Polo industrial que fatura R$ 105 bilhões ao ano e emprega 80 mil trabalhadores em meio à Amazônia debate alternativas diante de novas dinâmicas do cenário social e ambiental. Está em jogo o bem-estar não só das populações locais como de todo o mundo, frente a importância da região no contexto da mudança climática
Na perspectiva da sustentabilidade, o futuro da Amazônia passa necessariamente pelos caminhos da Zona Franca de Manaus (ZFM) e seu polo industrial – em especial, no que tange ao desenvolvimento do Amazonas, onde se localiza a porção mais bem conservada da maior floresta tropical do planeta, um patrimônio de ativos já em risco como nova fronteira do desmatamento. Para além da produção industrial e dos empregos, essenciais à economia do País, está em jogo o bem-estar não só das populações locais como de todo o mundo, frente a importância da região no contexto da mudança climática.
No cenário de pressões internacionais, a atual conjuntura político-econômica brasileira em torno dos incentivos fiscais, na perspectiva de retomada do desenvolvimento, reforça a necessidade do diálogo: “O que queremos para a ZFM no aspecto econômico, ambiental e social?”.
A principal e mais antiga política industrial brasileira de incentivos fiscais divide opiniões, e debruçar sobre seus desafios, considerando o passado, o presente e o futuro, mostra-se estratégico para buscar um novo ciclo de prosperidade para a região, com impacto nacional. “O debate é chave no sentido de unir forças em prol do Polo Industrial de Manaus (PIM), aproveitando a transição para economia verde”, afirma Amanda Schutze, professora da PUC-Rio e coordenadora de avaliação de política no Climate Policy Initiative, no encontro virtual Entre Origem e Destino: Imaginando Futuros para a ZFM, realizado por Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com a Página22.
“É estratégico um olhar para a ZFM a partir das vantagens comparativas locais de estar na Amazônia, com empresas dispostas a desenvolverem as potencialidades da região”, reforça Schutze. Em estudo da iniciativa Amazônia 2030, a pesquisadora questiona a identidade do modelo como “zona franca”, que objetiva o estímulo ao comércio internacional, em comparação com o conceito de “zona empresarial”, visando desenvolvimento regional, com ganhos sociais e geração de empregos. “O objetivo da reflexão não é substituir, mas aprimorar a política industrial da ZFM”, explica a pesquisadora.
Criada em 1957, só uma década depois a zona franca foi oficialmente concebida como se vê hoje, por meio do Decreto-Lei 288/1967, adicionando incentivos fiscais e ampliando a área do polo industrial. Como pano de fundo, estava a visão de promover a ocupação e o desenvolvimento do território amazonense – geograficamente isolado dos grandes centros nacionais – na estratégia do governo militar de “integrar para não entregar”.
Em busca de novos vetores econômicos após o ciclo da borracha, a política baseou-se na renúncia fiscal para estabelecer em meio à Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário. Esse último eixo, no entanto, acabou não se consolidando ao longo das diferentes fases do modelo, que hoje se destaca pela produção fabril de bens duráveis, atrelada a regras para geração de empregos, nacionalização de peças, uso de insumos regionais e outras contrapartidas dos benefícios, geridas pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), órgão do Ministério da Economia.
No rastro da isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto de Importação, entre outros incentivos federais e estaduais, a política industrial da ZFM foi sucessivamente prorrogada, e agora vigora até 2073. Ao longo dos anos, evoluiu como mecanismo de desconcentração do crescimento econômico e substituição de importações, contribuindo para a renda per capita do estado e sua participação no PIB nacional. Em 2019, o faturamento atingiu R$ 105 bilhões, no total de cerca de 500 empresas e 80 mil empregos diretos, em cenário de novos desafios em torno de uma maior equidade e melhores condições de vida da população, com o diferencial dos insumos da floresta, base da bioeconomia amazônica (saiba mais aqui).
Questão de identidade
Ganha força o debate em torno de adaptações ao dinamismo das demandas econômicas, sociais e ambientais. Segundo Schutze, o atual desenho de incentivos fiscais não tem gerado aumento de produtividade e competitividade ou melhores salários para os trabalhadores: o pagamento da mão de obra equivale a apenas 5% do faturamento, enquanto a média brasileira é de 11%. Mais da metade dos empregados recebe até dois salários mínimos. Além disso, acrescenta a pesquisadora, 65% dos insumos do PIM são importados do exterior e apenas 2% do faturamento resultam efetivamente do comércio internacional – o que, conceitualmente, desconfigura a realidade do parque industrial como zona franca.
“É necessário redefinir a identidade e objetivos da ZFM, assim como as condições para acesso aos seus incentivos, fortalecendo o que já foi construído, na perspectiva de desenvolver uma capacidade competitiva e autônoma”, sugere.
Existem globalmente cerca de 5,4 mil zonas econômicas especiais (Zona Franca, Zona Empresarial, Zona de Exportação e outras) em 147 países, segundo report do Banco Mundial de 2019. Nos Estados Unidos, a exportação de todas as zonas francas foi de US$ 111 bilhões, naquele ano. Já na América Latina, a maior está localizada no Chile (Iquique), com destaque para aparelhos eletrônicos, combustíveis, motores de automóvel e roupas, e exportações de US$ 1,14 bilhão em 2019 – contra US$ 428 milhões da ZFM no mesmo ano.
“Com definição mais clara dos objetivos, pode-se estabelecer metas e indicadores específicos para monitorá-las, aperfeiçoando a política, com maior escala de impactos econômicos e socioambientais positivos”, destaca Schutze. Com base nas experiências internacionais, além do acompanhamento dos indicadores de desempenho, as recomendações incluem a contratação de mão de obra local com maior salário e treinamento, reinvestimento em infraestrutura urbana e educação, inovação tecnológica e fiscalização das contrapartidas para recebimento do benefício fiscal.
Na dimensão amazônica, propõe-se atenção aos requerimentos ambientais e incentivo ao uso de recursos do bioma como diferencial competitivo e eixo de diversificação para a sustentabilidade do polo industrial. Hoje, 40% do faturamento do PIM está concentrado em três produtos: televisores LCD (R$ 18,1 bilhões, em 2020), telefones celulares (R$ 11,5 bilhões) e motocicletas (R$ 11,8 bilhões).
O potencial para uma maior abrangência da matriz econômica, com impacto positivo no desenvolvimento da região, está associado às contrapartidas das empresas pela isenção de impostos. Entre essas condicionantes, está o investimento em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), referente a 5% do faturamento dos produtos enquadrados na Lei de Informática da ZFM, criada em 1991 – valor que atualmente gira em torno de R$ 700 milhões ao ano, com um total acumulado de R$ 3,5 bilhões desde 2011 (saiba mais aqui).
O objetivo é promover inovações no setor de tecnologia de informação e comunicação, com possibilidade de aporte para projetos de desenvolvimento regional, inclusive na bioeconomia. Mas há críticas quanto à análise morosa por parte da Suframa e ao uso prioritário dos recursos para investimentos internos em melhorias que beneficiam os próprios processos produtivos. Segundo analistas, há pouco investimento em projetos tecnológicos sustentáveis, em parte porque as empresas não conseguem associá-los às suas cadeias produtivas, ou devido a decisões das matrizes no exterior. A maioria das companhias tem centros decisórios localizados fora de Manaus.
Desafio social e ambiental
Ao criar a estrutura industrial, os incentivos regionais alteraram a dinâmica demográfica, fazendo a população do estado pular de 715 mil habitantes, em 1960, para 4 milhões, em 2019. Entre 1980 e 2000, o valor do capital humano de Manaus cresceu 250%, enquanto o crescimento médio nacional foi de 148%, embora represente apenas 5% do índice verificado em São Paulo, como destacado no documento Retratos Setoriais – Zona Franca de Manaus, produzido por Uma Concertação pela Amazônia, trazendo um panorama de conteúdos e referências sobre o tema.
Com 2,2 milhões de habitantes, Manaus, a maior metrópole da Amazônia, atraiu grande migração do interior em busca de oportunidades, porém com baixa qualificação de mão de obra, em velocidade e escala que dificultaram o planejamento urbano e resultam na expansão de ocupações irregulares e baixa cobertura de saneamento básico, entre outros impactos negativos. “Trata-se de uma concentração populacional sem precedentes”, destaca Thomaz Nogueira, ex-superintendente da Suframa e ex-secretário de planejamento do estado do Amazonas, participante do encontro virtual sobra a ZFM.
Segundo ele, enquanto a população brasileira aumentou 191% entre 1960 e 2016, em Manaus o crescimento populacional foi de 1.145%, muito superior à expansão de Belém no período, 271% – o que, na visão de Nogueira, influenciou o quadro ambiental. Apesar da degradação urbana na capital, recorrentes estudos apontam, em maior ou menor nível, que a concentração industrial, com oferta de emprego na manufatura e serviços, inibiu a pressão de atividades econômicas predatórias no interior. Embora de forma não intencional, o fluxo migratório, para alguns pesquisadores, teria contribuído contra o avanço do desmatamento – diferente do ocorrido nos estados vizinhos.
De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará perdeu cerca de 40% da vegetação nativa original; no Amazonas o índice é de somente 5%. Há, porém, a ressalva de que, em grande parte, a expansão predatória não se deu devido ao isolamento geográfico, falta de estradas e existência de áreas legalmente protegidas, como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, que hoje cobrem 50% do território estadual. Especialistas destacam, ainda, o impacto do êxodo no esvaziamento econômico do interior e na falta de oportunidades para avanços na qualidade de vida por meio do uso sustentável da floresta.
Para Nogueira, “não chegaremos à sustentabilidade ao ignorar a presença humana: se as indústrias de Manaus entrarem em crise, é alto o risco do fluxo migratório de retorno para a floresta, com desmatamento”. Ele reforça a necessidade de aprofundamento em soluções baseadas na ciência e diz que o PIM “é um grande desconhecido, ignorado pela sociedade brasileira como fruto da ignorância sobre a realidade amazônica”.
Evoluir e não substituir
A ZFM, segundo Nogueira, possui um modelo sui generis e só existe até hoje porque traz benefícios para o País. “É preciso discutir o quanto vale como vetor de desenvolvimento e trabalhar em ajustes necessários; o que não podemos é ficar no meio do caminho e sinalizar com insegurança jurídica toda vez que o modelo é confundido como uma grande maracutaia”, afirma.
Em sua análise, a ZFM gera recursos de tributos relevantes para o desenvolvimento nacional. No período de 2000 a 2018, foram arrecadados impostos federais de R$ 148,5 bilhões e, deste total, apenas R$ 38,3 bilhões retornaram ao Amazonas, como distribuição compulsória constitucional. Ou seja, R$ 110,2 bilhões destinaram-se aos demais Estados e regiões.
Em 2018, os impostos sobre produção arrecadados no Amazonas representaram por volta de 17,1% do PIB estadual, estando atrás apenas da arrecadação de São Paulo (17,7%), Santa Catarina (18,1%) e Rio de Janeiro (18,2%), segundo o IBGE.
De acordo com Nogueira, o esforço de desenvolvimento econômico deve olhar para os serviços ambientais da Amazônia: “Sob o ponto de vista da produtividade, temos as melhores práticas, mas devemos ir além no PIM para gerar recursos públicos de modo a impulsionar novas tecnologias da bioeconomia”.
“A ZFM cumpriu o papel geopolítico de desconcentração de investimentos e geração de renda, pública e privada, com melhoria da qualidade de vida”, enfatiza Nogueira, coautor do paper Reforma Tributária, Zona Franca de Manaus e sustentabilidade: é hora de evolução, liderado pela Fundação Amazônia Sustentável. O documento recomenda a diversificação de setores produtivos no médio e longo prazo, complementares à atual matriz econômica, e não substitutos, abrangendo fármacos, fitocosméticos e alimentos nutracêuticos, além da piscicultura, turismo, produção agroflorestal, mineração responsável e indústria naval. Para fomento aos novos eixos, é proposta a criação de um Fundo de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas.
Em linha semelhante, estudo do Instituto Escolhas sugere novos eixos de oportunidades na bioeconomia, com promoção de atividades mais lucrativas, de produção mais eficiente, e que promova o uso das vantagens competitivas da região. Nesse caminho, estima-se aumento do PIB em 17%, com criação de mais de 206 mil vínculos empregatícios em dez anos, demandando investimentos de R$ 7,15 bilhões em infraestrutura, inclusive de P&D.
Impulso tecnológico
Recente pesquisa aponta que cada R$ 1 gasto com incentivos na ZFM promove um crescimento de renda de até R$ 3 na Região Metropolitana de Manaus, no melhor cenário. Entre os exemplos de investimentos, a contrapartida das empresas pela isenção estadual de ICMS garante os recursos da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), presente nos 62 municípios amazonenses.
“É preciso transformar conhecimento em nota fiscal, com produção em maior escala e geração e recursos para o estado”, destaca Estevão Monteiro, pesquisador da UEA e PhD pela Universidade do Tennessee nos EUA. Ele ressalta a importância de prospectar novos segmentos industriais e romper barreiras para transformar serviços ambientais em ativos econômicos. “Há grande potencial de somarmos inteligência artificial e plataformas de integração de dados, diante do elevado nível acadêmico que temos neste campo”, observa. No entanto, a atual realidade é a evasão de cérebros para centros de maior demanda, no País e no exterior.
“Falta presença mais efetiva do estado [do Amazonas] nesse processo para melhor articulação de negócios, com mudanças da cultura institucional, ainda muito paternalista”, analisa Monteiro, para quem a ZFM precisa ser fortalecida e conquistar maior autonomia contra a insegurança jurídica devido a mudanças políticas federais. “Discute-se muito o papel da indústria 4.0 para o aumento da competitividade, mas precisamos esverdear os produtos do polo e para isso são necessárias políticas públicas”, completa.
Segundo o pesquisador, em vez de só olhar o retrovisor, chegou a hora de visualizar o futuro das novas gerações, “aproveitando a infraestrutura do PIM para usar recursos valiosos da Amazônia e diminuir a desigualdade social e econômica, principalmente nos municípios do interior, com projetos de sustentabilidade e qualidade de vida”.
Fonte: Página 22
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