Um grande esforço de pesquisa em áreas como ciências ambientais, da Terra e engenharias tem sido despendido, nas últimas décadas, em busca de soluções sustentáveis capazes de mitigar os impactos socioambientais das mudanças climáticas globais. O aumento da frota de carros elétricos e o aprimoramento de sistemas agroflorestais são exemplos de estratégias para reduzir a emissão de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2). O enfrentamento desse desafio, porém, não se restringe às ciências naturais e físicas. Mais recentemente, contribuições das ciências sociais e humanidades vêm ganhando destaque ao oferecer interpretações sobre comportamentos sociais que influenciam o clima e propor saídas para a adaptação às mudanças ambientais.
“O desenvolvimento de tecnologias não é suficiente para combater os efeitos do aquecimento global”, disse a Pesquisa FAPESP o cientista social norte-americano Benjamin Sovacool, professor de política energética da Universidade de Sussex, no Reino Unido. De acordo com ele, o agravamento das mudanças climáticas se revela um panorama difícil de ser encarado sem a ajuda de pesquisadores das áreas sociais dedicados, por exemplo, a estudar formas de transição para uma sociedade sustentável levando em consideração diferenças entre sistemas sociais, políticos e econômicos. Ele explica que o custo de tecnologias como painéis solares e geradores de energia eólica vem caindo rapidamente graças à expansão da produção, com economias de escala, e melhorias incrementais, o que não significa necessariamente que seus benefícios sejam difundidos em larga escala no mundo.
Ainda que parte da população mundial não tenha acesso a serviços e soluções resultantes de pesquisas, isso não quer dizer que não saibam como lidar com os efeitos das mudanças climáticas. Um dos papéis mais destacados das ciências sociais na pesquisa ambiental é analisar iniciativas locais e regionais de conservação e uso sustentável da terra colocadas em prática em várias partes do planeta – e que podem ser difundidas globalmente. “Uma das questões mais urgentes, hoje, é como fazer as pessoas agirem com base no conhecimento já estabelecido em comunidades tradicionais”, comenta Sovacool.
As implicações sociais e humanas da questão climática são reveladas por áreas como sociologia e antropologia, que conseguem travar diálogo com atores sociais que ao mesmo tempo degradam o ambiente e sofrem as consequências desse processo, avalia a socióloga Lúcia da Costa Ferreira, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp). Ela tem investigado o impacto do garimpo de ouro em pequena escala na Amazônia e no Centro-Oeste brasileiros – uma atividade que utiliza mercúrio no processo de extração, contaminando solos e rios. De acordo com a pesquisadora, o garimpo é a principal fonte de renda para muitas famílias que vivem em regiões afetadas pela pobreza e pela desigualdade social. “As relações sociais envolvidas na mineração são complexas e merecem ser conhecidas.”
A investigação tem mostrado que a extração artesanal do ouro pode ser menos predatória quando os garimpeiros conseguem se organizar e negociar melhores condições de trabalho com os donos dos garimpos. Em Mato Grosso, por exemplo, há cooperativas de mineradores implementando métodos menos poluentes, diminuindo os efeitos nocivos sobre a saúde e o ambiente. “Ao identificar e estudar casos bem-sucedidos no âmbito local, é possível potencializar o alcance dessas experiências e subsidiar futuras políticas públicas”, diz Ferreira, que lidera o projeto há um ano com apoio da FAPESP em convênio com o Belmont Forum, grupo formado por 27 órgãos de diversos países que financia pesquisas em mudanças climáticas.
Interesse recente
As mudanças climáticas se tornaram objeto de estudos nas ciências sociais há aproximadamente 30 anos: a consolidação do interesse internacional pelos problemas socioambientais ligados às alterações do clima só ocorreu em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Rio-92, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). “Antes disso, na década de 1980, as grandes questões ambientais eram poluição do ar, redução da camada de ozônio e desmatamento, assuntos até então de interesse apenas das ciências naturais”, esclarece Sovacool.
O antropólogo brasileiro Eduardo Brondizio, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, lembra que nos anos 1970 vários esforços interdisciplinares buscavam entender as relações entre transformações sociais e ambientais a nível global, como o programa Man and Biosphere (MAB) da Unesco, que visava a integração de ciências naturais e sociais. “No início dos anos 1980, porém, houve um distanciamento entre as ciências naturais, que estudavam o funcionamento dos sistemas terrestres, e as ciências sociais, buscando entender um mundo em processo de globalização”, diz Brondizio. “Essas duas grandes áreas começaram a se unir progressivamente no final dos anos 1980, buscando entender a realidade humana por trás dos modelos climáticos; essa colaboração vem crescendo, apesar de lentamente, desde então.”
Nos últimos anos, ele explica, temas como uso do solo, adaptação, governança ambiental e políticas de preservação tornaram-se mais frequentes em linhas de pesquisa nas ciências sociais, formando pontes com as ciências naturais. “Hoje as ciências sociais estão envolvidas em uma rica diversidade de temas relacionados à questão climática, com estudos sociológicos analisando os relatórios e as plenárias do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] e investigando como narrativas climáticas impactam na política e na sociedade. Também se busca entender as respostas locais às alterações do clima”, diz Brondizio, um dos coordenadores do projeto Agents (acrônimo para Amazonian Governance to Enable Transformations to Sustainability), que reúne cientistas do Brasil, Estados Unidos, Holanda e Suécia e é voltado a entender como moradores da região amazônica desenvolvem projetos de sustentabilidade capazes de conciliar desenvolvimento econômico e conservação da biodiversidade. Brondizio lembra que o Agents conta com apoio da FAPESP para a equipe de pesquisadores da Unicamp que participa da iniciativa, sob coordenação da antropóloga Celia Futemma, do Nepam-Unicamp.
A equipe liderada por Brondizio tem documentado iniciativas locais no Vale do Acará, na região nordeste do Pará; no território entre os rios Tapajós, Xingu e Amazonas; e está iniciando trabalhos no entorno de Rio Branco, no Acre. De acordo com o antropólogo, já foram registradas mais de 200 iniciativas, que incluem arranjos produtivos locais, sistemas agroflorestais e governança ambiental. Ele destaca, ainda, projetos de recuperação de áreas de pastagem degradadas, agregação de valor a produtos madeireiros em microindústrias e produção de alimentos orgânicos, com vendas diretas aos consumidores.
Mitigação e adaptação
Mesmo que toda a emissão de dióxido de carbono (CO2) fosse totalmente cessada hoje, os eventos extremos atribuídos à mudança do clima continuariam acontecendo, explica o ecólogo Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), organização não governamental de Belém, no Pará. “Já emitimos carbono em demasia na atmosfera”, aponta. Por essa razão, diz ele, é fundamental investir na elaboração de estratégias de adaptação capazes de reduzir os impactos socioambientais e econômicos e preservar a qualidade de vida em ambientes em mutação – e tal empreitada, diz ele, exige o olhar das ciências sociais.
Ao participar de um estudo sobre manejo da pesca na Amazônia coordenado por colegas, Moutinho pôde observar como a proximidade com as comunidades ribeirinhas foi essencial para compreender a dimensão humana presente em ações de conservação. “Investigamos, em parceria com os pescadores, o manejo do pirarucu, uma espécie de alto valor comercial. Com eles, encontramos as formas de explorar os lagos sem exaurir o estoque de peixes”, conta. “Os pescadores utilizaram monitoramento de rádio em pirarucus e fizeram manejo do pescado em lagos de várzea em Santarém. E isso sem que alterassem seu modo de vida e seus valores comunitários de pesca.”
A maioria das pesquisas nas ciências naturais busca encontrar novas soluções tecnológicas para mitigar as mudanças climáticas. “O custo de tecnologias como painéis solares e geradores eólicos caiu consideravelmente nos últimos tempos, graças à expansão da produção, com economias de escala, e melhorias incrementais”, explica o cientista social norueguês Indra Overland, professor do Instituto Norueguês de Assuntos Internacionais (Nupi), com sede em Oslo.
Qualitativo x quantitativo
Uma marca da pesquisa nas ciências sociais é trabalhar com entrevistas e levantamentos etnográficos, que resultam, em boa parte dos casos, em estudos qualitativos. Embora utilizem métodos e planos de análise padronizados, tais pesquisas podem dar margem para a subjetividade, no sentido de que diferentes pesquisadores podem chegar a resultados distintos. “As agências de fomento, especialmente as públicas, priorizam projetos com objetivos claros e bem definidos e com rigor metodológico no tratamento dos dados. Estudos que utilizam modelagem matemática, por exemplo, fornecem dados que embasam levantamentos internacionais e podem ser comparados segundo múltiplos parâmetros”, explica Ferreira.
Overland e Sovacool sugerem que métodos quantitativos se tornem mais frequentes nas ciências sociais, sem perder de vista a natureza qualitativa da pesquisa – questão há muito debatida pelos pesquisadores da área. “Trata-se de melhorar a capacidade do pesquisador de conduzir e compreender revisões de literatura, identificar lacunas de pesquisa e formar equipes interdisciplinares”, escreveu Sovacool.
Para Brondizio, o desafio de entender problemas climáticos é complexo para todos os campos do conhecimento. “As ciências sociais são muito diversas e abarcam desde pesquisas mais interpretativas até modelagem computacional tão complexa quanto nas ciências naturais”, pontua. “Quando se fala nessa suposta dicotomia entre quantitativo versus qualitativo, é preciso tomar cuidado para não se taxar as ciências sociais como uma área menos rigorosa do que as outras. A complexidade e a subjetividade dos problemas sociais e climáticos das últimas décadas já quebraram essa dicotomia, porque as questões hoje são transversais.” Brondizio defende que, em suas chamadas para projetos, as agências de fomento valorizem as contribuições de cada área do conhecimento a fim de buscar soluções para problemas com variáveis climáticas, econômicas, políticas e culturais. “A colaboração entre as áreas precisa ser fortalecida a partir de programas de fomento integrados”, sugere.
Ter habilidade para trabalhar com grandes volumes de dados pode ser uma vantagem para atuar em grandes projetos interdisciplinares, aponta a bióloga Amanda Sousa Silvino, atualmente em estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual de Michigan, Estados Unidos. Ao pesquisar os impactos socioeconômicos da construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira, em Rondônia, ela utiliza conhecimentos que adquiriu na graduação em biologia – como estatística e análise de imagens – e no doutorado em ambiente e sociedade na Unicamp, onde aprendeu a trabalhar com métodos qualitativos, como etnografia. “A formação multidisciplinar me permite, hoje, coordenar uma equipe que tem condições tanto de interpretar imagens de satélite quanto de investigar o impacto social da construção de barragens”, comenta Silvino.
Financiamento
Em trabalho publicado em dezembro na revista Energy Research & Social Science, Sovacool e Overland apresentam dados indicando que o campo das ciências sociais recebe menos recursos para estudos sobre mudanças climáticas – a área fica com 5% de todo o financiamento. Em estudos sobre mitigação, a maioria das verbas vai para áreas como biologia, engenharia elétrica e ciências do clima.
O estudo de Overland e Sovacool mostra que, entre 1990 e 2018, cerca de US$ 4,6 bilhões foram gastos em pesquisas sobre mudanças climáticas nas ciências sociais – um montante significativamente inferior aos US$ 40 bilhões que foram para as ciências naturais e físicas no mesmo período. Os países que mais investiram em pesquisa sobre o clima foram Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, especialmente pelo fato de já serem grandes financiadores da ciência em geral. “Os que menos aplicam recursos em estudos climáticos nas ciências sociais são países que não têm tradição de pesquisa, como Guiné-Bissau, Guiana Francesa, Bolívia e Paraguai”, diz Overland.
Dentre as organizações que mais apoiam as ciências sociais em pesquisas ambientais, destacam-se a National Science Foundation (NSF), principal agência de apoio à pesquisa básica dos Estados Unidos, e a Comissão Europeia, cujo principal braço científico, o Conselho Europeu de Pesquisa (ERC), é responsável por apoiar projetos em temas da fronteira do conhecimento. Ao comentar o estudo, a filósofa Angela Liberatore, diretora de Ciências Sociais e Humanas do ERC, disse à revista inglesa Times Higher Education que 23% do orçamento anual do conselho, de € 2,2 bilhões, é destinado a projetos no âmbito das ciências sociais, muitos dos quais tratam de mudanças climáticas.
As instituições brasileiras que entraram no levantamento foram a FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Podemos dizer que o Brasil está no meio-termo entre os países de alto investimento nas ciências sociais voltadas para questões climáticas e os de pouco investimento”, diz Sovacool. Em 2018, na divisão de recursos da FAPESP por área do conhecimento, as ciências da vida ficaram com 47% do desembolso, as ciências exatas e da Terra e engenharias, com 33%, e as ciências humanas e sociais com 9% – os outros 11% foram destinados a pesquisas interdisciplinares.
No entanto, Overland faz uma ressalva. Para ele, não é o caso de tratar os cientistas sociais como “vítimas” das agências de fomento, já que os pesquisadores dessa área também são responsáveis por não conseguir mais recursos. “A maioria dos cientistas sociais não está preparada para lidar com o tema das mudanças climáticas”, diz ele. “Por exemplo, os principais periódicos de relações internacionais quase não dão importância às mudanças climáticas, um assunto evidentemente relevante para a diplomacia.”
A ressalva é corroborada por Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador adjunto da Diretoria Científica da FAPESP para as áreas de ciências humanas e sociais. “A disparidade dos recursos investidos pela FAPESP nas diferentes áreas”, diz ele, “não se deve a nenhum viés da agência. Nas linhas de auxílio à pesquisa são atendidas todas as solicitações cujo mérito científico tenha sido reconhecido na análise por pares, não havendo competição entre as áreas. O nó a ser desatado concerne não à oferta de recursos, mas, principalmente, ao incremento da demanda qualificada.”
por Bruno de Pierro
Fonte: FAPESP
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