Quando a barbárie se torna política pública, a história apenas confirma que violência gera violência
“A civilização não suprime a barbárie, apenas a aperfeiçoa.”
— Voltaire
Pesquisa mostra que 64% dos fluminenses aprovam a operação mais letal da história do Rio de Janeiro, com 121 mortos, mas a maioria se sente menos segura e teme retaliações. O Estado perde o controle do território enquanto a sociedade naturaliza a violência como instrumento de governo.
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Aprovação com medo
A megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, resultou na morte de 121 pessoas e foi aprovada por 64% dos entrevistados em pesquisa Genial/Quaest. Foi também a mais letal da história do estado.
Paradoxalmente, o mesmo levantamento revela que 52% da população se sente menos segura após a ação, e 74% teme retaliações do tráfico. O dado revela uma contradição essencial da sociedade brasileira: quanto mais a violência é exercida em nome da ordem, mais profunda se torna a sensação de desordem.
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A barbárie naturalizada
A aprovação majoritária de uma operação com alto custo humano reflete a naturalização da barbárie — quando a morte de dezenas de pessoas, inclusive inocentes, é vista como um “mal necessário”.
Segundo o diretor da Quaest, Felipe Nunes, o apoio é maior entre homens (79%) e na classe média (69%), grupos que tendem a enxergar na repressão uma restauração da autoridade perdida. Mas 62% reconhecem que o governo estadual não tem capacidade para combater o crime sozinho.
O dado ecoa uma advertência clássica da teoria política: o Estado, que deveria deter o monopólio legítimo da força, começa a perdê-lo para facções que exercem, na prática, o poder armado e o controle territorial.
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O Estado sitiado
O levantamento é contundente: 87% dos fluminenses acreditam que o Rio vive uma situação de guerra. A retórica bélica se impõe como norma política e midiática. A “guerra ao tráfico” se consolidou como uma narrativa permanente de exceção, na qual o uso desmedido da força se torna a medida da legitimidade.
A pesquisa mostra ainda que 31% apontam o governo federal e 28% o Exército como as instituições mais aptas a enfrentar o crime. Isso revela algo mais profundo: a militarização das expectativas sociais — quando o cidadão deposita na guerra o sonho da paz.
O risco, aqui, é o deslocamento simbólico do poder civil para a esfera militar, um terreno fértil para a erosão da democracia.
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Violência que gera violência
Mesmo com o recorde de 118 armas apreendidas, incluindo 19 fuzis, a sensação predominante é a de que o crime segue mais preparado que o Estado. A operação foi considerada um “sucesso” por 58%, mas o próprio sucesso é ambíguo: o Estado celebra a quantidade de mortos, não a redução da violência. Enquanto isso, a sociedade aplaude a barbárie e chama de “segurança” o medo disciplinado.
A frase “violência gera violência” deixa de ser um apelo moral e se torna um diagnóstico estrutural. O Estado violento produz cidadãos amedrontados, e o medo — em vez de conter a violência — a legitima e a perpetua.
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A lógica da guerra sem fim
A guerra às drogas é o fracasso que se repete em nome da esperança. Cada operação, cada chacina, cada corpo exposto em praça pública é transformado em um espetáculo de poder e punição. E, ainda assim, 73% dos entrevistados defendem mais operações semelhantes, mesmo reconhecendo que o medo aumentou. Essa é a lógica da guerra sem fim: quanto mais o Estado mata, mais o crime sobrevive.
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Epílogo — O espelho quebrado do Estado
A sociedade brasileira parece presa a um ciclo de autodestruição em que o desejo de segurança alimenta a insegurança, e a esperança se converte em medo. O poder público já não disputa apenas o controle do território físico, mas também o imaginário social — a quem pertence o medo, a quem pertence a força.
Enquanto a política pública for regida pela lógica da vingança, e não pela justiça; enquanto o inimigo interno continuar sendo o próprio cidadão pobre e periférico, o Brasil seguirá confundindo poder com violência e segurança com guerra.
Fonte de dados: Pesquisa Genial/Quaest, divulgada em 28 de outubro de 2025, com 1.500 entrevistas em 40 municípios do Rio de Janeiro. Margem de erro: 3 pontos percentuais. Nível de confiança: 95%