É preciso repensar o modelo de administração adotado na vazão das represas, que ao longo do tempo foram sendo apropriados por setores da iniciativa privada
“O que nós estamos fazendo para o futuro de nossos filhos e das outras espécies do planeta é uma questão moral clara.”
– James Hansen, climatologista
A Organização Meteorológica Internacional acaba de divulgar relatório afirmando que a gestão hídrica tem sido fragmentada e inadequada. Nenhuma novidade sobre a crise hídrica que se abate sobre o Brasil. Se mergulharmos em seus determinantes, encontraremos uma crise anunciada.
Ao longo de décadas os alertas de especialistas e de ONGs ressoaram insistentemente nos meios de comunicação. Em 1994 a Campanha “Billings, eu te quero Viva!”, em protesto contra a ineficácia do projeto de despoluição do rio Tietê financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), apresentou em Washington um duro prognóstico de blecaute hídrico para a região metropolitana de São Paulo, baseado na projeção da degradação sem controle de suas áreas de mananciais.
A destruição das áreas de recarga dos mananciais e matas ciliares levou progressivamente os reservatórios de água da metrópole de São Paulo a perder capacidade de produção hídrica e de armazenagem de água, frente a um contínuo processo de assoreamento e de impactos da poluição. De outro lado, na região Norte, continuou a devastação da floresta amazônica e da gigantesca bomba natural de transposição de umidade continental, um ecossistema vital que transporta umidade e provê chuvas para uma imensa área territorial.
A degradação não cessou com as denúncias da devastação, nem mesmo diante do reconhecimento pelas Nações Unidas da água como um direito humano fundamental. Tampouco cessou quando a crise hídrica se abateu sobre o Sudeste do Brasil em 2015 – desnudando informações de que a perda contínua de nível dos reservatórios era gradativa e estrutural, ano após ano. Portanto, não poderia ser considerado um evento climático esporádico, como uma seca eventual e passageira, ou como simples repetição recorrente em uma série histórica.
Ao longo do tempo os fatos desnudaram também uma governança insuficiente para a gestão da água, que não conseguiu tratar de questões mais estruturais, voltadas à sustentabilidade ecossistêmica, agindo apenas de forma pontual para manter o fluxo do abastecimento. Durante as audiências e debates públicos realizados em 2015, tornou-se evidente que proteção da água dependeria de um outro modelo de governança, mais efetivo, que não poderia prescindir de ampla participação social na construção de políticas públicas onde o povo, usuário final e o grande detentor dos direitos sobre a água, participasse diretamente de sua gestão.
Ao mesmo tempo, a ciência reconhecia a realidade do Antropoceno, a capacidade e intensidade das ações humanas em alterar as funções vitais do planeta, um processo de desequilíbrio crescente desde os primórdios da revolução industrial, que passados dois séculos culminou em impactos demonstráveis sobre a realidade planetária, tendo como efeito mais desafiante o aquecimento global.
A humanidade ultrapassou os limites das alterações aceitáveis para os ecossistemas vitais do planeta. O modelo econômico adotado não reconhece limites. Como no mito de Midas, os bens naturais se transformam em ouro, como commodities, com uma tendência a precificar tudo, o que não significa necessariamente valorizar, especialmente os bens essenciais – bens que em nossa própria legislação são considerados difusos e indisponíveis, pois tangenciam os direitos fundamentais da espécie humana e dos seres vivos.
Ao lado disso, rege a economia global um conceito estreito e irreal de riqueza, como braço direito de Midas: o Produto Interno Bruto (PIB), que se alimenta inclusive das atrocidades produzidas pela sociedade, como armamentos e outros elementos que não representam bem-estar ou qualidade de vida para a sociedade. O PIB, mero indicador de fluxo financeiro, a tudo contabiliza como riqueza. Assim, a humanidade vê-se aprisionada sob a contabilidade de Midas, onde o desmatamento da Amazônia e a produtividade em suas terras desmatadas transformam-se em cifrões, cujas “externalidades”, que é como a economia identifica os efeitos deletérios sobre o meio ambiente e a sociedade humana, sequer são contabilizados. Assim, nega-se a essência, o Capital Natural.
O fluxo devastador do PIB sobre a sustentabilidade hídrica deve ser devidamente dimensionado. Quem financia estes processos degradadores? Quais os agentes financeiros envolvidos? Em se tratando de crise hídrica, esta é uma pergunta sobre CNPJs que a sociedade brasileira deve fazer, com ênfase especial na Amazônia, no Cerrado e nas áreas de mananciais.
De outro lado a intensificação das emissões humanas de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono e o metano, é notória. Ao longo da história humana e da revolução industrial a economia, baseada em combustíveis fósseis, transformou-se em business as usual, lógica e poder difícil de serem quebrados por estarem imbricados nos centros de influência política e poder. Ao produzir negacionismos de várias matizes, gera a perda de lucidez, que prejudica a inovação tecnológica voltada à sustentabilidade. A influência econômica nociva alimenta a manutenção da matriz do petróleo, provocando a permanência de políticas antissustentáveis, inibe uma governança com participação social e outros elementos de controle social sobre o reinado de Midas.
Mas esta resistência não poderá sobreviver facilmente diante dos fortíssimos argumentos trazidos pelo relatório AR6 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), assim como os atuais dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Segundo o último relatório do Inpe à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Clima, o aquecimento médio no Brasil tende a crescer mais que a média global e já atinge 1,7 grau Celsius desde o início da era industrial, fato que aponta para um inegável estado de emergência climática.
Diante de temperaturas médias globais que podem inviabilizar não só a qualidade de vida para os seres humanos, mas também sua própria permanência na face do planeta, devemos lembrar das preocupações do climatologista James Hansen, da Nasa, sobre a necessidade de uma correta comunicação dos riscos à humanidade. Hansen defendia que a comunicação dos riscos não poderia ser minimizada, como tentava fazer o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, que não queria interromper as atividades ligadas aos combustíveis fósseis.
Nada é diferente por aqui. O Ministério da Economia recentemente enviou pedido ao Ministério do Meio Ambiente para que promovesse alterações normativas visando facilitações, com a retirada da proteção ambiental, de forma a permitir desmatamento e licenciamento sem os devidos critérios, em defesa de atividades econômicas com intenções predatórias.
Assim como é imprescindível manter boa comunicação sobre os riscos envolvidos e um bom regramento ambiental, também é importante que não prosperem medidas genéricas e soluções insuficientes. Por exemplo, a mera transposição de água entre bacias hidrográficas como solução simplista para déficits de abastecimento. A manutenção da integridade dos ecossistemas passa pela revitalização das coberturas vegetais, do reflorestamento das cabeceiras, das nascentes, das matas ciliares, de forma a manter os mananciais e impedir o assoreamento dos corpos d’água, além de um controle eficiente da poluição em todas as suas formas, do esgoto às cargas difusas.
É preciso repensar o modelo de administração adotado na vazão das represas, que ao longo do tempo foram sendo apropriados por setores da iniciativa privada. Neste processo, a água, um bem público de interesse para usos múltiplos e essenciais à sociedade, vive um permanente conflito de interesses em sua gestão. O Operador Nacional do Sistema (ONS), responsável pela gestão da vazão dos reservatórios, tende a priorizar a geração e energia sobre os outros usos, inclusive sobre aspectos de sustentabilidade ambiental.
É fácil de entender: o conselho gestor do ONS tem em sua composição 17 membros, sendo apenas representados setores de governo ligados ao Ministério de Energia (quatro integrantes) e outros atores do setor privado interessados em gerar lucro para suas concessões. Dos 13 integrantes do setor privado, existe apenas um representante da sociedade civil, mas que também é oriundo do setor econômico. Assim, não há representantes que, de forma prioritária, defendam direitos difusos. O controle social é igual a zero.
Finalmente, chegamos ao ponto crucial, um modelo de governança para fazer frente, de forma eficiente, ao estado de emergência climática. No contexto da crise hídrica e da emergência climática, a governança, para ser eficiente, deve ter capacidade transetorial, muito diferente do que ocorre em nossa realidade, onde existe um Ministério do Meio Ambiente subalterno, capturado por forças estranhas ao seu papel institucional, o que ficou muito evidente durante a gestão do ministro Ricardo Salles.
Ressalte-se ainda a neutralização dos mecanismos de participação social junto ao Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), a exemplo do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), do qual foram alijados comunidades tradicionais e representantes da ciência. Também foi desfigurada a participação social das ONGs, cuja eleição democrática foi substituída por um mero bingo.
A falta de vocação e empoderamento político do Ministério do Meio Ambiente não permite que se constitua em um agente transformador que possa levar diretrizes de políticas ambientais para os diferentes setoriais do governo. Estabelecer políticas e demonstrar capacidade de interlocução dependem de integridade de suas funções institucionais, assim como de robustez política para impulsionar uma política integrada de sustentabilidade, que possa permear todos os braços da governança estatal, assim como deter capacidade para dialogar propositivamente com todos os setores da sociedade.
Para ser transformadora, a governança só funcionará a contento, para tomada de decisões e manter a perenidade de sua ação, se incorporar processos que contemplem advocacy, transparência e controle social. O produto final desejado, e imprescindível, será uma efetiva e eficaz governança hídrica, com políticas públicas, com planos e ações permeando os diversos setoriais com capacidade de transformar a realidade. Assim, em consonância com as observações do climatologista James Hansen, haverá a possibilidade de uma resposta ética neste desafio civilizatório, que revele a qualidade moral de nossa geração frente ao futuro.
Fonte: O Eco
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