O que a derrubada recorde da floresta Amazônica e o processo de emergência climática tem a ver com o aumento na conta de luz previsto para julho? Tudo. No dia 29 a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou um reajuste de 52% na bandeira tarifária vermelha 2, de 6,24 reais para 9,49 reais por cada 100 kWh. Esta taxa é cobrada quando existe um aumento nos custos da geração de energia. Dias depois, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) informou que pelo segundo ano seguido, o Brasil registrou no mês de junho recorde de queimadas na maior floresta tropical do mundo —o que não surpreende tendo em vista as políticas antiambientais do Governo Bolsonaro. Estes dois dados podem parecer desconexos à primeira vista, mas especialistas apontam uma relação direta entre eles, que somada à falta de planejamento do poder público se torna uma bomba relógio energética com impactos no meio ambiente.
Atualmente, a maior parte da energia utilizada no país (63,8%) é gerada por hidrelétricas. Mas os reservatórios das usinas localizadas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, responsáveis por mais de 70% da produção, estavam operando com apenas 29% da capacidade no início de julho. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, admitiu que o país vive uma crise hídrica —a pior dos últimos 91 anos, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), órgão que coordena e monitora a produção energética no país. Segundo a entidade, “nos últimos sete anos os reservatórios das hidrelétricas receberam um volume de água inferior à média histórica”. O presidente Bolsonaro fez coro ao subordinado, e culpou a falta de sorte pelo problema: “Estamos vivendo a maior crise hidrológica da história. Eletricidade. Vai ter dor de cabeça. Não chove, né? É a maior crise que se tem notícia. Demos mais um azar aí”.
O país ainda tem na memória os apagões ocorridos em 2001, quando enfrentou um quadro similar provocado por uma demanda maior que a oferta em meio a um cenário de seca, associado a problemas de infraestrutura na rede elétrica. Foi preciso reduzir em 20% o consumo nacional entre julho de 2001 e fevereiro de 2002, e para alcançar esta meta foram feitos cortes programados no fornecimento, buscando evitar o colapso em todo o Brasil, ao longo de um ano. O Governo, à época presidido por Fernando Henrique Cardoso, perdeu boa parte da sua força, pois a redução energética afetou a economia e o Brasil cresceu mirrados 1,51% em 2001 e 1,52% em 2002.
A comparação com o passado mostra um norte do que pode acontecer ainda este ano, agravado pela erosão do meio ambiente por fatores estruturais. “O que está acontecendo é que a hidrologia no Brasil está mudando há alguns anos, e isso é fruto da mudança global do clima. A questão é que o setor elétrico como um todo e também o Governo demoraram para assumir que esta mudança tem um grande impacto na forma de operação de reservatórios”, afirma Roberto Kishinami, coordenador sênior do Instituto Clima e Sociedade. Ele aponta que os hidrólogos, “embora tenham resistido por muitas décadas para assumir a mudança climática como um fator no país, agora já se convenceram que a hidrologia está saindo do equilíbrio”. Este é o “novo normal” do setor elétrico brasileiro. Em entrevista ao jornal O Globo, o próprio diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi, disse que “para o setor elétrico caiu a ficha de que a gente deve considerar aquecimento global e mudanças climáticas dentro das nossas avaliações de análises”.
O desmatamento da Amazônia também teria um impacto direto na questão da crise elétrica. “O aquecimento global muda a dinâmica do clima em todo o mundo, e o desmatamento da Amazônia também age nesse sentido, mas mexe diretamente com os ciclos hidrológicos no país, que tanto depende deles para a geração de energia, a produção agrícola e abastecimento das cidades”, afirma Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. A conta é simples: ao destruir a floresta, altera-se a capacidade elétrica do país. De acordo com Astrini, “o desmatamento e o aquecimento global atuam juntos e se retroalimentam”. Sem cobertura de mata no solo, a água tende a escoar para os rios mais rapidamente sem cumprir seu ciclo, de evaporar e formar os chamados rios voadores, nascidos na Amazônia mas que ajudam a abastecer reservatórios nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Além disso, as chuvas ficam mais concentradas em um período específico do ano, ampliando o período de seca e provocando enchentes na época úmida. Por fim, as queimadas também liberam na atmosfera gases do efeito estufa que aumentam o aquecimento global, fechando este ciclo vicioso.
Com reservatórios vazios, o Governo aposta na ativação das usinas termelétricas, mais caras e poluentes por utilizarem combustíveis fósseis para operar. São elas as responsáveis pela alta nas tarifas de energia. Como se não bastasse, elas também utilizam o que mais está faltando no momento: água. “Durante o seu processo de resfriamento, estas usinas demandam, sozinhas, volumes tão grandes de água que poderiam abastecer municípios inteiros”, diz Astrini. Assim, a produção de energia irá disputar gota a gota a água usada na agricultura e no abastecimento das cidades. E isso irá pesar no bolso do brasileiro. André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), afirma que “só por conta do reajuste da bandeira tarifária em 52%, o aumento médio na conta de luz será de 8% em julho”. Atualmente a conta de luz responde por 4,5% dos gastos residenciais.
Mas não é só isso que vai fazer saltar o valor do boleto da luz: “Algumas concessionárias de energia irão rever a tarifa, como fazem anualmente. Então o aumento total na conta será maior ainda”, diz Braz. Além disso, haverá uma alta no custo de diversos produtos cuja cadeia de fabricação depende do uso intensivo de energia, como automóveis, construção civil e mesmo o setor de alimentos processados e frigoríficos, que repassarão o aumento ao consumidor. “Isso trará um aumento indireto no orçamento das famílias, mas é uma consequência do reajuste das tarifas”, afirma. Com isso, ele projeta um impacto de 0,36 ponto percentual na inflação do período. “Quando um serviço essencial como energia sobe, os brasileiros precisarão economizar em alguma ponta. Mas mesmo poupando, a conta virá mais cara, então será preciso deixar de consumir outros itens. Esta queda no consumo pode atrasar ainda mais o reaquecimento da economia neste momento de crise”.
Astrini, do Observatório do Clima, cita um relatório publicado em 2013 por pesquisadores ligados à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que apontava que nos próximos anos o Brasil perderia cerca de 40% de sua capacidade de geração de hidrelétricas por causa do desmatamento e do aquecimento global. Curiosamente, no período da publicação o país vivia seu boom no setor, com a usina de Belo Monte recém inaugurada e outras como Jirau em construção. Talvez por isso o relatório tenha caído no ostracismo. Ou seja, o problema já era conhecido há anos. Faltou agir.
A solução que não sai do papel
O que pode ser feito agora? “Uma opção mais lógica e barata do que acionar as térmicas seria ter mais energia renovável entrando no sistema, principalmente eólica e solar, atendendo diretamente ao consumo e garantindo que os reservatórios fiquem mais cheios”, diz Donato da Silva Filho, diretor da consultoria Volt Robotics. “Enquanto o custo de 1gW por hora destas fontes energéticas é de 20 dólares [cerca de 100 reais] em média, uma térmica dificilmente consegue entregar esse volume de energia por menos de 55 dólares [aproximadamente 275 reais]”, explica. Além disso, a implementação destas usinas é mais barata e rápida. “Então este deveria ser o primeiro passo, uma etapa prioritária para o Governo: terminar os empreendimentos eólicos e solares que estão em andamento e próximos de sua conclusão, e acelerar os que ainda não começaram”, afirma. Atualmente 156 usinas eólicas e 68 solares estão em obras no país, de acordo com a Aneel.
Fonte: El País
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