O porquê precisamos do lockdown em Manaus

“O lockdown é uma medida necessária neste momento, e empresas e entidades religiosas que se manifestem contrarias a medida estarão prolongando a pandemia que afeta a saúde do povo amazonense, e também retardando a recuperação econômica do estado e do país.”

——Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside——

O Coronavírus (Sar-Cov-2), causador da COVID-19, tem se disseminado por todo o mundo, e umas das áreas mais críticas atualmente é a cidade de Manaus. Aqui abordamos e ressaltamos o colapso de saúde pública que Manaus enfrenta e que começa a se propagar pelo interior, afetando drasticamente toda a população, mais especialmente os povos indígenas, que vem sendo negligenciados. A medida mais eficaz para conter o espalhamento da doença é um “lockdown” (proibição de circulação exceto para comprar comida, etc.).

A cidade de Manaus atualmente enfrenta uma taxa de mortalidade 108% maior que as taxas históricas [1]. Um estudo realizado pelo Imperial College London estimou que tanto as taxas de contaminação como as mortes por COVID-19 estejam grosseiramente subestimadas no Brasil [2]. Manaus foi a primeira cidade do Brasil a enterrar os mortos por COVID-19 em valas comuns, sendo as altas taxas de mortalidade pelo vírus a causa do colapso do sistema funerário da cidade [3].

Para fins de comparação do tamanho do problema de saúde pública que o município enfrenta, Manaus tem metade da população do Amazonas, um estado que representa apenas 2% da população do Brasil, mas o Amazonas apresentou 8,4% das mortes pelo COVID-19 oficialmente reconhecidas pelo país até 07 de maio.

Neste drástico cenário, os povos indígenas têm uma vulnerabilidade ao COVID-19 maior que pessoas não indígenas, como alertamos em uma carta na revista Science [4,5]. Na cidade de Manaus, indígenas de diferentes etnias contraíram o COVID-19 e morreram [6]. Muitas vezes a contaminação ocorreu dentro do próprio hospital, quando estas pessoas tratavam de outras enfermidades, como aconteceu com indígenas das etnias Tikuna e Kokama [7].

O número de indígenas infectados pelo coronavírus é claramente grande, embora não existam estatísticas confiáveis, pois muitos indígenas que morrem na cidade são classificados como não indígenas em números oficiais [8], o que dificulta o traçar de políticas públicas que sejam efetivas para proteger os povos indígenas do COVID-19.

Indígenas no Amazonas denunciaram ao Ministério Publico que eles não estão conseguindo atendimento tanto pelo sistema de saúde municipal local, quanto pelo Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) no Alto Solimões [9]. Isto é um reflexo da pandemia que se alastra da capital para o interior, ampliando o colapso de saúde e vulnerabilizando os povos indígenas.

Embora as políticas públicas para conter a pandemia sejam claramente insuficientes, pressões vêm de múltiplos lados com a finalidade de relaxar o isolamento social. Um exemplo de uma política pública que em nada contribui para sanar os problemas de Manaus é a medida aprovada pela Assembleia Legislativa para reabertura de templos e igrejas, o que diminuirá o isolamento social [10].

O governo do Estado do Amazonas também indicou uma possível abertura do comércio no dia 14 de maio [11], indo contra todas as recomendações científicas para tornar mais rígido o isolamento social [4]. Para agravar a situação, duas associações comerciais, a CIEAM (Centro da Indústria do Estado do Amazonas) e FIEAM (Federação da Indústria do Estado do Amazonas), entraram com pedidos judiciais para barrar qualquer implementação de “lockdown” [12].

A cidade de Manaus precisa reverter imediatamente a abertura das igrejas, além de reverter decisões recentes reclassificando como “essenciais” atividades como salões de beleza, academias e construção civil. Em 12 de maio o prefeito de Manaus prolongou o fechamento de comércio “não essencial” até o final de maio, embora, por medo de não conseguir evitar distúrbios civis, ele é contra um “lockdown” [13].

A falta de um fechamento total, inclusive com “lockdown”, faz com que seja mais provável que a cidade enfrente um novo pico de casos de coronavírus. A falta de “lockdown” coloca toda a população de Manaus em risco e aumenta a disseminação do coronavírus para o interior onde existe ainda maior carência de assistência básica de saúde pública, além de uma maior fragilidade dos povos indígenas à pandemia.

O lockdown é uma medida necessária neste momento, e empresas e entidades religiosas que se manifestem contrarias a medida estarão prolongando a pandemia que afeta a saúde do povo amazonense, e também retardando a recuperação econômica do estado e do país.

Notas:
[1] G1-AM. 2020. AM registra recorde de mortes e casos confirmados de Covid-19 em um único dia; total chega a 8.109 infectados e 649 mortos. G1, 05 de maio de 2020.

[2] Bhatia S et al. 2020. Short-term forecasts of COVID-19 deaths in multiple countries. Imperial College London, 10 de maio de2020.

[3] Phillips, T. & F. Maisonnave. 2020. ‘Utter disaster’: Manaus fills mass graves as Covid-19 hits the Amazon. The Guardian, 30 de abril de 2020.

[4] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Protect Brazil’s Indigenous peoples from COVID-19. Science 368: 251. https://doi.org/10.1126/science.abc0073

[5] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Proteger os povos indígenas do COVID-19. Amazônia Real, 17 de abril de 2020.

[6] Farias, E. & E. da Costa. 2020. Coronavírus: Indígenas estão sendo infectados dentro das Casais no Amazonas e Roraima. Amazônia Real, 24 de abril de 2020.

[7] Ferrante, L. 2020. Comunicado pessoal, Fonte Liderança indígena Marcivania Sateré Maué.

[8] Farias, E. 2020. Coronavírus: Indígenas que vivem na cidade são classificados como “brancos” no Amazonas. Amazônia Real, 16 de abril de 2020. https://amazoniareal.com.br/coronavirus-indigenas-que-vivem-na-cidade-sao-classificados-como-brancos-no-amazonas/

[9] Amazonas Atual. 2020. Índios denunciam que são rejeitados em hospitais no interior do Amazonas. Amazonas Atual, 09 de maio de 2020.

[10] Amazonas Atual. 2020. Assembleia do Amazonas aprova projeto que reabre igrejas e templos na pandemia. Amazonas Atual, 06 de maio de 2020.

[11] Folhapress. 2020. Governador do Amazonas anuncia reabertura gradual do comércio em Manaus. Valor Econômico, 01 de maio de 2020.

[12] Juizo da 1° vara de fazenda pública da comarca de Manaus – AM. Processo Nº 0814463-25.2020.8.04.0001.

[13] BBC News-Brasil. 2020. Lockdown pode terminar em ‘tiro e morte’, diz prefeito de Manaus. BBC News-Brasil, 08 de maio de 2020.

Alfredo Lopes
Alfredo Lopes
Alfredo é consultor ambiental, filósofo, escritor e editor-geral do portal BrasilAmazôniaAgora

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