Pesquisadores da Unesp e do Cemaden alertam para um futuro preocupante na Amazônia, com condições secas e quentes tornando-se a norma até 2050 devido aos efeitos combinados do El Niño, La Niña e aquecimento global, aproximando a região de um ponto de não retorno que poderia transformar a floresta em cerrado.
Em 2023, a Amazônia enfrentou uma das secas mais severas já registradas. Os níveis dos rios caíram drasticamente, complicando a vida das comunidades ribeirinhas que dependem dessas vias para transporte de água, alimentos e outros insumos vitais. Além da seca, a região foi assolada por intensas ondas de calor. No lago Tefé, no dia 28 de setembro, a temperatura da água atingiu o extremo de 39,1 graus Celsius (ºC), resultando na morte de peixes e numerosos botos e tucuxis.
A necessidade de entender as causas de tais eventos extremos levou ao engajamento de uma rede internacional de pesquisadores, incluindo professores e alunos do Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais, uma colaboração entre o Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de São José dos Campos, e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). As análises indicam que os efeitos do calor e da seca na maior floresta tropical do mundo são uma manifestação das mudanças climáticas, tanto em escala local quanto global. Os resultados foram divulgados em um artigo de abril na revista científica Scientific Reports.
Sob a liderança do climatologista peruano Jhan-Carlo Espinoza, do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), o grupo de pesquisadores examinou dados hidrológicos do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos, gerido pela Agência Nacional de Águas e pelo Serviço Geológico do Brasil. Além disso, analisaram dados atmosféricos do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF) e informações de chuvas coletadas por estações meteorológicas e observações via satélite.
A influência do La Niña
O fenômeno La Niña deu início a um período de seca atípico no sul e sudoeste da floresta amazônica, onde se observou uma redução significativa das chuvas a partir de novembro de 2022. Tradicionalmente, essa época marca o começo da estação chuvosa na região, mas o esfriamento das águas na área equatorial do Oceano Pacífico interferiu nesse padrão climático.
Jhan-Carlo Espinoza, o climatologista responsável pela pesquisa, observa que a ocorrência repetida de La Niña tende a diminuir a umidade em todo o sul da América do Sul, particularmente nas áreas entre o sul do Brasil, o norte da Argentina e o Paraguai, levando a extensos períodos de seca. “No entanto, nos últimos anos, La Niña foi tão severo que a redução na precipitação se estendeu até a Amazônia boliviana, perto da fronteira com os estados brasileiros de Rondônia e Acre, e também aos Andes tropicais”, explica Espinoza, autor principal do artigo, que também conta com a colaboração de José Antônio Marengo, pesquisador e coordenador geral do Cemaden.
À medida que avançava o verão austral, de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023, o déficit de chuva nessas áreas se intensificou. Os ventos que sopram do Atlântico Tropical Norte são responsáveis por trazer a umidade para a bacia amazônica. “Este vapor de água condensa-se e precipita sobre a floresta”, explica o climatologista. Inicialmente, a água é absorvida pela vegetação e pelo solo, seguida por um processo chamado evapotranspiração, onde a água é evaporada do solo e as plantas transpiram, reciclando uma grande parte da umidade inicial de volta para a atmosfera e sustentando a pluviosidade sobre a floresta. “Esta interação sustenta um ciclo muito eficiente de reutilização da água”, afirma Espinoza.
No entanto, entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023, a umidade proveniente do Atlântico Tropical Norte concentrou-se mais ao norte na América do Sul, entre a Colômbia e a Guiana, não atingindo a Amazônia boliviana como era esperado. Este deslocamento de umidade foi um dos fatores que exacerbaram a seca, ampliando sua extensão e duração na região amazônica.
A intensificação do fenômeno
A crise hidrológica na Amazônia se agravou ainda mais entre abril e maio de 2023 com o surgimento do El Niño, caracterizado pelo aquecimento anormal das águas do Pacífico equatorial. Esse fenômeno ocorre quando os ventos alísios, que normalmente sopram de leste para oeste, enfraquecem e não conseguem deslocar a água mais quente, aquecida pela incidência solar, em direção à Ásia e Oceania. Com isso, a água mais quente permanece na região, evaporando em maior quantidade e gerando chuvas locais.
Durante condições normais, sem o El Niño, os ventos alísios transportam as águas quentes e superficiais do Pacífico Tropical americano em direção à Oceania, permitindo que as águas frias e mais profundas subam à superfície, num processo chamado ressurgência, que ocorre comumente perto da costa equatorial sul-americana.
No Brasil, o El Niño tipicamente aumenta a precipitação no Sul do país, mas provoca seca no Norte. Com a intensificação do El Niño ao longo de 2023, as regiões central e norte da floresta enfrentaram condições ainda mais secas e quentes do que o usual. “Com a redução das chuvas, os rios tributários do sul da bacia, já em níveis historicamente baixos para o período, enfrentaram maiores dificuldades para se recuperar”, esclarece Espinoza.
Os impactos dessa seca foram evidentes em todos os principais rios amazônicos, como o Negro, Solimões, Purus, Juruá e Madeira. De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, o nível do rio Negro chegou a baixar até 20 centímetros por dia entre agosto e início de setembro, uma taxa duas vezes maior que em 2022, embora inferior às grandes secas de 2005 e 2010.
O aquecimento global também exacerbou os efeitos da seca, aumentando as temperaturas e reduzindo a disponibilidade hídrica essencial para a sobrevivência da floresta e seu ecossistema. Além disso, o desmatamento e a degradação florestal agravaram a situação. “A floresta desempenha um papel crucial na formação de nuvens de chuva através da evapotranspiração das árvores, de modo que a redução da cobertura florestal e o declínio na saúde da vegetação podem levar a uma queda nas precipitações”, afirma o engenheiro ambiental João Vitor Marinho Ribeiro, doutorando no Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais e coautor do artigo publicado na Scientific Reports.
Futuro da floresta e estratégias de adaptação
Embora o artigo recente não projete cenários futuros específicos, a análise sugere uma tendência preocupante de crescimento das condições de seca e calor na Amazônia, apontando para um possível novo normal climático por volta de 2050. “O artigo não chega a fazer prospecções de cenários futuros. Porém, lamentavelmente, se esses dois fatores não forem controlados, a tendência é que tendam a crescer com o tempo. E muitas publicações que analisam cenários futuros sugerem que as condições mais secas e mais quentes, por volta do ano 2050, se tornem algo normal na Amazônia”, menciona Espinoza.
Este cenário é ainda mais alarmante considerando que o bioma já perdeu cerca de 18% de sua cobertura florestal, aproximando-se de um “ponto de não retorno” que poderia desencadear um colapso parcial ou total da floresta, intensificando o aquecimento global. O processo de savanização, onde partes significativas da floresta poderiam se transformar em áreas degradadas ou cerrado, é uma consequência direta do avanço das condições de seca e calor.
“O crescimento das condições secas e de calor vão levar a floresta até o chamado tipping point, ou ponto de não retorno, em que se inicia a savanização. E isso teria implicações muito sérias. A floresta amazônica tem funções muito importantes em umedecer a atmosfera e modular a circulação atmosférica. Sem ela, o clima vai mudar, e o resultado será, por sua vez, uma piora das secas, num processo que se retroalimenta”
explica Espinoza.
João Vitor Marinho Ribeiro, um estudioso dos desastres naturais e aluno do doutorado no Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais, reflete sobre a complexidade de avaliar os impactos de eventos como as secas na Amazônia. “Num episódio de seca dessa magnitude, é possível indagarmos de que forma determinar o momento em que os impactos começaram a ocorrer, e também, quando se pode dizer que terão cessado. Afinal, não é porque deixamos de ler notícias sobre esses efeitos que isso seja garantia de que terminaram”, avalia. Ele também destaca a amplitude dos efeitos desses eventos, que afetam as dimensões econômicas, sociais e ambientais de maneiras diversas e profundas.
Além disso, Ribeiro enfatiza a importância de discutir e implementar estratégias que não apenas mitiguem as mudanças climáticas, mas que também preparem a sociedade para se adaptar a esses novos desafios. “É muito importante discutirmos estratégias de mitigação das mudanças climáticas e de combate ao efeito estufa. Mas, uma vez que eventos como estas secas poderão se tornar mais frequentes, fica patente a urgência de investimento em formas que permitam adaptar nossa sociedade a esse novo cenário. E ainda se fala pouco sobre este aspecto da adaptação”, conclui Ribeiro.
Com informações do Jornal Unesp
Comentários