomilho, quem gostar de orégano, perfume e benefícios, não é proibido umas pitadas, antes de experimentar o sal e a pimenta para os finalmente. Tudo a gosto da freguesia.
“Você se meteu numa encren
10. Pimenta é um caso à parte. Em princípio, meio e fim, pimenta e vatapá são identidades inseparáveis. Por isso, para a porção planejada, por isso, em caso de incompatibilidade de algum ator, faça-se um caloroso molho à parte.
“Você se meteu num encrenca…”
Numa das celebrações históricas – logo após deixar o Clero – sempre movidas a vatapá, reuni quatro amigas bem próximas que não se conheciam pessoalmente, mas que cada uma sabia das demais, de seus hábitos, características e virtudes. Carente e inexperiente, jamais imaginei que poderia ser desastroso reuni-las sem antes saber das expectativas e intenções. Eu era apenas um rapaz que quis ser padre salesiano, sem eira, nem beira, mas com muita vontade de cavucar a descobertas de novos afetos… Edgar Armando, sábio e atento, quando viu quatro pratos em minha direção, pediu calma aquelas a quem chamava de amigas, muy amigas, e me puxou de lado em direção ao banheiro. “Alfredo você se meteu numa encrenca federal”. Estávamos na casa de uma delas. E o jeito era ir embora: “…prende a respiração o máximo que puder e sai do banheiro forçando a respiração, o resto deixa comigo”. Que papelão, Alfredão!!!
Caminhando para o final…
Então, 30 minutos após a mistura da refoga com a massa fatal, e o incessante mexe-mexe de bem com a vida, um sinal de que começa a se aproximar o ponto vital são as bolhas da fervura. Quando elas aparecem, marque a hora de apagar o fogo (sempre no médio alto) 20 min depois, quando o mexe-mexe – sempre em sentido horário, por favor – deixar vermelhas de suaves queimaduras as mãos devotadas do intrépido mutirão. De vez em quando, convém verificar sal, pimenta e a se a massa ainda está crua. Tudo controlado, fogo apagado, acrescente 200 ml de dendê. Não ferva o azeite. Misture demoradamente.
Filhos da PUC
Quando enfim ingressei na PUC-SP, e começamos a fazer o calendário anual de 12 vatapás, em sessões calorosas, no sentido literal e emocional do termo, fomos todos nós, filhos da PUC, nos qualificando para implantar uma cultura gastronômica amazônica no vazio desvairado do aconchego paulistano. E foi nesse contexto, sempre trabalhando com Mário Sérgio Cortella, irmão e amigo de jornadas e pernadas, desde a graduação, inserimos novidades criativas a cada conferência gastroacadêmica para celebrar a floresta que habita em cada um de nós. Assim, juntamos, Cleide Almeida, Terezinha e Fernando Rios, Danilo Miranda, Alipio Casali, Fernando Almeida, Malu Guedes, Maristela André, Dulce Critelli, Roberto Benauro, a inesquecível Vera Casali, et alli… Certa vez, com Toninho Bastos, no tempo do Pé-pra-fora, saímos de uma esbórnia de sexta-feira em direção ao Ceasa para comprar camarão e improvisar um vatapá no dito cujo boteco, que servia incomparável feijoada. Era sábado, a concorrência foi parada dura, segundo Sérgio Bastos e “nossa” mãe, Dona Felicidade: que saudade!!! Também ali estavam os filhos da PUC, da Folha e do Estadão, para degustar o famigerado vatapá. Vai encarar, Tio Max, Jose Eduardo Nuin, Helena Lacreta, Ângelo Júnior, Silvio Barão, Edneia Goulart, por onde andará?
E ficou pronto…
Por fim, mexido o dendê sem ferver, meia porção do cheiro verde devidamente picado, se espalha no panelão que aguarda a outra metade para o refogado dos camarões, até que eles fiquem devidamente Rosados, quem nem a canção eterna de Pixinguinha para seduzir vícios e paixões. Se der tempo para decoração que ela seja resolvida pelo bem-aventurado mutirão. Para acompanhar, o arroz com brócolis, quem sabe um peixe tambaqui assado na folha da bananeira e uma salada de agrião… Até a próxima celebração.
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