A Encruzilhada da Agricultura Brasileira: o alimento entre a cura e o envenenamento

A agricultura brasileira vive um dos momentos mais críticos de sua história recente. A matriz produtiva que durante décadas se apoiou em agrotóxicos de alta toxicidade começa a ser confrontada por uma ciência que avança em sentido oposto.

Pesquisadores, consumidores, órgãos reguladores e parte crescente do setor produtivo concordam em um ponto que já não admite retorno: a transição para insumos biológicos é inevitável se o país quiser manter competitividade, segurança alimentar e saúde pública.

A disputa aberta entre venenos sintéticos e bioativos de origem natural não é apenas técnica. É um conflito que envolve ética, soberania, mercado internacional e sobrevivência ambiental. O Brasil se vê pressionado a rever práticas que, embora sustentem produtividade recorde, geram impactos sanitários e ambientais cada vez mais difíceis de justificar.

Agricultura Brasileira
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Os bioinsumos, compostos por microrganismos que favorecem o crescimento das plantas ou combatem pragas de forma natural, deixaram de ser promessa para se tornar realidade. Hoje já movimentam 6,7 bilhões de reais por safra e alcançam 156 milhões de hectares, área que supera a extensão agrícola nacional porque muitos cultivos recebem aplicações sucessivas.

A explicação para esse avanço combina três fatores. O primeiro é a pressão dos consumidores por alimentos com menos resíduos tóxicos. O segundo é o agravamento das mudanças climáticas, que exige técnicas capazes de aumentar a resiliência dos cultivos a estresses hídricos e doenças. O terceiro é a inovação científica que, nas últimas duas décadas, colocou o Brasil entre os líderes mundiais em controle biológico.

A eficiência é competitiva. Estudo da Aprosoja/MS mostrou que tratar sementes ou combater fungos com bioinsumos custa apenas 1% a mais do que com insumos químicos convencionais. E essa diferença tende a cair conforme a escala aumenta.


A reportagem da Pesquisa FAPESP, dezembro de 2025, mostra como microrganismos da Caatinga e da Amazônia estão reconfigurando a agricultura nacional. Um exemplo emblemático é a descoberta do engenheiro-agrônomo Itamar Soares de Melo, da Embrapa Meio Ambiente. Ao estudar o mandacaru, encontrou uma bactéria capaz de proteger raízes da seca. A inovação originou o bioinsumo Auras, hoje aplicado em um milhão de hectares.

Outro produto, o Hydratus, nasceu da mesma lógica: observar a natureza, identificar mecanismos de resiliência e transformá-los em ferramentas agrícolas. O Brasil aparece, assim, como laboratório natural para soluções de estresse hídrico e pragas tropicais que desafiam a agricultura mundial.

Mais ao sul, pesquisadores da Esalq mostram que fungos como Beauveria, Metarhizium e Cordyceps não apenas eliminam pragas mas também estimulam a produção de hormônios vegetais, ativam defesas internas e ampliam a absorção de nutrientes. São seres microscópicos que fazem a ponte entre proteção e nutrição, oferecendo ao agricultor algo que insumos químicos jamais conseguiram entregar: sinergia ecológica.

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Durante muito tempo, pesquisadores pioneiros como Johanna Döbereiner foram ignorados. Hoje, multinacionais que antes produziam apenas moléculas sintéticas — entre elas Mosaic, Basf e Bayer — inauguram fábricas de bioinsumos no Brasil. Empresas especializadas, como Koppert, Biotrop e Agrivalle, disputam linhagens exclusivas de microrganismos. Investidores compram startups, como ocorreu na aquisição bilionária da Biotrop em 2023.

O mercado percebeu que o controle biológico já não é alternativa marginal. É peça central em uma indústria que busca reduzir custos, ampliar produtividade e atender às exigências do mercado europeu, mais rigoroso com resíduos químicos.


O avanço científico foi acompanhado pela Lei nº 15.070/2024, que criou regras específicas para os bioinsumos, tirando-os da categoria dos agrotóxicos. A nova legislação simplificou o registro, autorizou a produção on-farm e abriu caminho para a expansão de cooperativas agrícolas que produzem seus próprios insumos biológicos.

O governo federal ampliou o pacote com crédito do BNDES destinado à agricultura familiar. O Ministério da Agricultura, por sua vez, aprovou em janeiro 29 novos bioinsumos, reflexo direto do novo arcabouço regulatório.

Ainda assim, a agricultura brasileira mantém um paradoxo: enquanto tecnologias de ponta avançam, o país continua entre os maiores consumidores de agrotóxicos do planeta.


A permanência dos agrotóxicos de alta toxicidade tem preço elevado, embora muitas vezes invisível. Estudos da Anvisa, Fiocruz e universidades brasileiras mostram contaminação de alimentos e água, além de impactos neurológicos, endócrinos e imunológicos em populações expostas. Municípios com maior uso de pesticidas registram índices mais altos de câncer e doenças crônicas.

Essa realidade pressiona o Estado, o setor privado e a comunidade científica a tratarem de forma transparente os riscos associados a moléculas persistentes, tema que ainda enfrenta resistência em debates sobre segurança alimentar.


A Amazônia ocupa papel decisivo na transição agrícola. O bioma reúne uma diversidade microbiana que pode se converter em produtos de alto valor agregado. A coleta de bioativos realizada pela Embrapa antes da pandemia reforça esse potencial. Soluções contra fungos, bactérias e nematoides já se encontram em pesquisa avançada ou em fase de registro.

A floresta em pé se revela não apenas como a guardiã do clima, mas também como berço da agricultura regenerativa. Cada microrganismo descoberto é argumento adicional para frear o avanço da degradação.


Empresas internacionais cobram rastreabilidade, carbono neutro e limites rigorosos de resíduos. Países da União Europeia avaliam barreiras para produtos contaminados. Redes varejistas globais só negociam com fornecedores que adotam boas práticas ambientais.

O Brasil terá de escolher se deseja ser potência agroambiental ou exportador de riscos sanitários. A agricultura tóxica pode ser rápida e barata no curto prazo, mas compromete mercados, solo, saúde e reputação.

A agricultura biológica, embora ainda enfrente desafios, aponta um futuro mais seguro e compatível com as exigências internacionais.


A encruzilhada é profunda. A ciência brasileira já mostrou que microrganismos são capazes de substituir, complementar ou superar moléculas químicas. O mercado percebeu o potencial econômico. A legislação abriu espaço para inovação. O consumidor exige mudanças. E a biodiversidade oferece matéria-prima para uma agricultura regenerativa.

O Brasil precisa apenas decidir se quer que sua comida seja fator de cura ou de adoecimento. O alimento do futuro já está sendo desenhado nos laboratórios, nos campos experimentais e nos milhões de hectares que adotam soluções biológicas. Agora é a política pública que deve dizer se essa transformação será acelerada ou adiada.

A agricultura brasileira caminha para uma escolha que definirá não apenas sua competitividade global, mas a saúde de uma geração inteira.

Alfredo Lopes
Alfredo Lopes
Alfredo é consultor ambiental, filósofo, escritor e editor-geral do portal BrasilAmazôniaAgora

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