“… precisamos nos preocupar com os choques que ocorrem nos períodos de transição entre os ajustes, pois os mais vulneráveis podem ser os mais atingidos nesses períodos. A transição importa, porque o tempo pode ser impiedoso e injusto.”
Paulo Roberto Haddad
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O fundamentalismo de mercado se exprime nas atitudes dos que creem na capacidade dos mercados, quando livres de regulamentações governamentais, de garantir o máximo de prosperidade econômica e de bem-estar a uma sociedade. Quando têm o poder decisório para formular e implementar políticas econômicas, acreditam que as melhores ações são as que levam ao Estado mínimo, às privatizações de autarquias e de empresas estatais, às desregulamentações dos mecanismos de mercado, ao mimetismo da lógica do mercado para resolver problemas até mesmo em situações em que não há mercados estruturados. Em 1907, Irving Fisher, um dos maiores pensadores econômicos dos EE.UU., ironizava: pegue um papagaio e o ensine a falar “oferta e procura” e você terá um excelente economista.
Mas, ao longo do século XX, as economias de mercado foram, cada vez mais, se transformando em economias mistas de mercado, com maior presença do Estado em pelo menos três funções programáticas.
A partir crise de 1929 e da grandiosa obra de Keynes, o Estado passou a monitorar os ciclos de estabilidade com pleno emprego, através das políticas monetárias e fiscais. Face ao agravamento da crise social a partir dos anos 1970, o Estado assumiu a responsabilidade pelas políticas sociais compensatórias e de combate à pobreza e à miséria. Assim como passou a intervir em contextos onde há inequívocas falhas de mercado, como no caso da monopolização de mercados, da defesa dos interesses de consumidores, da preservação, conservação e reabilitação dos ecossistemas.
O adjetivo “misto”, acoplado ao sistema de uma economia de mercado, marca a presença de algum estilo de planejamento governamental na dinâmica do capitalismo. Ora para estruturar um ciclo de expansão econômica, ora para a concepção e a implementação de políticas públicas setoriais, sociais, regionais ou ambientais.
Presa a uma ideologia liberal extemporânea, a atual equipe econômica resiste a enfrentar a crise socioeconômica e socioambiental do País, tendo transformado o sistema de planejamento tão somente no braço orçamentário do Ministério da Fazenda, com o receio de cometer algum pecadilho de prática institucional não ortodoxa. Tal atitude inibe a análise e a avaliação de políticas alternativas para a superação da crise por estarem fora da planilha convencional.
A falta de articulação entre plano e mercado no cotidiano do Governo Federal pode acarretar um elevado custo para a sociedade. Uma ilustração: uma análise de impactos dos uxílios emergenciais, durante a pandemia, poderia projetar um desequilíbrio nos mercados de alimentos básicos, com a oferta interna limitada no curto prazo e a demanda se expandindo pelo consumo das famílias de baixa renda e pelas exportações com câmbio desvalorizado. Como uma das funções do planejamento é a de prever para prover, seria recomendada a formação prévia de estoques reguladores via importações, evitando-se assim o presente impacto inflacionário dos preços dos alimentos sobre a população mais pobre.
As forças de mercado tendem de fato a reequilibrar as condições de abastecimento no médio prazo, mas, como nos lembram Banerjee e Duflot, Prêmio Nobel de 2019, precisamos nos preocupar com os choques que ocorrem nos períodos de transição entre os ajustes, pois os mais vulneráveis podem ser os mais atingidos nesses períodos. A transição importa, porque o tempo pode ser impiedoso e injusto.
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