“Num país que a desinformação de alguns setores insiste em confundir renúncia com investimento, a Amazônia segue pagando a conta do preconceito fiscal travestido de um power-point caduco“
Coluna Follow-Up
Por Alfredo Lopes e André Ricardo Costa
O conceito de “gasto tributário”, criado para estimar o que o Estado deixaria de arrecadar com incentivos, tornou-se uma ferramenta de desinformação fiscal. Ao tratar o sucesso da Zona Franca de Manaus como prejuízo, o modelo contábil da Receita Federal distorce a realidade, ignora o impacto positivo sobre a arrecadação nacional e desconsidera o maior ativo ambiental do Brasil: os mais de 90% da floresta preservada no Amazonas.
A tentativa de legitimar o “Demonstrativo de Gastos Tributários” como medida de renúncia fiscal é uma das mais persistentes farsas econômicas do país. No caso da Amazônia, o erro é duplo: ignora a função constitucional da Zona Franca de Manaus como política de Estado e mascara sua contribuição concreta para a geração de riqueza, arrecadação e equilíbrio climático. A conta que o Brasil insiste em cobrar da ZFM é, na verdade, a conta que o próprio país se recusa a pagar pela proteção da floresta e pela justiça regional.
O nascimento de um equívoco
A origem dessa ficção remonta à Constituição de 1988, quando se determinou a criação do Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT), previsto no artigo 165. Todos os instrumentos do orçamento federal ficaram sob responsabilidade da Secretaria do Tesouro Nacional — menos o DGT.
Ele foi parar nas mãos da Receita Federal. E é aí que começa o problema: o Tesouro mede resultados e arrecadação; a Receita mede renúncia e suposta perda. Assim, o documento que deveria mostrar o impacto real dos incentivos se tornou um relatório de suspeitas.

Enquanto todos os relatórios orçamentários do país são públicos e acessíveis no ambiente do Tesouro, o DGT vive em recônditos da Receita, longe do escrutínio e da metodologia transparente. Os números ali divulgados divergem brutalmente de qualquer estudo independente.
Quando se observa com rigor técnico, o impacto fiscal da Zona Franca é muito menor do que o alardeado. Na verdade, seu peso é proporcional ao PIB do Amazonas dentro do conjunto nacional — coerente com seu papel constitucional de reduzir desigualdades regionais.
Um erro assumido, mas nunca corrigido
A própria Receita Federal já reconheceu, nas entrelinhas, as fragilidades do seu método. Mas essa admissão nunca chegou às manchetes. Ao contrário: as manchetes tomam o DGT como verdade absoluta. E o problema não atinge apenas a Zona Franca — o Simples Nacional também aparece como “vilão” nesse mesmo cálculo enviesado.
O que está em curso é uma legitimação gradual de um conceito errado. Um conceito que transforma política pública em culpa fiscal. O resultado é uma inversão de lógica: aquilo que deveria ser reconhecido como instrumento de equilíbrio regional passa a ser rotulado como privilégio.
O eco no Amazonas: o DGT estadual
A distorção se espalha. No Amazonas, também há um DGT estadual, elaborado pela Sefaz/AM, que sugere que a arrecadação de ICMS seria R$ 16 bilhões maior se não existisse a Zona Franca de Manaus — embora as fábricas do Polo Industrial de Manaus respondam por quase metade da arrecadação efetiva do Estado. É o paroxismo da incoerência: o modelo que sustenta a receita é apresentado como aquele que a suprime.
Mesmo citando o Tesouro Nacional como base, o DGT estadual segue o paradigma da Receita Federal. E o Tesouro, na prática, apenas fornece um formulário para preenchimento. O método e os parâmetros matemáticos continuam sendo ditados pela Receita — e ninguém revisa sua coerência.
A nova armadilha: a Dirbi
Agora, o enredo ganha um novo capítulo com a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária — a Dirbi. Sob o pretexto de “transparência”, a Receita transfere aos contribuintes o ônus de declarar o que antes ela mesma calculava.
O perigo é evidente: com a Reforma Tributária, que centraliza ICMS e ISS em um Comitê Gestor Nacional para o novo imposto IBS, nada impede que a Receita inclua também o IBS na Dirbi. Se isso ocorrer, o DGT nacional passará a incorporar valores fictícios como os R$ 16 bilhões declarados pela Sefaz/AM — e a farsa estará completa. Valor maior, conceito legitimado.
Um prato cheio para quem deseja desmontar a Zona Franca com base em planilhas ilusórias.
O verdadeiro gasto
O verdadeiro gasto, no entanto, é outro: seria abandonar o único modelo que conseguiu combinar legalidade, arrecadação e sustentabilidade na Amazônia. A Zona Franca de Manaus não é um custo — é uma política pública que devolve ao país, em impostos e empregos, muito mais do que recebe em incentivos.

A conta que o Brasil não quer ver
Desse ponto de vista, o erro estrutural dos gastos tributários não é técnico — é moral. É o erro de tratar o desenvolvimento regional como favor, e não como direito constitucional. Essa negação estratégica, disfarçada de contabilidade, tenta transformar uma conquista nacional em um privilégio regional.
Mas basta olhar os números reais — e os resultados concretos — para perceber o absurdo: a Zona Franca de Manaus gera cerca de 30% de toda a riqueza da Região Norte, sustenta um volume expressivo de arrecadação tributária no Norte e no Nordeste e, ainda assim, é o principal vetor de preservação ambiental do país.
Graças à sua existência, 97% da cobertura vegetal do Amazonas permanecem intactos, prestando serviços ambientais inestimáveis ao Brasil e ao planeta — serviços pelos quais ninguém paga, mas de que todos dependem.
Não há gasto tributário maior do que o de ignorar esse pacto civilizatório.
A ZFM não é uma exceção a ser corrigida — é uma solução a ser compreendida. E o Brasil, se quiser ser justo consigo mesmo, precisa reconhecer na Amazônia não um custo, mas um crédito moral, fiscal e climático.
Coluna Follow-Up é publicada pelo Jornal do Comércio do Amazonas, às quartas, quintas e sextas feiras, sob a responsabilidade do CIEAM e realizada pelo portal BrasilAmazôniaAgora
Alfredo Lopes é editor do portal BrasilAmazoniaAgora e André Ricardo Costa é professor da UFAM e doutorado pela FEA USP.