O químico Otto Richard Gottlieb dedicou sua vida à preservação e ao estudo do patrimônio vegetal brasileiro. Com mais de 700 trabalhos publicados, Gottlieb sempre buscou uma resposta química para algum problema biológico. Estudou, entre outras espécies, a lauráceas e a miristicáceas. Seus estudos sobre a canela trouxeram ao conhecimento público algumas aplicações medicinais, fitoterápicas e culinárias da espécie, além das propriedades aromáticas utilizadas na indústria cosmética. Em 1967, com financiamento da Fapesp, Gottlieb criou o laboratório de Química de Produtos Naturais no Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Integrando a química à biologia, à ecologia e à geografia.
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Apartir dos anos 1970, além de identificar compostos de plantas e suas funções, o químico Otto Richard Gottlieb (1920-2011) propôs – e mostrou – que as plantas expandiam a capacidade de produzir compostos químicos mais complexos à medida que evoluíam. Foi uma abordagem inovadora, que aproximou a química da história evolutiva das plantas e lhe trouxe reconhecimento internacional. Gottlieb foi indicado três vezes ao Prêmio Nobel, em 1998, 1999 e 2000.
Ao verificar que as ervas, evolutivamente recentes, produzem estruturas químicas sofisticadas como os alcaloides indolo-terpênicos, enquanto as árvores, mais primitivas, não vão além dos derivados fenólicos, que formam a celulose da madeira, ele ampliava as análises sobre a evolução das plantas. “Conseguimos mostrar que as coníferas [pinheiros] e plantas floríferas tiveram desenvolvimentos paralelos e sua origem está, respectivamente, em samambaias primitivas e avançadas”, disse Gottlieb em 1988 em uma entrevista à revista Ciência Hoje.
“Gottlieb dizia que a identidade das plantas está mais ligada aos produtos naturais, os chamados metabólitos secundários, que aos aspectos morfológicos, que fundamentam a classificação botânica tradicional. Suas teorias formaram as bases da sistemática micromolecular, uma disciplina que ele criou para mostrar a importância do arsenal químico de um organismo para sua evolução, adaptação, regulação e classificação”, afirma a famacêutica Vanderlan Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara.
Ela fez o mestrado e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP) sob a orientação de Gottlieb. Na Unesp aprofundou o trabalho dele e há dois anos orienta o doutorado da química Helena Russo, que identifica os compostos dos extratos de folhas de 140 espécies da família Malpighiaceae. Na etapa seguinte, com base nos preceitos de Gottlieb, ela pretende associar os compostos químicos com a árvore evolutiva das plantas desse grupo.
Professor itinerante
Apreciador de óperas e operetas, com apurado ouvido para música, Gottlieb era “um professor itinerante”, como o definiu o químico Paschoal Senise (1917-2011), que o convidou para criar o Laboratório de Produtos Naturais, inicialmente apoiado pela FAPESP, no recém-criado Instituto de Química (IQ) da USP, depois de uma movimentada trajetória pessoal e profissional.
Gottlieb nasceu em Brno, na República Tcheca. Em 1936, diante da perseguição do regime nazista aos judeus e da morte do avô paterno, dono de um empresa exportadora de café sediada no Brasil, seus pais se mudaram para o Rio de Janeiro e ele foi estudar na Inglaterra. Três anos depois, também se mudou para o Rio, por recomendação dos pais, inquietos com a guerra na Europa. Como sua mãe era brasileira, aos 21 anos ele pôde escolher sua nacionalidade e preferiu registrar-se como brasileiro.
Em 1945, formado em química industrial pela então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi trabalhar com o pai na empresa da família, que produzia matéria-prima para perfumes com óleos essenciais de plantas brasileiras. A empresa fechou em 1959 e ele ficou apenas no Instituto de Química Agrícola (IQA), do Ministério da Agricultura, onde trabalhava desde 1955. Uma de suas primeiras tarefas no instituto foi identificar os compostos químicos do pau-rosa, a principal matéria-prima da fábrica do pai.
“Desde os primeiros trabalhos de pesquisa ele se preocupava em entender a função das substâncias químicas para as plantas”, conta a farmacêutica Maria Renata Borin. Ela fez o mestrado e o doutorado sob sua orientação na USP, trabalhou com ele por 30 anos, em São Paulo e no Rio, e cuida da biblioteca particular de Gottlieb, com cerca de 2 mil livros e 100 coleções de revistas científicas, além de documentos e fotos, doada pela família ao IQ-USP após sua morte.
Logo após entrar no IQA, Gottlieb fez um estágio no Instituto Weizmann de Israel e conheceu a técnica de espectroscopia de ressonância magnética nuclear, que diferencia os compostos por meio de propriedades magnéticas dos núcleos atômicos. Para disseminar a novidade, ele escreveu dois livros em português e deu cursos pelo país. Ao mesmo tempo, formou grupos de pesquisa no Instituto Nacional de Pesquisas da óleos essenciais (Inpa) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O IQA fechou em 1962. Dois anos depois Gottlieb se mudou para a nascente Universidade de Brasília (UnB), onde criou o Instituto Central de Química e formou um grupo de pesquisa com os melhores estudantes que conhecera pelo país. “Ele dizia que a UnB tinha o ambiente universitário que nunca mais viu, porque era pequena e se podia facilmente conversar com colegas de outras áreas”, diz Borin. O químico saiu da UnB um ano depois, em 1965, em solidariedade aos professores que pediram demissão coletiva em protesto contra a perseguição do governo militar. “Tudo quebrava debaixo dos meus pés”, comentou anos depois, já na USP, com Borin.
Depois de Brasília, Gottlieb voltou ao Rio e ingressou na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a convite de um professor que o conhecia desde o IQA. Ficou pouco por lá, porque Senise o convidou para trabalhar em São Paulo. O IQ-USP foi onde trabalhou mais tempo, de 1967 até se aposentar, ao completar 70 anos, em 1990.
Índices evolutivos
Para quantificar a diversificação de substâncias, Gottlieb criou índices químicos evolutivos: o de oxidação mede a quantidade média de átomos de oxigênio das substâncias produzidas por uma planta; o de especialização de esqueleto avalia a complexidade das estruturas químicas; o de herbacidade indica o grau evolutivo de uma planta segundo sua forma; o de singularidade taxonômica registra a variabilidade genética em uma área; o perfil micromolecular representa o conjunto de substâncias produzidas por uma espécie; e o padrão de dominância de espécies indica afinidades demográficas entre hábitats e a conectividade entre biomas.
Nos anos 1980 ele criou a reunião anual sobre evolução, sistemática e ecologia micromoleculares (Resem), com palestras de físicos, matemáticos e linguistas, que ele convidava para arejar as ideias dos participantes. Em 1986, Norberto Peporine Lopes estava no primeiro ano do curso de farmácia da USP quando foi monitor em uma dessas reuniões e projetou os slides de palestra do professor já famoso. “Ele era atencioso com todos, um lorde.”
Em 2010, Lopes já era professor na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP quando, com seu colega Leonardo Gobbo Neto, lembrou-se novamente das ideias de Gottlieb ao examinar o perfil químico de folhas de arnica (Lychnophora ericoides) de áreas altas do Cerrado chamadas campos rupestres e de uma área de transição, um ecótono, de Minas Gerais. Como Gottlieb havia previsto na chamada teoria de borda, as plantas do ecótono, que enfrentavam predadores dos dois ambientes vizinhos, apresentavam um perfil químico variado e produziam cerca de 50 vezes mais lactonas sesquiterpênicas, tóxicas para insetos, do que as dos ambientes típicos de campos rupestres no Cerrado.
Hoje, Lopes aplica essas ideias a outros grupos de seres vivos. Em um trabalho de que participou, sob a coordenação de sua colega Letícia Lotufo, os cnidários (invertebrados marinhos) Palythoa caribaeorum das águas quentes do litoral do Nordeste apresentaram um perfil químico mais complexo que os da mesma espécie das águas mais frias do Sul. “Como Gottlieb havia proposto para as plantas, os organismos marinhos do Nordeste incorporam mais oxigênio aos esqueletos carbônicos, o que provavelmente aumenta a resistência à radiação solar ou gera alguma outra adaptação que ainda não conseguimos explicar”, diz Lopes.
Depois de se aposentar da USP, Gottlieb voltou para o Rio, onde morava sua família, e trabalhou na Fiocruz e nas universidades do Estado do Rio de Janeiro e na Federal Fluminense. Não foi esquecido nem perdeu a modéstia. “Nas três vezes em que o indicaram para ganhar o prêmio Nobel, ele me perguntava: ‘Será que não é trote?’”, relata Borin.
Fonte: Revista FAPESP
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