“Entre o cianeto de Aristóteles e as contas da Receita”
Coluna Follow-Up
Artigo de Alfredo Lopes e André Ricardo Costa
O Brasil segue refém de uma falácia contábil transformada em dogma político. No Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT), a Receita Federal insiste em classificar a Zona Franca de Manaus como se fosse um rombo nas contas públicas. A régua usada é a mesma aplicada a subsídios financeiros, remissões e anistias, como se a Zona Franca não tivesse contrapartida econômica, social e ambiental.
Esse equívoco contamina governos estaduais e até o debate público, criando a narrativa de que o Amazonas “perde arrecadação” com a Zona Franca. Mas os números provam o contrário.
Dois mundos no mesmo demonstrativo
No DGT convivem dois mundos distintos:
• O mundo dos que pedem a informação, como manda a Constituição no §6º do art. 165, que exige das leis orçamentárias a demonstração do efeito das renúncias de receita. A Secretaria do Tesouro Nacional, em seus manuais contábeis, apenas disponibiliza formulários para registrar e publicar essas informações.
• O mundo das distorções, dominado pela Receita Federal, que assumiu deliberadamente uma premissa única: todo gasto tributário representa perda de arrecadação, um número negativo, sem admitir efeitos compensatórios ou ganhos indiretos.
Ou seja: se há isenção, a conta é automaticamente subtraída, sem considerar que, em muitos casos, a redução de alíquota pode aumentar a arrecadação de outros tributos ou expandir a base econômica.
A arbitrariedade metodológica
Esse é o ponto menos discutido e, ao mesmo tempo, o mais revelador: nem a Constituição nem os manuais da Secretaria do Tesouro Nacional definem como o número deve ser calculado. O que existe é apenas a obrigação formal de preencher tabelas e publicar demonstrativos.
A SEFAZ-AM, a Fazenda Estadual do Amazonas, do por exemplo, ao alegar que o Amazonas teria arrecadado R$ 16 bilhões a mais em ICMS sem os incentivos da Zona Franca, não está cumprindo uma regra metodológica imutável — está apenas preenchendo um quadro, com base em uma escolha arbitrária, e apresentando esse exercício de ficção como dado oficial.
A lei manda apresentar o efeito das renúncias, mas não diz que esse efeito é necessariamente negativo, tampouco exige que se trate de perda. Nada obriga o governo a assumir o contrafactual impossível de que a indústria permaneceria no Estado sem incentivos. Ao contrário, o que se faz é transformar um formulário em dogma e um número arbitrado em “verdade fiscal”. Essa operação confere aparência de neutralidade técnica a uma narrativa política, que iguala a Zona Franca a perdões bancários ou anistias setoriais sem contrapartida.

O caso da ZFM: quando a conta não fecha
No caso da Zona Franca, a distorção é ainda mais gritante. A indústria incentivada representa, há décadas, entre 40% e 50% da arrecadação tributária estadual. Em 2024, o Amazonas arrecadou R$ 15,5 bilhões em tributos, dos quais R$ 6,6 bilhões vieram apenas do ICMS do Polo Industrial de Manaus. Em 2025, já foram R$ 9,5 bilhões, com R$ 4,4 bilhões também vindos diretamente da indústria incentivada.
Mas, segundo as últimas leis orçamentárias estaduais, se não houvesse incentivos, o Estado teria arrecadado R$ 16 bilhões a mais. É a distorção levada ao paroxismo: atribuir ao incentivo a condição de “perda” quando, na prática, ele é a própria fonte de sustentação da arrecadação.
Em linguagem simples: sem os incentivos da ZFM, não haveria indústria para recolher ICMS, gerar empregos ou sustentar 30% da economia de toda a região Norte.
A falácia naturalista e o justo meio
Aqui cabe a lição aristotélica: o apelo à natureza é uma falácia. O cianeto é natural, mas letal. Dizer que a “vocação natural” do Amazonas seria o boi ou a soja é repetir o mesmo erro lógico da Receita, que mede a Zona Franca apenas pelo sinal negativo de um demonstrativo.
Aristóteles nos lembraria que a questão não é a natureza da renúncia, mas a finalidade (telos) que ela cumpre. A ZFM é um arranjo artificial — e justamente por isso é virtuoso. Garante floresta em pé, empregos formais e a permanência do Brasil como potência G1 em biodiversidade e credenciais climáticas.

A régua vesga dos bacanas
O DGT, tal como hoje é apresentado, virou uma régua dos bacanas: serve para nivelar por baixo políticas públicas que têm retorno concreto com privilégios que nada entregam em troca. Assim, o incentivo constitucional à Amazônia aparece ao lado de anistias bancárias ou favores setoriais que drenam recursos sem dar nada em contrapartida.
Essa equiparação desonesta é repetida em editoriais e análises, que tratam a ZFM como distorção de mercado. O que se esconde é a contrapartida gigantesca: bilhões de reais em tributos recolhidos, empregos mantidos e serviços ambientais garantidos.
E qual é a conta verdadeira
O debate não pode ser sequestrado pela narrativa fiscalista. Baseada em dados oficiais, a conta verdadeira da ZFM é esta:
• 47% da arrecadação tributária estadual vem da indústria incentivada.
• Mais de R$ 18 bilhões em tributos federais recolhidos pelas empresas em 2023.
Indução de 30% do PIB de toda região Norte.
• Serviços ambientais globais preservados, garantindo ao Brasil vantagem competitiva em um mundo que pune a devastação e monetiza a descarbonização.
A pergunta correta não é “quanto custa a ZFM?”, mas quanto o Brasil perderia sem ela.